sexta-feira, maio 29, 2020

Capitão, meu capitão, como viver assim, se navegar é preciso?

As velas recolhidas, o barco no porto, atracado. O limo se junta no casco. O marinheiro fica no cais, espera, passa dias e noites junto ao navio, noites em claro.

São cinco da manhã e ele está pensando em... barcos.

Seu capitão caiu no convés, morto e frio. As jornadas se acabaram, e o navio no porto, o marinheiro no cais. Sem saber viver em terra firme, ficou ali, esperando o navio que não vai partir.

Velas recolhidas, não adianta o vento soprar. Sem capitão, o navio não pode partir.

O capitão não fala, e a nave não parte. Recolhidas nas velas estão embrulhados os sonhos que não podem ser desfraldados.

Ao longe se perde o horizonte, inexplorado. O horizonte prenhe de futuros não descobertos.

Marejados, agora, só os olhos do marujo. Ele sonha, sem dormir

O barco, barulho do meu dente em tua veia.
Morto por dentro, ele descobre:

Navegar é preciso,
viver não é preciso.

domingo, maio 24, 2020

Do amigo MB:

Mas horas há que marcam fundo...
Feitas, em cada um de nós,
De eternidades de segundo,
Cuja saudade extingue a voz.

Ao nosso ouvido, embaladora,
A ama de todos os mortais,
A esperança prometedora,
Segreda coisas irreais.

E a vida vai tecendo laços
Quase impossíveis de romper:
Tudo o que amamos são pedaços
Vivos do nosso próprio ser.

A vida assim nos afeiçoa,
Prende. Antes fosse toda fel!
Que ao se mostrar às vezes boa,
Ela requinta em ser cruel...

segunda-feira, maio 11, 2020

Dia e noite

Lembra da praia que ficou nos esperando?
imagine você e eu, eu e você
cantando músicas clichê
pelas janelas abertas
correndo na orla

A revolução que tomará palácios
começando em novos colchões
e você dizendo pertencer a mim
acalmando minha mente

Um chão onde pisar e
um céu de estrelas onde mirar
quando você está comigo
os céus são azuis

Não importa como os dados rolem
certas coisas teimam em ser
imagine como o mundo poderia ser
tão bom, tão bom

Na calada da noite,
sempre primavera,
e os portos abertos.

sob o mistério de um futuro todo
na ponta da língua, enxergar,
o brilho de novos olhos que se abrem
revelando.

sexta-feira, maio 08, 2020

A goiabada e o futuro

Arranco dela uma fina fatia e,
sentado à mesa, como devagar
sonhando com um futuro
pleno de goiabadas,
discussões e textos,
beijos e planos,
à meia luz.

Fecho os olhos e tento sentir
a mesa da sala, o peso no colo,
o cheiro e o toque na penumbra
num colchão ao chão sobre o qual
todo o futuro parecia inesgotável
e morava, o mundo inteiro, no fundo dos seus olhos

Arrancar finas fatias de goiabada,
como quem consome as lascas doces de um futuro
que ficou ali, guardado na geladeira,
junto com os planos de retomar o que ficou
congelado.

Comer, engolir uma fatia desse futuro
como esse sonho, que raciono em pequenas doses de esperança
tal qual o náufrago que, na ilha deserta, come apenas o necessário a cada dia
projetando no futuro o seu resgate incerto antes que acabem suas provisões
pequenas fatias de esperança e goiabada, que como para adoçar os dias,
que como para aguentar a vida, mais um pouco apenas, porque, quem sabe,
esse futuro ainda pode estar ali, escondido no horizonte,
como as velas de um grande barco que surge sabe-se-lá-de-onde
para o resgate que parecia impossível.
E, pensando no amor incerto,
lembro-me do grande poeta,
que nunca cessou de cantar o amor e o futuro,
unindo-os em um só sonho de liberdade e vida:

Vosso Trigésimo Século
ultrapassará o exame
de mil nadas,
que dilaceravam o coração.
Então,
de todo amor não terminado
seremos pagos
em inumeráveis noites de estrelas.
Ressuscita-me,
nem que seja só porque te esperava
como um poeta,
repelindo o absurdo quotidiano!
Ressuscita-me,
nem que seja só por isso!
Ressuscita-me!
Quero viver até o fim o que me cabe!
Para que o amor não seja mais escravo
de casamentos,
concupiscência,
salários.
Para que, maldizendo os leitos,
saltando dos coxins,
o amor se vá pelo universo inteiro.
Para que o dia,
que o sofrimento degrada,
não vos seja chorado, mendigado.
E que, ao primeiro apelo:
– Camaradas!
Atenta se volte a terra inteira.
Para viver
livre dos nichos das casas.
Para que doravante
a família seja
o pai,
pelo menos o Universo;
a mãe,
pelo menos a Terra.


quarta-feira, maio 06, 2020

Apesar de tudo

A voz, à distância, acalma o coração
como uma criança, que chora angustiada no berço
sem saber de si e do mundo, grita a plenos pulmões
pela ausência de sabe-se-lá-o-que, é puro desespero
e sente o seio ausente chegar, numa ilusão de completude,
e se acalma.

