quarta-feira, outubro 21, 2020

Sem garantias

 Nada garante

quem você é

o que você é

o que você pode

até onde você vai.


Nada garante

que amanhã você é o mesmo

porque você não é

e nem quem você gostaria

que te garantisse isto.


Nada garante

que você é bom

que você é capaz

que você consegue

que não vai falhar.


Nada garante

que você é um

que você é todo

que é inteiro

porque você não é.


Como uma onda indiferente

se espalhando sobre um castelo de areia

que retorna ao mar sem deixar rastros

de si ou das ruínas que fez

assim serão suas certezas 

desmanchadas em um sopro

apenas caminhe, um passo por vez

porque nada te garante

não há garantias.

terça-feira, outubro 20, 2020

 Um dia se acorda sem mais se aceitar

que é necessário um fiador do nosso eu


segunda-feira, outubro 19, 2020

Palafita

 

Se a cura é pela palavra

o silêncio adoenta


Mas já adoecido cheguei aqui

e de que adiantam minhas palavras

se não sei nada dizer

das dores


as dores são palafitas

sobre a qual ergui esse casebre

as paredes úmidas

de uma madeira podre


quem não viu, entrou

sentou, se acomodou

fez do silêncio canção

entoou seus poemas

ecoaram no ar


mas nada se sustenta nessa fantasia

palafita de vigas ocas

com o desejo que a circunda

por fora, por dentro

sem jamais ter substância


Tua casa não tinha chão

nem teto

nem casa

nem nada

Destila. destino

 

Fermenta no peito essa dor

que cavei nos dias

curando, como um queijo,

cada farpa de rancor, numa suada gota

caindo no fundo do pote


um pingo de fel, um rastro de lágrima

escorre na pele, na sombra dos dias

não se vê, nem se ouve

a dor surda,

recalque

mágoa

sem


na foto, no som

retorço a escuta

passado fugidio

só meu


na fantasia de fazer um

nutri as escolhas

todas erradas

mal feitas

mudas


não te dirijo a palavra mais

nem escrita, nem gemida

são minhas agora

e as escondo

no fundo

cegas


não são

não se diz

não se representam

em nenhum sonho requentado

nessa pura ilusão crescente que já se vai

domingo, julho 19, 2020

ainda dói

sexta-feira, maio 29, 2020

Capitão, meu capitão, como viver assim, se navegar é preciso?

As velas recolhidas, o barco no porto, atracado. O limo se junta no casco. O marinheiro fica no cais, espera, passa dias e noites junto ao navio, noites em claro.

São cinco da manhã e ele está pensando em... barcos.

Seu capitão caiu no convés, morto e frio. As jornadas se acabaram, e o navio no porto, o marinheiro no cais. Sem saber viver em terra firme, ficou ali, esperando o navio que não vai partir.

Velas recolhidas, não adianta o vento soprar. Sem capitão, o navio não pode partir.

O capitão não fala, e a nave não parte. Recolhidas nas velas estão embrulhados os sonhos que não podem ser desfraldados.

Ao longe se perde o horizonte, inexplorado. O horizonte prenhe de futuros não descobertos.

Marejados, agora, só os olhos do marujo. Ele sonha, sem dormir

O barco, barulho do meu dente em tua veia.
Morto por dentro, ele descobre:

Navegar é preciso,
viver não é preciso.

domingo, maio 24, 2020

Do amigo MB:

Mas horas há que marcam fundo...
Feitas, em cada um de nós,
De eternidades de segundo,
Cuja saudade extingue a voz.

Ao nosso ouvido, embaladora,
A ama de todos os mortais,
A esperança prometedora,
Segreda coisas irreais.

E a vida vai tecendo laços
Quase impossíveis de romper:
Tudo o que amamos são pedaços
Vivos do nosso próprio ser.

A vida assim nos afeiçoa,
Prende. Antes fosse toda fel!
Que ao se mostrar às vezes boa,
Ela requinta em ser cruel...

segunda-feira, maio 11, 2020

Dia e noite

Lembra da praia que ficou nos esperando?
imagine você e eu, eu e você
cantando músicas clichê
pelas janelas abertas
correndo na orla

A revolução que tomará palácios
começando em novos colchões
e você dizendo pertencer a mim
acalmando minha mente

Um chão onde pisar e
um céu de estrelas onde mirar
quando você está comigo
os céus são azuis

Não importa como os dados rolem
certas coisas teimam em ser
imagine como o mundo poderia ser
tão bom, tão bom

Na calada da noite,
sempre primavera,
e os portos abertos.

sob o mistério de um futuro todo
na ponta da língua, enxergar,
o brilho de novos olhos que se abrem
revelando.

sexta-feira, maio 08, 2020

A goiabada e o futuro

Arranco dela uma fina fatia e,
sentado à mesa, como devagar
sonhando com um futuro
pleno de goiabadas,
discussões e textos,
beijos e planos,
à meia luz.

