quarta-feira, dezembro 24, 2014

Barbáries cotidianas – A mulher das hérnias



Quando pensamos na célebre previsão de Rosa Luxemburgo, que dizia que à humanidade havia duas alternativas de futuro, o socialismo ou a barbárie, logo nos vêm à mente os episódios mais catastróficos a que o capitalismo nos conduziu, e que confirmam sem margem para dúvidas a correção do que afirmou essa, que foi uma das grandes dirigentes revolucionárias de todos os tempos. As guerras mundiais, os extermínios em massa, as crises econômicas, desemprego, guerras civis. São muitos os episódios de barbárie sem igual que se fizeram sentir pelas mãos da burguesia para preservar viva e atuante a sua dominação. Nos tempos atuais, em que se agrava cada vez mais a crise mundial do capitalismo, a cada dia essa disjuntiva recobra sua atualidade. Grupos neonazistas se organizam na Europa; planos de austeridade atacam trabalhadores, jovens e direitos sociais; repressão a todo momento aos levantes contra essas medidas. A única saída que o capital pode oferecer é essa, agora, ontem e sempre: a barbárie.

Mas a barbárie existe em muitas formas. Ela não está presente só nos grandes momentos de absurdo. Na verdade, em uma sociedade doente e podre como essa ela está presente o tempo todo, em tudo que é canto. Basta parar e olhar. É que é tanta dor e miséria que muitas vezes nossos olhos calejam, a vida nos torna insensíveis e brutos para o sofrimento ao nosso redor. É também um mecanismo de defesa, para conseguirmos também continuar a viver, apesar de tudo. Mas é preciso desnaturalizar a dor, sentí-la novamente a cada dia. Indignar-se com ela. Transformá-la em luta, organização.
São as pequenas barbáries cotidianas que sustentam esse mundo selvagem, em que “a mão invisível do mercado” é a responsável por arrasar com as vidas dos bilhões e bilhões de seres humanos que têm apenas a sua força de trabalho para vender. E, ainda mais, dos que muitas vezes nem essa possibilidade têm. Trabalhando no metrô de São Paulo, um simples peão da operação, oito horas por dia na estação, tem muitas oportunidades de ver todo tipo de retrato dessas pequenas barbáries. Essa semana vi (no mínimo) uma delas.

Estava no meu posto na estação Luz, ao lado de algumas catracas que dão acesso à rua, e recebo um aviso sonoro para entrar em contato com a Sala de Supervisão de Operação, mais conhecida como SSO. Dizem-me para levar a cadeira de rodas ao bloqueio oeste. Esse lugar, o bloqueio oeste, é a linha de catracas que fica na integração entre linha 4 amarela, linha 1 azul do metrô e as linhas 11 e 7 da CPTM (trens). Recebe alguns apelidos carinhosos dos funcionários da estação, como “porta do inferno” ou “faixa de gaza”. Ali, milhares e milhares de pessoas passam apressadas, acotovelando-se, muitas vezes xingando algum funcionário, em geral por algo que não é culpa dele. É um desses lugares do metrô que dá pra esperar que aconteça de tudo.

Chego ao bloqueio com a cadeira, encontro uma colega amparando uma senhora de idade, curvada, apoiada na parede. Ajudamos ela a sentar. A colega me relata rapidamente: “Ela tem seis hérnias, pisaram nela ao passar na catraca.” Conduzo a cadeira à sala de primeiros socorros, onde ofereço um copo de água à senhora e me sento à sua frente para ouví-la e saber como ela está. Pergunto se está bem, se sente dor.

“Ai, tá doendo bastante. Eu tenho seis hérnias, bico de papagaio, passei a noite com dor e agora dei um jeito de sair de casa, aí esbarraram em mim, deu uma dor imensa.”