A voz, a fantasia de ser um só num encaixe perfeito,
acalma a angústia.
A dura realidade de ser só um, e, ainda por cima,
bastante incompleto,
é que queremos negar.

A falta, esse buraco, que pulsa, que dói
essa ânsia de procurar o preenchimento
para uma ausência infinita, e que sempre o será,
busco nesses ex-futuros planos,
onde vivo, respiro, como um prêmio ou um consolo.

A voz, do outro lado, alimenta essa fantasia tola
de que as chaves estão todas lá, e as fechaduras aqui
esperando serem abertas no momento certo.
De que os navios estão todos lá, e os portos aqui
esperando o momento certo da chegada.

Não estão. E era esse todo o engodo primeiro
A gente precisa não se iludir?
A essa pergunta, a dura resposta é:
não somos capazes de não nos iludirmos
e, no entanto, precisamos tentar isso a cada dia.

Das mentiras que inventei, você é preferida
e com as fantasias que crio disso,
e das que escuto de sua boca,
tento remendar esse buraco
que a ausência de sua presença-ausente deixou.

É o suficiente por hoje
por hoje e nada mais
para chegar ao fim de mais um dia
por mais um dia eu sobrevivo
cobrindo o futuro de ilusões
que me permitirão, quem sabe,
sobreviver também amanhã

No amanhã eu te vejo
e no três, desligamos.

sem rumos

Minha mente, tento ocupá-la, prenchê-la
as coisas importantes, tento me apegar a elas
tento saber que não importam minhas pequenices
em meio ao turbilhão do mundo.

Há gente dizendo que "não dá mais"
depois de décadas, jogando a toalha,
em meio a um mundo que se despedaça
e um horizonte que cabe a nós tomar
tomar o velho céu por assalto

Mas minha mente é imunda, eu trago o pior
minhas chaves continuam lá
meu cais esperando os barcos que já não atracam
não há vento.

E eu preciso de novos jeitos de gastar meu tempo
com a luta, a luta, eu repito às vezes, incessante
e meus ouvidos escutam, mas meu coração não ouve

tento encontrar um jeito sutil de partir
de não me anular, não desaparecer

há algo em você
que não posso ficar sem
eu só preciso disso, aqui.


segunda-feira, maio 04, 2020

chaves

Não quero perturbar com minhas palavras. Se ponho aqui algumas pra fora é porque às vezes parece que vão explodir, ou me envenenar por dentro se não tento colocá-las para fora. É um desabafo, um desalento para aguentar o fel dessa rotina sem sonho.

Algumas chaves são mais fáceis de entregar que outras. As chaves abrem coisas sobre as quais decidimos colocar trancas. Coisas, portanto, que não queremos que sejam de acesso público. Coisas secretas, reservadas, privadas. Coisas que queremos proteger e resguardar. Coisas importantes ou preciosas por algum motivo. Coisas cuja integridade podemos considerar ameaçada, caso ficassem destrancadas.

Se entregamos uma chave a alguém é por vezes um gesto de necessidade, outras não. Mas é sempre um ato de confiança, pois damos acesso a algo restrito. E às vezes a chave não é para nada mais do que demonstrar essa confiança.

Há muitos tipos de fechaduras e chaves. Se elas foram inventadas para proteger bens materiais, há, no entanto, muitas vezes algo muito maior em sua entrega. Mesmo que ela não proteja nada materialmente, às vezes nossas trancas protegem nossos segredos, nossas dores, nossos sonhos.

Há chaves cujo peso é imenso. Mesmo que não usemos, elas nos são caras. Devolvê-las dói, não porque não poderemos mais acessar o que há por trás de uma tranca. Mas porque já não somos alguém cuja confiança seja digna de ter uma chave. Porque estamos agora do lado de fora.

Nem sempre somos senhores de nossas próprias trancas, de nossas próprias chaves. Às vezes as pessoas podem abrir nossas fechaduras muito tempo depois que já, supostamente, deveríamos ter tomado as chaves de volta. Muito tempo depois que lhes devolvemos chaves de portas.

Algumas pessoas simplesmente podem empurrar nossas portas, e entrar, quando quiser, em nossos lugares mais recônditos, mais inacessíveis, mais bem guardados. Tirar-lhes as chaves está fora de nosso alcance. Porque para elas não há sequer portas a guardar esses segredos. As portas estão sempre abertas, as feridas sempre expostas. Não há como trancar essas dores, nem estancar essas feridas.

Nem todos os unguentos vão aliviar. Não tem remédio nem nunca terá.