sexta-feira, março 28, 2014

O patriarcado é um estupro à humanidade



Sei que não foram poucos os que, como eu, ficaram enojados, revoltados e tristes demais ao ver hoje estampada nos jornais a divulgação dos resultados da pesquisa do IPEA que, entre outras atrocidades, afirmava que a maior parte da população brasileira (65%) acredita que se uma mulher está usando uma roupa que mostra o corpo, ela "merece ser atacada", ou que "se as mulheres soubessem se comportar haveria menos estupros", ou ainda que as mulheres casadas devem satisfazer seus maridos na cama, com ou sem vontade (27%, ou 38,5% se incluirmos os que concordam "parcialmente"), ou que existe "mulher para casar" (54,9%).

São resultados escandalosos, que atestam o que qualquer um que preste atenção na realidade ao seu redor pode facilmente verificar: vivemos em uma sociedade incrivelmente machista, em que as mulheres estão constantemente submetidas a diversas ameaças e abusos: agressões físicas, estupros, humilhações, abusos verbais, salários menores, mortes por abortos clandestinos, assédios morais, sexuais, constrangimentos de todo tipo. 

As agressões costumam ocorrer em casa: pais, padrastos, irmãos, cunhados, esposos, namorados... acontecem aí porque as mulheres são consideradas "propriedade" dos homens; porque se ensina, para homens e mulheres, desde a mais tenra idade, que as mulheres tem que aprender seu lugar, serem comportadas, obedientes, responsáveis, fiéis, companheiras, carinhosas, submissas.



As mulheres são menos gente - é isso que nos ensinam. E o mais assombroso é que inclusive as mulheres aprendem e reproduzem isto. 

Diante disso, penso na reação que muitas pessoas que conheço terão - partindo da noção de que a maior parte delas faz parte dos que não concordam com tais afirmações. Muitas se sentirão desiludidas, decepcionadas, céticas: a humanidade não presta, não tem jeito, foda-se tudo; outras dirão que é necessário "cortar o pinto" de todo mundo que concorda com as afirmações (como cortarão o pinto das mulheres, que são 66% dos que responderam a pesquisa?). Outras, ainda, dirão que é necessário fortalecer o "empoderamento" das mulheres, conquistando mais "mulheres no poder" como Dilma ou Bachelet.

Realmente, à primeira vista é mais do que compreensível que dê um baita desânimo... sei que muita gente olharia pra mim e diria: "olha só, você que é comunista, que fala em revolução da classe trabalhadora, mas então: não são estes os trabalhadores, são eles que responderam a pesquisa. Aliás, a pesquisa aponta que conforme sobe o nível de escolaridade, diminuem estas posições - portanto, são os trabalhadores que mais concordam com isso. Viu só," - dirá esta pessoa, ainda por cima acreditando que sou eu que me acho "iluminado" - "sua ideia é ingênua: nenhuma revolução de trabalhadores pode combater o machismo".

Sim, é verdade: a classe operária é profundamente machista. Pudera: são eles as principais vítimas de todo tipo de ideologia burguesa. A própria pesquisa aponta o efeito disso: "Por trás das afirmações, apontam os pesquisadores, está a ideia de que a mulher somente pode encontrar a plenitude em uma relação estável com um homem – ou que deve ser recatada sem almejar uma vida de solteira com muitos parceiros. Essa ideia, segundo o estudo, tem influência marcante da religião: católicos têm chances 1,5 vez maior de concordar com a afirmação de que toda mulher sonha em casar, e os evangélicos, 1,8." E não é, desde sempre, a religião a principal forma ideológica de dominação?

A pesquisa, na verdade, aponta para a correção das ideias marxistas; foi Marx que disse que "as ideias dominantes de uma época são sempre as ideias de sua classe dominante". Pois bem: o resultado desta pesquisa é o resultado do lixo ideológico que é enfiado dia e noite na cabeça de todos, e é feito assim porque assim convém que seja feito pela burguesia - inclusive e sobretudo pelas "mulheres empoderadas" como Dilma, Bachelet, Merkel...

Metade da humanidade com salários rebaixados, fazendo trabalhos domésticos não remunerados, submetida e subjulgada e, portanto, mais facilmente dominável, explorável. Isso é a felicidade da burguesia, tudo o que ela precisa. As mulheres, objetificadas, são sua "prenda" para quem faz seu serviço sujo: para a polícia que estupra nas favelas, nos "pinheirinhos"; para as tropas de ocupação nos "Haitis"; para seus exércitos imperialistas que impõem sua vontade em todos os cantos. As mulheres são o "belo ornamento" na casa de um burguês, e a mão de obra gratuita na casa do operário. E a violência - quando não basta o convencimento - é a melhor forma de tentar mantê-las caladas.