Ela vê que estou atento e interessado, e continua:

“Eu fiquei com esses problemas por causa do trabalho, começou com uma dorzinha, mas aí eu tinha que continuar trabalhando, foi piorando, piorando. Até que um dia fiquei toda travada, não conseguia nem me mexer. Ainda bem que estava na casa da minha filha, ela me ajudou. Olha, levei dois anos pra conseguir uma consulta com um especialista. Aí, quando cheguei lá a ressonância que tinha feito já nem valia mais nada, tive que fazer outra. Ele nem olhou na minha cara, não perguntou nada, o que eu já tinha feito, onde tinha passado. Pegou e me encaminhou de volta pro posto de saúde perto da minha casa, onde eu já tinha ido. Fiquei dois anos esperando pra ele me mandar de volta pro primeiro lugar que tinha ido. Quando cheguei lá eles me encaminharam pra fisioterapia. E agora estou indo pra minha primeira sessão da fisioterapia e me acontece isso.”

Olho no rosto cansado da mulher. É o rosto gasto de quem trabalhou muito, durante muitos anos; ela evidentemente sente dor, mas carrega a expressão de quem já se acostumou a sofrer calada, a engolir a dor e levar adiante. O rosto de quem não pôde parar um segundo pra sentir a dor, porque a conta no fim do mês não ia esperar um segundo para ser paga. Ela respira, joga um pouco de água gelada que dei a ela sobre a perna dolorida. Enquanto isso, eu lembro da Santa Casa fechando suas portas por uma dívida de quase oitocentos milhões de reais, uma dívida que cresceu por décadas e foi causada pela corrupção. Enquanto pessoas como essa senhora amargavam filas de dois anos para ver um médico que não pergunta qual é o problema e não escuta seus pacientes, os administradores dos hospitais públicos enchem os bolsos com o dinheiro de remédios superfaturados. Remédios que a população não tem dinheiro para comprar, e que não tem como conseguir nos hospitais parasitados pelas empresas privadas como a gestora do almoxarifado da Santa Casa ou as Organizações Sociais que administram os hospitais públicos. A dor no rosto daquela senhora era o retrato do descaso pela saúde dos trabalhadores; seu corpo, destruído pelo trabalho que enriqueceu seus patrões, agora era destruído novamente pelo dinheiro desviado da saúde pública que enriqueceu empresários e governantes.

“Vamos, acho que já estou melhor, já dá pra ir.” Ela não parecia muito melhor, na verdade. Poderia oferecer um táxi para levá-la ao Pronto Socorro (por enquanto o metrô ainda dispõe disso), mas não adiantaria: ela estava ali a caminho da fisioterapia, já estava indo fazer o mínimo (máximo) que o Estado lhe garantiu para tentar melhorar... depois de anos esperando. Conduzi ela até a plataforma, e ali, ao esperar o metrô, ela se despediu de mim.

“Obrigado, meu filho, deus te abençoe. Que bom vocês trabalhando aqui, ajudando. Que bom que tem gente que nem vocês pra ajudar a gente.” Eu não fiz nada de mais, apenas ajudei ela a chegar no trem. Penso que ter ouvido o sofrimento que ela passou, sendo jogada de um lado pra outro que nem um trapo sujo sem uso, infelizmente já parecia tanto para aquela senhora. Já era mais do que o médico especialista, que ela esperou dois anos para ver, havia feito por ela. Já era mais do que esse mundo doente espera que façamos por um companheiro abatido por essas pequenas barbáries que nos levam de dia em dia. Eu queria poder fazer mais por ela, mas ali eu era só um peão, e não tinha muito que pudesse fazer. Engulo essa dor amarga, que queima lá dentro, esperando pra explodir junto com a de outros milhões. O futuro não será a barbárie, porque não mais permitiremos.

sexta-feira, novembro 14, 2014

Os médicos que tudo podem, os pretos que nada podem

Veio à tona um escândalo na Faculdade de Medicina da USP, onde os alunos estupravam sistematicamente suas colegas mulheres, tanto utilizando drogas nas festas como a coação física, como mostram os relatos de diversas estudantes, que deram depoimentos da Assembleia Legislativa (ALESP) e na mídia.