Fecho os olhos e tento sentir
a mesa da sala, o peso no colo,
o cheiro e o toque na penumbra
num colchão ao chão sobre o qual
todo o futuro parecia inesgotável
e morava, o mundo inteiro, no fundo dos seus olhos

Arrancar finas fatias de goiabada,
como quem consome as lascas doces de um futuro
que ficou ali, guardado na geladeira,
junto com os planos de retomar o que ficou
congelado.

Comer, engolir uma fatia desse futuro
como esse sonho, que raciono em pequenas doses de esperança
tal qual o náufrago que, na ilha deserta, come apenas o necessário a cada dia
projetando no futuro o seu resgate incerto antes que acabem suas provisões
pequenas fatias de esperança e goiabada, que como para adoçar os dias,
que como para aguentar a vida, mais um pouco apenas, porque, quem sabe,
esse futuro ainda pode estar ali, escondido no horizonte,
como as velas de um grande barco que surge sabe-se-lá-de-onde
para o resgate que parecia impossível.
E, pensando no amor incerto,
lembro-me do grande poeta,
que nunca cessou de cantar o amor e o futuro,
unindo-os em um só sonho de liberdade e vida:

Vosso Trigésimo Século
ultrapassará o exame
de mil nadas,
que dilaceravam o coração.
Então,
de todo amor não terminado
seremos pagos
em inumeráveis noites de estrelas.
Ressuscita-me,
nem que seja só porque te esperava
como um poeta,
repelindo o absurdo quotidiano!
Ressuscita-me,
nem que seja só por isso!
Ressuscita-me!
Quero viver até o fim o que me cabe!
Para que o amor não seja mais escravo
de casamentos,
concupiscência,
salários.
Para que, maldizendo os leitos,
saltando dos coxins,
o amor se vá pelo universo inteiro.
Para que o dia,
que o sofrimento degrada,
não vos seja chorado, mendigado.
E que, ao primeiro apelo:
– Camaradas!
Atenta se volte a terra inteira.
Para viver
livre dos nichos das casas.
Para que doravante
a família seja
o pai,
pelo menos o Universo;
a mãe,
pelo menos a Terra.


quarta-feira, maio 06, 2020

Apesar de tudo

A voz, à distância, acalma o coração
como uma criança, que chora angustiada no berço
sem saber de si e do mundo, grita a plenos pulmões
pela ausência de sabe-se-lá-o-que, é puro desespero
e sente o seio ausente chegar, numa ilusão de completude,
e se acalma.

A voz, a fantasia de ser um só num encaixe perfeito,
acalma a angústia.
A dura realidade de ser só um, e, ainda por cima,
bastante incompleto,
é que queremos negar.

A falta, esse buraco, que pulsa, que dói
essa ânsia de procurar o preenchimento
para uma ausência infinita, e que sempre o será,
busco nesses ex-futuros planos,
onde vivo, respiro, como um prêmio ou um consolo.

A voz, do outro lado, alimenta essa fantasia tola
de que as chaves estão todas lá, e as fechaduras aqui
esperando serem abertas no momento certo.
De que os navios estão todos lá, e os portos aqui
esperando o momento certo da chegada.

Não estão. E era esse todo o engodo primeiro
A gente precisa não se iludir?
A essa pergunta, a dura resposta é:
não somos capazes de não nos iludirmos
e, no entanto, precisamos tentar isso a cada dia.

Das mentiras que inventei, você é preferida
e com as fantasias que crio disso,
e das que escuto de sua boca,
tento remendar esse buraco
que a ausência de sua presença-ausente deixou.

É o suficiente por hoje
por hoje e nada mais
para chegar ao fim de mais um dia
por mais um dia eu sobrevivo
cobrindo o futuro de ilusões
que me permitirão, quem sabe,
sobreviver também amanhã

No amanhã eu te vejo
e no três, desligamos.

sem rumos

Minha mente, tento ocupá-la, prenchê-la
as coisas importantes, tento me apegar a elas
tento saber que não importam minhas pequenices
em meio ao turbilhão do mundo.