O que esta pesquisa mostra é que, sim, precisamos de uma revolução que vire este mundo de cabeça para baixo. O que ela mostra, também, é que tomar o poder das mãos da burguesia não basta - isso é só o começo da mudança. É a partir de tomar o poder que efetivamente poderemos fazer as primeiras mudanças mais drásticas na vida das mulheres, colocando o Estado operário para garantir cada direito que hoje o capitalismo lhes nega; para educar as massas com valores radicalmente distintos do que hoje lhes ensinam as Igrejas, a televisão, a escola capitalista. Se fosse possível mudar radicalmente o que todos pensam sem tomar o poder, então poderíamos ser todos professores ou pregadores. Não: precisamos desde hoje ter uma vanguarda consciente da necessidade de lutar pela emancipação da humanidade; mulheres à frente, homens ombro a ombro, combatendo todo tipo de opressão e machismo. Nenhum ser humano é verdadeiramente livre enquanto outro é oprimido. E não há como mudar a mentalidade de uma sociedade de conjunto se todos os meios de produção, reprodução, divulgação de ideias estão nas mãos de uma classe cujo interesse é perpetuar a opressão, pois isto lhe garante manter o poder e seus lucros.

O que estou falando não é um mero exercício de imaginação. Aliás, aproveitando, convido a conhecerem um extraordinário livro que fala sobre a experiência mais avançada de emancipação das mulheres em uma sociedade, que se deu justamente na criação do primeiro Estado operário do mundo - a Rússia pós revolução bolchevique. Tive a oportunidade de ajudar com a tradução deste livro, que lançaremos em breve. Haverá debates em Minas, Rio e São Paulo com sua autora, que pesquisou profundamente os arquivos soviétivos e analisou em extensão a experiência de centenas de mulheres e a forma como o estado soviétido abordava questões como o divórcio, aborto, pensão alimentícia, emprego feminino etc. Este livro dá uma vaga ideia do tipo de transformação social que pode ocorrer na vida das mulheres se a luta por sua emancipação estiver atrelada à única via que pode abrir o caminho para sua libertação plena: a revolução socialista.



Para concluir, deixo aqui um trecho de uma biografia de John Reed - autor que pesquiso em meu mestrado - que relata um depoimento que estava sendo feito a uma comissão formada pelo Senado dos EUA, em 1919, cuja finalidade era investigar a "terrível" influência dos bolcheviques no país:

"Quais são as formas e requerimentos para casamentos e divórcios sob o governo soviético na Rússia?", perguntou o Major Humes.

"Uma simples declaração perante o comissário apropriado de que querem se casar ou de que querem se divorciar."

"Eles têm quantas esposas quiserem?"

"De forma rotativa," respondeu Stevenson.

"A poligamia é reconhecida?" Insistiu Humes.

Stevenson esquivou-se. "Eu não sei a respeito de poligamia. Não estudei tão a fundo sua sociedade."

Nelson, sempre um pouco lento mas enormemente persistente, não deixou a questão sumir. "Isto é," ele disse, "um homem pode se casar e então se divorciar quando estiver cansado e então tomar outra esposa?"

"Precisamente."

"E seguir com esta operação?"

"Sim."

"Você sabe se eles ensinam amor livre?" perguntou Overman.

"Eles ensinam," assegurou Stevenson.

Este absurdo interrogatório ocorreu, e foi retirado das atas do senado americano. Deixo, em resposta a ele, um texto escrito 71 anos antes, por Karl Marx e Friederich Engels:

Mas vós, comunistas, quereis introduzir a comunidade das mulheres, grita-nos toda a burguesia em coro.

O burguês vê na mulher um mero instrumento de produção. Ouve dizer que os instrumentos de produção devem ser explorados comunitariamente, e naturalmente não pode pensar senão que a comunidade virá igualmente a ser o destino das mulheres.

Não suspeita que se trata precisamente de suprimir a posição das mulheres como meros instrumentos de produção.

De resto, não há nada mais ridículo do que a moralíssima indignação dos nossos burgueses acerca da pretensa comunidade oficial de mulheres dos comunistas. Os comunistas não precisam de introduzir a comunidade de mulheres; ela existiu quase sempre.

Os nossos burgueses, não contentes com o facto de que as mulheres e as filhas dos seus proletários estão à sua disposição, para nem sequer falar da prostituição oficial, acham um prazer capital em seduzir as esposas uns dos outros.

O casamento burguês é na realidade a comunidade das esposas. Quando muito poder-se-ia censurar aos comunistas quererem introduzir uma comunidade de mulheres franca, oficial, onde há uma hipocritamente escondida. É de resto evidente que com a supressão das relações de produção actuais desaparece também a comunidade de mulheres que dela decorre, ou seja, a prostituição oficial e não oficial.


sábado, março 08, 2014

Greve dos garis: um exemplo que vai fazer história!