É monstruoso, chocante, mas, infelizmente, para quem já conheceu uma faculdade de medicina por dentro, como eu tive o desprazer de fazer, não chega a ser surpreendente. Um pouco dessa falta de espanto é demonstrável pela atitude do diretor da Faculdade de Medicina, ao pressionar os deputados pelo cancelamento da audiência pública na ALESP sobre os casos de estupro. O diretor queria evitar jogar o nome da faculdade na lama. Quem, inclusive, quer contribuir dentro da faculdade para "jogar o nome na lama" é caçado e expulso: assim aconteceu com Paulo Saldiva, que dirigia a apuração interna da USP sobre os casos, em relação aos quais a universidade, evidentemente, cala e faz de tudo para abafar.

É isso: o nome deles nunca deve estar na lama, mas eles mesmos só existem na lama. A lama da "máfia de branco", como me apresentou meu veterano quando passei pela Medicina Santo Amaro. A máfia de branco que "protege os seus", escondendo casos de negligência médica, lucrando fortunar com seus esquemas com laboratórios, fazendo seu pequeno clube de privilegiados, de médicos que se consideram pessoas superiores às outras.

A sociedade assim o diz: os médicos, grandes detentores do saber, da verdade, dos diplomas de medicina, da regulação de nossos corpos e mentes. Eles detém a autoridade para falar sobre nossa vida e nossa morte. E, por que então não poderiam fazer sexo quando quisessem, com quem quisessem e como quisessem? Eles podem tudo, e têm a certeza absoluta da impunidade. Quando matam pacientes por negligência ficam impunes, porque com um estupro na faculdade seria diferente?

Já falei um pouco sobre como funciona essa casta de privilegiados antes por aqui. Relatei, por exemplo, o hino da faculdade onde estudei, e seu caráter reacionário e machista. Esse tipo de música, aliás, não é exclusividade da medicina, mas é praticamente unânime entre todas as atléticas universitárias. Claro que, querendo estar sempre em primeiro lugar, nesse quesito também a medicina quer ser a campeã, e por isso investiu em fazer as mais degradantes, retrógradas e asqueirosas músicas, como foi divulgado recentemente sobre a Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, também da USP. Numa mistura de misoginia e racismo, a música é um verdadeiro hino à imbecilidade, mostrando o quão baixo pode chegar o pensamento desses exemplares da "elite" de nossa sociedade.

Pixação mostra a ideologia da "elite universitária"

A medicina, enquanto for um produto a ser vendido - e muito caro - e também um símbolo de status para ser consumido por imbecis deste calibre, que ao ingressar no curso passam a se julgar no direito de tratar todos os demais seres humanos como "carne barata" (em particular os pacientes pobres, negros e as mulheres), está fadada a reproduzir esse tipo de monstruosidade que vemos acontecer todos os dias. É um pouco do que Foucault explica com seu conceito de "biopoder", de como a medicina passa a ser uma instituição social reguladora. Isso não pode acabar dentro de uma sociedade onde tudo é mercadoria. Enquanto houver capitalismo, a medicina não pode ter outra face.

Enquanto eram divulgados esses escândalos, que a direção da faculdade de medicina e da USP tentam em vão abafar com todos os seus recursos, surgiu outra notícia na mídia sobre pessoas que estão bem distantes da faculdade de medicina: imigrantes haitianos em São Paulo. 300 deles estavam morando como podiam em um prédio no centro da cidade, quando foram desalojados pela polícia militar, que exercia sua função mais importante: a manutenção da propriedade dos ricos em detrimento do direito dos pobres.

Os imigrantes haitianos vieram ao Brasil procurando emprego, procurando fugir da miséria que corrói a população de seu país há gerações. Os haitianos dizem que foram iludidos a vir para o Brasil pelo governo. Não têm aqui alojamento, saúde ou escola, e a maior parte deles não sabe falar português. Foram avisados que perderiam suas casas provisórias e precárias pelas tropas do batalhão de choque em frente ao seu prédio.