Há gente dizendo que "não dá mais"
depois de décadas, jogando a toalha,
em meio a um mundo que se despedaça
e um horizonte que cabe a nós tomar
tomar o velho céu por assalto

Mas minha mente é imunda, eu trago o pior
minhas chaves continuam lá
meu cais esperando os barcos que já não atracam
não há vento.

E eu preciso de novos jeitos de gastar meu tempo
com a luta, a luta, eu repito às vezes, incessante
e meus ouvidos escutam, mas meu coração não ouve

tento encontrar um jeito sutil de partir
de não me anular, não desaparecer

há algo em você
que não posso ficar sem
eu só preciso disso, aqui.


segunda-feira, maio 04, 2020

chaves

Não quero perturbar com minhas palavras. Se ponho aqui algumas pra fora é porque às vezes parece que vão explodir, ou me envenenar por dentro se não tento colocá-las para fora. É um desabafo, um desalento para aguentar o fel dessa rotina sem sonho.

Algumas chaves são mais fáceis de entregar que outras. As chaves abrem coisas sobre as quais decidimos colocar trancas. Coisas, portanto, que não queremos que sejam de acesso público. Coisas secretas, reservadas, privadas. Coisas que queremos proteger e resguardar. Coisas importantes ou preciosas por algum motivo. Coisas cuja integridade podemos considerar ameaçada, caso ficassem destrancadas.

Se entregamos uma chave a alguém é por vezes um gesto de necessidade, outras não. Mas é sempre um ato de confiança, pois damos acesso a algo restrito. E às vezes a chave não é para nada mais do que demonstrar essa confiança.

Há muitos tipos de fechaduras e chaves. Se elas foram inventadas para proteger bens materiais, há, no entanto, muitas vezes algo muito maior em sua entrega. Mesmo que ela não proteja nada materialmente, às vezes nossas trancas protegem nossos segredos, nossas dores, nossos sonhos.

Há chaves cujo peso é imenso. Mesmo que não usemos, elas nos são caras. Devolvê-las dói, não porque não poderemos mais acessar o que há por trás de uma tranca. Mas porque já não somos alguém cuja confiança seja digna de ter uma chave. Porque estamos agora do lado de fora.

Nem sempre somos senhores de nossas próprias trancas, de nossas próprias chaves. Às vezes as pessoas podem abrir nossas fechaduras muito tempo depois que já, supostamente, deveríamos ter tomado as chaves de volta. Muito tempo depois que lhes devolvemos chaves de portas.

Algumas pessoas simplesmente podem empurrar nossas portas, e entrar, quando quiser, em nossos lugares mais recônditos, mais inacessíveis, mais bem guardados. Tirar-lhes as chaves está fora de nosso alcance. Porque para elas não há sequer portas a guardar esses segredos. As portas estão sempre abertas, as feridas sempre expostas. Não há como trancar essas dores, nem estancar essas feridas.

Nem todos os unguentos vão aliviar. Não tem remédio nem nunca terá.







terça-feira, abril 28, 2020

sonho

Um condomínio com portões, seguranças. Noto que os seguranças todos tem patentes, como se fossem todos soldados, ou policiais, em um bico. Um deles vem até mim, ele me diz, em tom amigável mas sério, que não posso ficar "passeando". Isso porque eu havia subido, mas depois desci, fiquei um pouco ali ao redor, olhando. Ele me adverte de que não devo fazer isso. Eu pergunto o porquê. Ele começa a me explicar, numa clausura na entrada, mas dois amigos dele ficam conversando com ele sobre algum jogo online, ele divide a atenção, até que os amigos dizem que se falam outra hora.
Fico pensando sobre como esse condomínio era horrível, olhando para fora e vendo que está num bairro de classe média alta de São Paulo. Refletindo sobre isso, penso porque foram morar ali. Quem? Seus pais; nesse momento aparece no sonho que eram eles que haviam ido morar ali, procurando um lugar seguro e tranquilo em São Paulo, que não ficasse vulnerável à violência da cidade. Você parece não aprovar, mas não os condena.
Eu acordo.
Há uma mensagem. Com ela, talvez o primeiro respiro em muitos dias.
Aquilo que não posso ter



(uma concessão pra mim nessa data querida. Volto ao controle)

terça-feira, abril 21, 2020

Dor Elegante

(Paulo Leminski)