Os proletários não têm nada a perder 
a não ser as suas correntes. 
Têm um mundo inteiro a ganhar.

- Karl Marx e Friederich Engels, Manifesto do Partido Comunista

Os que mais sofreram com o velho são os que lutarão
 com mais empenho e abnegação pelo novo.

- Leon Trotsky.



Olho as fotos das manifestações dos garis no Rio e penso: nunca em minha vida vi uma foto no Brasil com tantos negros juntos. A manifestação parecia uma insurgência de escravos insurretos transportada diretamente para as ruas do Rio. E eles, alcançando a herança de seus ancestrais que colocaram de pé os quilombos e assassinaram senhores de escravo, cantavam "chega de escravidão!".

Não é para menos: fazendo um trabalho dos mais duros, recebiam um salário de 800 reais. Seus relatos das condições de trabalho são assustadores: baratas encontradas no pão do "cafézinho", banheiros insalubres, todo tipo de condição degradante e absurda. Eles disseram chega.

Seu espírito ao tomar as ruas era o de uma nova época, uma que a minha geração não testemunhara ainda. Era a força de trabalhadores que acreditam na sua capacidade de lutar e de vencer. De gente que não se cala diante de um prefeito, da mídia, de um sindicato pelego, de ameaças e demissões. De gente que não tem medo de lutar, porque sabe que só tem a ganhar levando até o fim o seu combate.



Eles venceram, depois de apenas oito dias de greve, ficou claro para o governo que não havia como sustentar seu combate. As mentiras, as ameaças, as ilegalidades não foram suficientes. Cada passo da luta dos garis foi correto para levá-los à vitória.

Não se dobraram diante de seu sindicato, dirigido não por trabalhadores, mas por parasitas que sobrevivem às custas do imposto sindical e se alimentam da miséria dos trabalhadores, do sangue e suor de cada um que passa os dias limpando as ruas de sol a sol. Estes burocratas já não sabem o que é pegar uma vassoura. Do que eles entendem, é de reuniões a portas fechadas com os patrões, com cafezinhos, tapinhas nas costas, sorrisos, palavras amigáveis. Estes burocratas, acostumados a seu longo reinado, não sonhariam com o que esperava eles neste carnaval. E, por isto, cumpriram seu roteiro de todos os anos: um acordinho ridículo, mal disfarçado sob o nome de "luta" em seu site ou em algum boletim qualquer. Pronto: os trabalhadores voltariam a seu lugar - explorados, oprimidos, calados, varrendo as ruas. E eles poderiam voltar à sua mamata de cada dia, vivendo com um salário dezenas de vezes maior do que o de qualquer gari. 

Sua arrogância era tanta, que quando chamaram uma assembleia pelas suas costas, os parasitas do sindicato não sentiram necessidade de comparecer. Sem seus recursos materiais e sua "legitimidade" de direção, não sairia qualquer assembleia. Mas saiu. "Tudo bem", pensaram os parasitas. "Fechamos aqui um acordo com o governo e o patrão, e amanhã tá todo mundo de volta às vassouras." Nada disso: os garis foram à greve e não reconheceram a negociação fajuta dos burocratas. Esta foi a primeira vitória dos garis: mesmo que sua greve não conquistasse nenhuma das demandas econômicas, ao passar por cima destes vendidos eles mostraram que era sujeitos de sua própria luta. Eram ELES, os garis organizados em suas assembleias, quem diziam o que queriam.



Foram às ruas, em pleno carnaval. Sua tática de aproveitar um dos feriados que enche o Rio de turistas e volta os olhos do mundo para a cidade foi impecável: mostraram com isso que sabem o exato objetivo de uma greve - golpear os patrões onde mais lhe dói, mostrar ao máximo como sem os trabalhadores eles não são nada, não podem nada. O prefeito, desesperado, procura seus aliados mais importantes: a polícia e a imprensa. Bota a guarda para vigiar trabalhadores e ajudar a direção da empresa a assediá-los. Como nos tempos da chibata e do pelourinho, a Comlurb e Eduardo Paes querem colocar os trabalhadores negros para serví-los submetendo-os pela força física. Mas a greve não para. A imprensa mostra as ruas sujas, diz que não há greve, dá toda a voz à empresa, ao prefeito, ao sindicato; e nenhum espaço para os garis falarem de suas condições de trabalho degradantes, de seu salário de fome.