Imigrantes haitianos em Brasiléia, no Acre, vivem em alojamentos precários

Da mesma forma que os estupros da medicina e os privilégios dos médicos, a miséria que assola o povo haitiano não se fez por milagre. Ela foi imposta com muito sangue após o Haiti fazer a primeira revolução negra na história, sendo o primeiro país a abolir a escravidão no mundo, derrotando as tropas de Napoleão para conquistar sua independência. Eles foram um exemplo para todos os escravos e negros do mundo; um exemplo que precisava ser sufocado. E séculos de opressão imperialista seguiram esse fato, destruindo completamente a economia haitiana e colocando ali ditaduras fantoches, impedindo seu povo de exercer a liberdade que conquistaram com a luta. Nessa história de escravidão, o Brasil tem seu quinhão: há des anos está dirigindo as tropas da ONU (MINUSTAH), que mantém uma ocupação militar no país. Essas tropas reprimem greves operárias, manifestações estudantis, qualquer organização do povo.

Como os estudantes de medicina da USP, os soldados da MINUSTAH se sentem muito poderosos diante do povo que oprimem, portanto suas armas com licença da ONU para matar. Como na medicina da USP, eles usam sua autoridade para estuprar mulheres, muitas vezes em troca de comida para que elas possam alimentar seus filhos famintos. A comida mais popular no Haiti hoje são biscoitos feitos de barro.

Quando os haitianos saem de seu país para procurar empregos, eles encontram mais miséria e exploração. Muitos deles têm chegado ao Brasil, e trezentos calharam de chegar a São Paulo, e encontrar um lugar para morar em um prédio vazio no centro. O prédio é uma propriedade privada, cujo proprietário é a Arquidiocese de São Paulo, aquela mesma Igreja Católica que durante séculos legitimou ideologicamente a escravidão contra a qual os haitianos lutaram e venceram. Essa Igreja, tão caridosa, recorreu à Polícia Militar para expulsar os haitianos de seu prédio e poder continuar a fazer sua caridade. Os haitianos, que não sabiam disso pois estão em um país estrangeiro cuja língua não falam, foram enganados por alguém que lhes cobrava aluguel para morar na propriedade da Igreja. A polícia, no entanto, não quer saber de quem enganou os haitianos: o que ela quer é defender a propriedade da Igreja, e para isso mobiliza suas tropas e desvia o rumo de 30 linhas de ônibus para poder fazer valer sua lei de ferro e fogo.

Em um mundo como o nosso, funciona assim: os pretos foram mercadoria durante séculos para que os brancos os comprassem e vendessem. Hoje, são mão de obra barata e não têm direito a morar no prédio que é da milionária e poderosa Igreja que legitimou sua escravidão. Já os brancos bem nascidos estudam medicina e estupram suas colegas, assassinam seus pacientes, e ainda fazem músicas que cantam em alto e bom tom orgulhando-se disso. Se há alguém que possa encontrar argumentos justos para defender esse mundo, que fale agora. Se ela é indefensável, como eu acredito que seja, não fiquemos assistindo sua injustiça calados. Mudemos ela com urgência.

segunda-feira, novembro 10, 2014

Entrevista com Rodrigo Ciríaco, autor de "Te pego lá fora"



Na próxima terça-feira a Editora DSOP irá relançar um livro que, a meu ver, já se tornou um clássico da literatura contemporânea brasileira. O "Te pego lá fora", de Rodrigo Ciríaco, lançado originalmente em 2008 pelas Edições Toró.

O lançamento vai ser 18 de novembro, a partir das 19h, na Livraria Cultura. Tive o privilégio de estar no primeiro lançamento há seis anos e pretendo ir novamente nesse.

Aproveito a deixa pra publicar aqui uma entrevista que o Rodrigo gentilmente me cedeu em 2008 para um trabalho da matéria de Didática que estava fazendo na licenciatura. Várias perguntas são baseadas nos contos de "Te pego lá fora", então pode ajudar a deixar o pessoal um pouco mais curioso pra ir no lançamento.