Um homem com uma dor
É muito mais elegante
Caminha assim de lado
Como se chegando atrasado
Andasse mais adiante

Carrega o peso da dor
Como se portasse medalhas
Uma coroa, um milhão de dólares
Ou coisa que os valha

Ópios, édens, analgésicos
Não me toquem nesse dor
Ela é tudo o que me sobra
Sofrer vai ser a minha última obra

shut out

Do lado de fora vejo a chuva
cair sobre tudo, 
já não posso ver dentro
já não posso ver nada

esperando o momento derradeiro
das palavras que não posso dizer
um raio de tristeza me rasga
toda vez que penso em você

uma vida que não foi
mas que não consigo deixar para trás
agora estou trancado para fora
e a sabedoria dos tolos
não irá me libertar
caio de joelhos
e rezo

segunda-feira, abril 20, 2020

bananinha



Outo dia achei uma bananinha em meio às minhas coisas. Aquelas: doce de banana, cozida, com açúcar em volta. Ela estava junto com uma goibada, de tamanho semelhante, de mesma origem: o bandejão.

A goiabada, eu comi, numa hora dessas de tristeza e jejum prolongado. A bananinha não.

Ela era um presente. Não desses que tem data certa, obrigação ou etiqueta social que te induz a dar, pensar no que a pessoa quer ou comprar algo genérico que serviria a qualquer pessoa em qualquer data, e, por obrigação social, pelo bem da circulação de mercadorias, pela manutenção da economia e para atestar a eficácia das estratégias de marketing que rechearam nossos calendários de datas "especiais", se dá.

Não era, mesmo porque nessas datas não se dá uma bananinha. Em um Natal, se uma mãe presenteia sua filha ansiosa por uma Baby Alive com uma bananinha, ela sem dúvida se frustraria. Não era a bananinha que a menina desembrulhava no Youtube, nem que a amiga exibia lhe fazendo inveja. Não, ninguém produz nas mentes das crianças uma cuidadosa ânsia por bananinha, sustentando a roda da mercadoria e do desejo.

Nem, na verdade, se dá uma bananinha de aniversário à sua mãe, ou mesmo de dia das mães. Nas propagandas, aquelas emocionantes que dizem quão importante são as mães, ninguém se emociona com uma bananinha. Os perfumes, roupas, chocolates caros são os objetos de desejo, só eles mostrarão quão especial é sua mãe.

A bananinha, esse pequeno doce industrializado e embalado em plástico, foi produzido pela "Castelo de Chaves", indústria e comércio de alimentos, em Jacupiranga, interior de São Paulo. Banana, açúcar a ácido fosfórico a compõem. Produzida sem nenhum carinho, e não pelas mãos de uma dedicada vovó, ela foi feita numa linha produtiva industrial por operários explorados, de quem se extraiu a bananinha e a mais-valia. Vendida em lotes para a Universidade de São Paulo, ela chegou ao bandejão, onde foi distribuída por outros peões, dessa vez os trabalhadores do Restaurante Central, num almoço como outro qualquer. Um estudante, uma bananinha. Muitos não pegam a bananinha: não gostam do doce. Outros a pegam, e a comem indiferentes.

Essa não. Ela foi pega, guardada. Depois, foi dada de presente. Como quando você vê uma coisa bonita, e isso te alegra, porque te lembra de uma pessoa que você ama. E você guarda aquela coisa, como quem zela por um amor. Porque se lembra do brilho de um olhar, um detalhe qualquer, que ninguém mais notaria, quando a pessoa viu uma coisa daquela. Como quem lembra de uma preguiçosa tarde de sábado, num restaurante, quando uma pessoa comprou uma bananinha. Um doce, de uns 2 reais.

Sabe quando você lembra de como uma pessoa mexe sua mão quando fala, do barulho que ela faz quando fica sem jeito ou te desdenha, ou do jeito que a boca dela mexe quando sorri, e você suspira? Assim, às vezes, são as pessoas com uma bananinha. E ela, quando te é dada de presente, vale mais do que qualquer desejo fabricado escrupulosamente por um publicitário. Naquela bananinha está concentrada a mais autêntica declaração de amor.