Eles não se intimidam. Desde o começo, nossa pequena organização se colocou a tarefa que qualquer revolucionário digno deste nome se colocaria: estar ombro a ombro com os garis nesta luta. Nossos camaradas no Rio tiveram o privilégio de aprender a cada dia a lição destes trabalhadores que, sem nenhuma organização prévia ou apoio, ousou enfrentar o mundo. Nós, aqui em São Paulo, mesmo não podendo estar presentes fisicamente, nos apaixonamos por esta luta desde o primeiro momento. E procuramos todas as formas a nosso alcance para ajudar. Divulgação na internet para quebrar o cerco da mídia, organizamos manifestações de solidariedade primeiro em nossos locais de trabalho e estudo. Pouca coisa, muito simples, mas o que estava a nossa mão: fotos com cartazes em apoio à greve. Na USP, no Metrô, nas escolas onde lecionamos. E, mesmo com poucas forças, deu resultado. Nossa manifestação apareceu no Estadão, no UOL e em outros meios. Fomos além e organizamos atos de rua em Campinas e São Paulo, fechando por alguns momentos a Avenida Paulista com pouco mais de cinquenta pessoas.

Trabalhadores da manutenção do metrô de SP em apoio à greve dos garis
Uma das coisas que temos em comum com estes garis, cuja luta tomamos com todas as nossas forças para nós mesmos, é a ousadia; saber que o maior erro que podemos cometer é subestimar nossas forças e dar a vitória para nosso inimigo de antemão, sem sequer lutar. Podemos, e frequentemente vamos, sair derrotados das lutas. Mas aprendemos e nos fortalecemos com cada combate, e mesmo nas quedas que sofremos. A esquerda brasileira não sabe desta lição; e por isto, sem acreditar na possibilidade dos garis lutarem, ousarem, enfrentarem o mundo, foram tranquilamente pular seu carnaval. O apoio poderia ser outro se organizações muito maiores que as nossas, como PSOL e PSTU, colocassem desde o dia 1 de março suas forças para fazer medidas de solidariedades como estas. Não importa. Não era isto que impediria que lutássemos, e muitíssimo menos que os garis saíssem às ruas, enfrentando todas as probabilidades de uma derrota.



E o governo estava disposto a impor esta derrota a todo custo: assim, demitiu por cartas e mensagens de texto no celular mil trabalhadores, dizendo que os substituiria. O governo e os patrões, quando o calo aperta, não têm medo de passar por cima das leis que eles mesmos fazem, como o direito constitucional de greve. Sabem que os juízes jogam no seu time. E sabem que a demissão de um afeta todos os trabalhadores, com medo de perderem seu emprego.

A segunda vitória fundamental da greve dos garis foi esta: não abaixar a cabeça diante de todos os ataques de seus inimigos. Saber que, se o cerco aperta, é necessário fortalecer as posições, procurar mais aliados, e seguir o combate se houver forças para tanto. Seguiram em luta. Começaram a furar o cerco e ganhar o apoio de diversos setores da população. Quando terminou o carnaval, a esquerda "de férias" voltou para a realidade e viu que esta greve era pra valer, e que era necessário apoiá-la. Ainda que o tenham feito de forma rotineira, como quem cumpre um velho calendário gasto, este apoio ajudou também.

Os garis não se dobraram. Estavam dispostos a lutar até o fim. Como os negros insurretos do Quilombo dos Palmares, que resistiu até a última gota de sangue contra a escravidão, e lutou quando já não havia esperança de vitória. Porque, uma vez que se sente o gosto de liberdade, de ser sujeito de sua própria história, já não se quer mais voltar atrás. E este sentimento, que cala fundo no peito de um trabalhador que toma consciência de que é ele quem bota este mundo pra funcionar, faz com que entendamos que frequentemente é melhor ser derrotado com a cabeça erguida do que seguir olhando para baixo. 

Esta determinação é que fez o que parecia impossível a apenas oito dias: os garis derrotaram a arrogância do prefeito, que publicamente declarava que era um "motim" que seria derrotado a qualquer momento. Conseguiram o aumento de seu salário, de R$800,00 para R$1.100,00, com aumento do ticket refeição de doze para vinte reais. E impuseram que não houvesse nenhuma demissão. Nas matérias na imprensa, se dizia: "garis saem insatisfeitos com o resultado." E é esta a terceira, e a maior vitória desta greve: saber que uma batalha que se vence contra os donos deste mundo é apenas um sinal de que sua dominação se sustenta, antes de mais nada, na mentira de que são invencíveis. Eles não são; e sem os trabalhadores, os patrões não são nada. A vitória dos garis no Rio entrará para a história da luta da classe operária no Brasil como a aurora de um novo despertar de consciência, de uma classe que começa a acordar de um longo e profundo sono, a lentamente tomar consciência de seu poder, de sua capacidade de se organizar e tomar para si a tarefa de se libertar e, junto consigo, libertar o conjunto da humanidade.

Não é nada menos do que isso o legado da greve dos garis do Rio de Janeiro, que transformou este carnaval em um momento para ser lembrado.