Entrevistador:  Conte um pouco sobre sua formação escolar. Onde estudou? Como era a escola? Como era sua relação com colegas, professores, funcionários, instituição?

Rodrigo: Estudei na Escola Estadual Profa. Irene Branco da Silva. Fica na Vila Rui Barbosa, subdistrito da Penha, Zona leste de São Paulo. Era uma boa escola na época que entrei e que foi se degradando com o tempo. Havia turmas de todos os períodos (na época, Primeiro e Segundo Grau), e lembro de ter participado de atividades no laboratório, biblioteca, quadra, além, claro, da sala de aula. Utilizei bem todos os recursos pedagógicos disponíveis.
            Eu era um CDF na escola. Só que não era um cara fechado, quadradão; pelo menos não depois da oitava série, quando passei a estudar no período noturno. Tive uma relação muito boa com colegas de classe, funcionários, professores da escola, ou seja, com toda a instituição. Claro, até o momento que eu fiz o papel de “bom-mocinho”, pois quando fui tentar organizar uma festa para ajudar um professor muito querido por todos na escola que estava com um sério problema de saúde, tive uma relação conflituosa com a direção, que não queria autorizar a festa. Fiz um abaixo-assinado, colhi centenas de assinaturas, discuti a questão com colegas da escola e, mesmo não tendo realizado a atividade, foi importante para marcar posição e provocar a direção; além de constatar que eles nem sempre faziam o que era melhor para os alunos, mas o que era conveniente para eles.

E:  O que motivou sua escolha pela carreira de professor? Quando tomou esta decisão?

R.: O que motivou mesmo a minha escolha pela carreira foi ter conhecido bons professores de história ao longo de minha trajetória discente, em especial nos últimos anos do Segundo Grau e um professor do cursinho. Mas, como eu falei, eu era um aluno CDF. E gostava de sentar com colegas, ajudá-los nos momentos de dificuldade, participar de seminários, etc. Acho que eu já tinha uma pré-disposição para a carreira docente. Mas a decisão, mesmo, só foi aos quarenta minutos do segundo tempo, pouco antes de indicar a opção nos vestibulares da Unesp e Fuvest. Antes, eu havia pensado também em Psicologia.

E:  Na sua descrição que aparece no livro “Te pego lá fora” é dito que você já recebeu propostas para lecionar em instituições de ensino privado. No entanto, você recusou. Por que esta opção pelo ensino público? Para você, o que está em jogo na oposição entre ensino público e privado?

R.: Primeiro, eu sempre estudei em instituições públicas de ensino. Desde o pré, até a Faculdade (formei-me na USP). Tenho uma convicção de que todo o investimento de dinheiro público que foi feito na minha formação, na minha pessoa, tem que, de certa forma, ter um retorno à sociedade. Acredito que este retorno se dá a partir do momento em que eu faço a opção de trabalhar numa instituição pública de ensino, apesar das enormes dificuldades: administrativa, organizacional, salarial, pedagógica, etc.
            Outra coisa é que eu acredito que a Educação deveria ser pública, gratuita e de qualidade, para todos. Sem distinção. A partir do momento que transformamos a Educação em mais uma mercadoria, separamos o que algo é algo de Direito para todos em um objeto de consumo – com variantes qualitativas – disponíveis para poucos, reproduzimos um problema seríssimo: a desigualdade. Então, por isso esta opção pelo ensino público, gratuito.
            Hoje em dia eu até repenso esta minha opção em não trabalhar em colégios particulares. Em certos momentos eu acho que até deveria estar lá para provocar esta instituição, provocar os valores que ela traz em si e os valores que os alunos que a freqüentam possuem. Mas não sei se conseguiria conciliar com o ensino no Estado e, dentro da minha chatice, sinceridade e seriedade que compartilho na minha profissão, acho que não duraria muito tempo também.