Um amor é repleto de bananinhas, quando é sentido de verdade. Porque por toda a parte aparecem as "bananinhas": a pessoa que ocupa seus pensamentos é cheia de detalhes, prontos a serem percebidos, e tudo ao redor irá te lembrar dela. Os pequenos presentes do dia-a-dia, as pequenas coisas que se faz. Mensagens, poemas, canções, olhares, piadas internas, jogos. A paixão é feita de bananinhas. E, por isso, as comemos, sem pena; hoje há uma bananinha, cujo gosto é muito melhor do que a de uma comprada por aí ou ganhada de um trabalhador do bandejão. Amanhã haverá outra a nos manter incandescente a alma.

Mas quando as bananinhas cessam, aí as coisas mudam. Cada bananinha é um pequeno tesouro de um passado perdido, de quando ainda se era feliz. Como num casamento onde já não há amor, e se olha para uma foto em que os olhos brilham se encontrando, e toda a intensidade daquela paixão, toda aquela felicidade tem o efeito de uma lança em brasa entrando no peito. Às vezes, nesses casos, é a dor por um amor que já morreu. Mas essa, não: a bananinha é a dor de ainda sentir a alma em brasa. De ainda esperar navios.

Na sua embalagem, meio apagada, mal se lê uma data de validade que parece dizer: 12/20. Ao ler isso, dói ainda mais pensar que o ácido fosfórico talvez tenha maior poder conservante do que minhas ações desastradas, e que a bananinha industrializada pode durar mais do que o amor.

Eu não consigo comê-la, é patético. Tenho vontade de segurar a bananinha e chorar, lembrando de quando me foi dada. Lembrando da tarde de sábado em que alguém me amava tanto a ponto de prestar atenção num detalhe ínfimo, de que eu gostava de bananinha. Que alguém me amava tanto a ponto de ficar feliz ao ganhar uma sobremesa qualquer, porque poderia guardá-la para dar de presente. E que seria o melhor presente.

Não consigo deixar de lembrar de quando perdi uma pessoa que amava em um trágico suicídio. Ela deixara na minha casa uma pasta de dente, que não conseguia usar, nem jogar fora. Ridiculamente, repetia para mim mesmo que "ela não é a pasta de dente", tentando avançar com passos de formiguinha em meu luto. Um dia, a pasta de dente se foi. Já nem me lembro como.

No inconsciente não há tempo, dizia Freud. Um trauma da infância pode ficar ali, congelado, como um fóssil preservado embaixo da terra, por anos, até vir à tona e rebentar em suas poderosas consequências como se o acontecimento fosse hoje. O recalque o preserva, os sintomas o transformam. Não sabemos o tamanho de nossas dores, nem tampouco importa tanto o tempo em que a sentimos. Um mês pode te parecer um nada. Já há mais de um mês amargamos a devastação de uma pandemia, e no entanto esse mês mudou a cara do mundo, e está criando traumas em nossa sociedade que podem rebentar com a força devastadora de um retorno do recalcado.

Uma bananinha se ganha em um dia. O significado dela não está nesse dia. Mas um mês é o suficiente para ganharmos bananinhas que podemos passar uma vida inteira sem conseguirmos digerir.
Essa maldição nas minhas mãos
tudo que toco desvanece
torna-se pó, desfaz-se em areia.

Essa maldição em minha boca
tudo que provo é a ferrugem
essa decadência em meu sangue.

Tocando à distância
na relva densa das memórias
o cheiro, a voz, o toque, o olhar
tudo é farpa, que entra fundo na pele.

Nada me salva da agonia
de ser o algoz de nós
procuro sentido nas feridas
nas frases que formam
na gramática da pele
que arrancada, deixa exposta
a alma em brasa

procuro esperança na escuridão
na sombra lançada por seu coração

mas os dias são um relógio maldito
a girar os ponteiros em falso
porque tempo nenhum apaga essa imagem
tempo nenhum cura o mal que criei
com o amor
o tique das horas é um martelo
que bate, bate, bate, bate sem cessar
nas feridas abertas
sangram
sem parar





domingo, abril 19, 2020

sábado, abril 18, 2020

Logo desvanecerá
devolvidas as partes arrancadas
os navios de volta ao porto
velas recolhidas
sonhos esquecidos

Fecho os olhos
sinto o cheiro
o toque
os sons

Tudo se tornou dor
vergonha
incêndio
cinzas

É difícil quando não se consegue pensar
as coisas todas turvas, a palpitação
as cores, os sons estourados
sobrecarga de sensações
sem controle sobre mim

Desvanecerá?
Desvanecerei
me desfaço em ruínas
ao pó retornará

Essa ilusão ortopédica do eu
esmoreceu suas fronteiras
fagocitou uma fatia de vida
maior do que seus limites,
maior do que poderia abrigar
e agora não consigo reconstruir
os limites de mim mesmo
e o que era eu
espalhado no chão,
em sangue, fezes, miúdos
como as tripas de um animal morto
em sacrifício a um deus pagão

Me vesti com sua glória e amor
não posso encarar essa vida sozinho
estou nu, e longe de casa
foi tudo desperdiçado?
Todo esse amor?