E: Conte um pouco sobre suas primeiras impressões como professor. O que mais lhe marcou no início da vida docente? O que foi mais fácil/difícil, interessante, etc?

R.: O que mais me marcou no início foi o “batismo de fogo”, realizado pelos professores. Lembro muito bem da experiência que foi a primeira vez que eu entrei numa sala de professores: as pessoas me olhando, tal qual eu fosse um animal, um objeto estranho. Uma curiosidade excessiva de olhares sobre a minha pessoa, uma coisa invasiva. Eu tinha apenas vinte anos, uma cara de moleque de Ensino Médio na sala dos “Veteranos”. Quando eles souberam que eu era o professor substituto que havia atribuído algumas aulas livres, quase deram risada. O que choveu foi conselho: - “Olha, cuidado. Nessa escola só tem animal.” “Rapaz, bem-vindo. Seja firme, você vai entrar numa jaula.” Foram estas palavras utilizadas. Ou seja, recepção melhor, não podia ter existido...
            Para mim o que foi mais fácil foi a relação com os alunos. Descobrir que eles não são aqueles “animais” que os professores apontam. São difíceis de lidar, como toda criança e adolescente algumas vezes são muito difíceis, mas não a ponto de desumaniza-los daquela maneira. Procurei sempre vê-los como gente, como pessoas, em primeiro lugar tratá-los com respeito para poder exigir isso deles. Isso facilitou muito.
            A minha maior dificuldade foi com a minha insegurança. A dificuldade em acreditar que eu era capaz de lecionar, que eu podia fazer aquele trabalho. Isso foi, e em partes ainda é, o mais difícil para mim. Com o tempo eu descobri que a experiência prática das coisas vai nos trazendo mais segurança. O tempo é um fator muito importante. E além disso, a preparação, o estudo, são vitais para diminuir esta sensação. Quanto mais preparado, mais organizado em relação ao que ia fazer eu estava, menos inseguro eu ficava. Ainda que nada do que eu tivesse preparado fosse executado da maneira como eu pensei, se eu me preparei, mais seguro estava.

E: O conjunto de experiências relatadas em seu livro chama a atenção para diversos problemas encontrados em grande parte das escolas públicas atualmente. Gostaríamos que você relatasse um pouco como você enfrenta alguns destes problemas, por exemplo:

a) Em contos como “Cara-de pau”, “Um estranho no cano”, “Socá pra dentro”, “Medo”, podemos perceber uma relação extremamente hostil dos professores e funcionários da escola em relação aos alunos, que são frequentemente insultados, ofendidos, humilhados e até mesmo agredidos fisicamente. Como você lida com esta situação no seu dia-a-dia? Você tem alguma opinião sobre as possíveis causas deste problema?


R.: Com muita revolta. A hostilidade, ofensas, humilhação e violência é uma situação quase que cotidiana dentro da escola. Tanto por parte de alguns alunos, quanto por parte de funcionários e professores.
            Da minha parte, eu tento lidar com esta situação através do diálogo, respeito. Algo que não abro mão dentro de sala de aula ou da própria escola é o respeito.    Estabelecermos sempre uma relação cordial, onde as regras do contrato – pedagógico – tem que ser claras, o papel de cada um naquele espaço, tem que estar claro. E quando não estão, quando este contrato é violado, por alguma das partes, tem que sentar e conversar. O diálogo, a clareza das coisas é fundamental dentro da escola. E quando o diálogo, a conversa, a clareza das coisas não funciona, sanções, reparações e punições devem ser aplicadas.
            Com relação a colegas e alunos, tento orientar, ambas as partes. Se observo alguma postura que não gosto de algum companheiro, tento chegar, conversar. Se for amigo, um bate-papo informal, trocar uma idéia; se não for, expor a situação, o problema em algum espaço legitimado para isso, seja um HTPC, seja um conselho de classe. E, no caso do aluno, eu relato o que ele pode fazer a nível institucional para resolver o problema.
            Algumas idéias sobre a causa deste problema eu penso que são: a desorganização do espaço escolar, tanto administrativamente quanto pedagogicamente; a falta de autoridade (não autoritarismo) e profissionalismo por parte de alguns profissionais da educação; a falta de regras claras que definam os papéis de cada um dentro daquele espaço, entre outros.