A cada noite choro
ainda acreditando na mentira
te amo até minha morte



sexta-feira, abril 17, 2020

Me convulsiono na dor extrema da ternura
sinto a pele queimar, ferida aberta
como a tatuagem que sangra
depois da ferida da agulha

A pele aberta, a ferida incandescente
ao redor um teatro de sombras
feito com a luz das chamas
que ainda queimam minha alma

as partes arrancadas se esparramam
num lodo de sangue e lágrimas
misturam-se à terra
fertilizam dor

Não há o que tomar de mim
pois em mim tudo é podre
e tudo o que me foi dado
apodrece
como num toque de midas
corrompido

Se respiro amor
exalo solidão
se respiro vida
exalo morte



Era você, sem ar, partida
e eu podia sentir meus olhos
se desfazendo em pó
e nós dois, como dois estranhos
nos desfazendo em pó



quinta-feira, abril 16, 2020



O amor nunca pode ser exatamente como queríamos que fosse
Nas madrugadas
você chora no seu sono?

Entre páginas do capital
e cenários de horror pandêmicos
seu rosto reluz nos meus sonhos
num sono profundo que quer dizer não

Nas manhãs, me agarro a páginas
Há algo de você no horizonte
no combate duro contra a exploração
contra as mortes que se proliferam
vejo seu rosto, distante

O meu tempo é tão falho?
Por que o quarto está tão frio?
Você chora no seu sono?

Todas minhas falhas expostas
um gosto amargo na boca
enquanto o desespero toma conta.
E por que algo tão bom
simplesmente não pode funcionar mais?

O amor vai nos separar uma vez mais






quarta-feira, abril 15, 2020

Quando o sol voltar

Haverá peixes no mar quando o sol voltar
e todos comerão fartamente
sorrindo.

Repito isso no canto
escuro, frio, úmido,
da minha mente

Em meio à chuva e ao vento
tento recolher pedaços
ruínas de barcos
num quebra-cabeça impossível

A fome sufoca, engasga o pensamento
turva a visão, embaça o futuro
que se confunde com a lama presente
não se vê, não se sonha

Me jogo ao mar com escombros
chocando a quilha contra as ondas
imensas, intransponíves
me afogo na tormenta

Haverá sol?
Não sei
mas aguardo o dia de te ver
quando o sol voltar

segunda-feira, abril 13, 2020

No cais

No cais eu me sento
do amanhecer ao anoitecer
olhando o horizonte.

Por ali passam pernas, pessoas,
vendedores apregoam mercadorias
indiferentes à minha presença miúda.

Ninguém nota que no caderno, rabisco
palavras largadas, que carregam o peso da vida
e sonho com formas de jogar tudo pro alto

A cabeça está baixa, mas os olhos não
fixos na linha do horizonte
esperam os barcos

Anoitece

No cais,
uma alma incendiada
espera.

quinta-feira, abril 09, 2020

Um porto que não há

Volto a esse lugar, cemitério dos meus sentimentos, pra chorar sozinho.

Os barcos vem atracar na minha costa, mas não sei erguer um porto. Não sei dar âncoras.
Meu peito dilacerado transborda enquanto vejo o sol se por no horizonte azul.
A noite se espalha, escurece minha vista

Eu já não sei se os barcos continuam aqui, tudo é escuro
tudo que vejo é a noite, e contra o fundo preto da minha consciência
ainda imagino as velas em riste, com as quais desejo ainda navegar o mundo

Rompi com o mundo, queimei meus navios
mas já não tenho onde pousar meus sonhos
me afogo

Sob aquela luz vermelha, contemplo meu crime
alma incendiada sob o calor da minha
queimada, em trapos

tudo que queria era construir um porto
mas como posso se estou à deriva?

quarta-feira, abril 08, 2020

Carta de outro mundo

O mundo está um caos. E está só começando. As coisas vão ficar feias, e os capitalistas já sabem disso. No meio disso tudo, vão se completar oito anos da sua partida. É terrível sentir como sua presença é algo tão distante, como já é muito difícil sentir você por perto. Você está lá, sempre nos meus pensamentos, sempre nas minhas palavras. E eu queria que você pudesse viver aqui, em meio a esse que vai ser o maior desafio das nossas vidas até hoje.

Como você estaria hoje? Formada em pedagogia, atuando como professora. Nesse momento, com as aulas suspensas. Te imagino construindo os comitês, ajudando na organização das novas iniciativas nas redes, militando no seu computador, com uma long neck de Heineken e um cigarrinho ao lado. A Pagu no seu colo.

Conversas online, você me xingando, esbravejando com sua voz aguda e gesticulando. 

A vida que não foi continua não sendo. E, hoje, dezenas de milhares de vidas sendo interrompidas, como a sua foi. Por esse sistema social miserável em que vivemos. Vidas que não serão, pessoas sendo incineradas nas ruas do Equador, como lixo descartável. No maior país imperialista do mundo, o recorde de mortes. Imagino seu ódio e sua tristeza. O mundo te atingia demais, e talvez fosse difícil pra você esse momento. Eu me imagino ao seu lado tentando ajudar a transformar a dor em raiva, em luta.

Minha vida pessoal continua o caos, e penso em você alternando palavras carinhosas, "ah, lindo, não fica assim", com momentos de raiva, em que você me xingaria por me meter nessas situações "ah, pardal". O cheirinho dos seus cachos, misturado ao do seu Marlboro. Sua pele macia, marcada pelas cicatrizes aqui e ali. 

É terrível pensar como vidas se acabam por momentos decisivos que poderiam não existir. Sua vida, ainda penso às vezes no que poderia ter prolongado ela. E hoje, a angústia de ver milhares de vidas que acabam a cada dia. Sonhei que tentava ajudar as pessoas com remédios que não foram ainda liberados; e que nem serão produzidos em quantidade suficiente, se forem. O capitalismo segue matando, segue mutilando nossas vidas.

Você ainda é minha companheira nessa luta. Ainda é minha companheira em cada dor, e eu ainda luto para que a dor seja coragem. Eu não sei se falei aqui, nessa espécie de túmulo/confessionário virtual, que encontrei Andreia, a sua analista. Ela estava ali, como por acaso, no meio do caminho em que comecei a traçar com a sua ajuda, um caminho complementar e paralelo para tentar ser companheiro de dores e de descobertas das pessoas, e que sigo lutando para unificar com a luta revolucionária. Foi bonito e emocionante encontrá-la. Compartilhei com ela um pouco do destino trágico que se abateu sobre sua família também. Algo que poderia parecer um triste acaso, mas que acho que nem nós psicanalistas, nem nós marxistas, vemos como acaso. Acho que ela ficou feliz. Não me reconheceu prontamente, só quando eu disse a ela quem era. Pareceu acender a luz de algo adormecido ali. É claro que você marcou decisivamente a vida dela também.

Eu sigo também lutando por me revolucionar. Dou passos adiante, mas, confesso, dou passos atrás também. Suas palavras doloridas ainda me marcam. Tento aprender com os erros que cometi com você. Tento me apoiar nos acertos, nos momentos em que aprendemos juntos.

Amanhã serão oito anos completos de sua partida. Já não penso em você todos os dias, ainda que sei que sua marca indelével está lá, a cada passo. O sentimento de falta, de impotência, eu sei que a dimensão mais profunda dele até hoje eu tive com a sua morte. Mas ao longo desses anos fui aprendendo que faz parte da condição humana. Pelo menos dessa humanidade que conhecemos. E, talvez, isso me ajude a encarar de forma mais "harmônica" a falta que você faz na minha vida. Mas não é verdade que sei lidar com a falta, porque se não, não seria também parte dessa humanidade claudicante. Eu continuo errando, mas continuo andando. Hoje passo menos dias abatido, jogado na cama. Hoje penso muito menos em como seria seguir seus passos. Me fortaleci, sem dúvida. Como apostava que você poderia se fortalecer para permanecer aqui. Mas nem todas as batalhas vencemos. Ainda tenho vontade de pedir seu perdão, mesmo depois de tudo.

Hoje em minha janela brilha o sol. E o coração se põe triste a contemplar a cidade. Ele ainda se pergunta porque você se foi.