b) Em contos como “A.B.C.”, “Aprendiz”, “Bia não quer merendar”, “Nos embalos”, “Questão de postura”, “Miolo mole frito”, “A placa”, são retratadas situações que muitas vezes ultrapassam os muros da escola e mostram a extrema violência, em diversos aspectos, a que estão submetidos os alunos. Em diversos casos tais situações chegam a provocar a evasão escolar, como em “A placa”. Como você encara esta situação? E a instituição escolar? Há alguma preocupação com a vida dos estudantes por parte dela?

R.: Vejo isto como um problema muito sério. Na escola, acabamos por estabelecer uma relação humana, pedagógica, social com os alunos, baseada principalmente na confiança. Depois que você está há um tempo na escola – pelo menos um ano, um ano e meio, acredito – desenvolvendo um trabalho sério com uma mesma turma, você consegue adquirir a extrema confiança deles. E com isso, muitos destes casos que aparecem as vezes de maneira superficial – no sentido de só vermos a ponta do iceberg – são apresentados a você de uma maneira mais profunda, mais intensa, até como forma de compartilhar não apenas a violência, o problema, mas a sua solução.
            Da minha parte, procuro não me omitir quando vejo uma situação destas. Converso muito com os alunos, com o seu consenso informo a situação à Coordenação, à Direção da escola; se necessário converso com os responsáveis. A questão das drogas, a violência doméstica, o abuso sexual, o trabalho infantil, entre outros, são questões que estão colocadas, existem, não podem ser ignoradas. Só que é muito difícil lidar com isto já que muitas vezes lidamos sozinhos com estas situações. A escola, enquanto instituição, deveria responsabilizar-se, mas infelizmente não o faz, e quando o faz, faz de uma maneira equivocada. Eu creio que os profissionais que fazem parte dela não estão preparados – como muitas vezes eu não estou – mas o maior problema é o desejo de não querer se aprofundar nestas questões, já que elas demandam tempo, responsabilidades e muito trabalho. Somados ao nosso já cotidiano massacrante, estas questões são muitas vezes ignoradas ou postas de lado, o que não resolvem as violências pelas quais estão submetidas estas crianças e adolescentes.

c) Em contos como “Da frente do front”, “Papo reto”, “Perdidos na selva”, “Um estranho no cano”, a situação de tensão constante também parece afetar a relação entre os professores, entre estes e a direção da escola, e daqueles que trabalham na escola com as outras pessoas de seu convívio social. Frequentemente os professores que acreditam na educação pública como um princípio aparecem taxados como “idealistas” ou “ingênuos”, e são coagidos moralmente para se “enquadrar no esquema” e agir como todos os demais. Conte como você lida com esta situação no seu cotidiano.

R.: Olha, algumas vezes eu dou risada, em outras eu finjo que não é comigo. Muitas vezes eu tento apenas ignorar este tipo de comentário, mesmo porque se for rebater a toda hora, a todo instante em que eles são manifestados, não faria outra coisa na escola. Mas há determinados momentos que precisamos questionar estas opiniões e posturas, principalmente quando isso se manifesta quase como uma coerção moral. Mesmo porque senão acabamos caindo na idéia de que não é possível mudar, de que nada funciona, nada dá certo. Algumas vezes eu sinto isto, claro, faz parte, dependendo do dia, dos problemas e situações que enfrentamos, ficamos enfraquecidos, querendo desistir. Mas no dia que eu tiver a desistência total como princípio, como muitos colegas meus já fizeram, eu abandono a escola. Acredito que será mais salutar para mim, para os profissionais que me rodeiam e para os alunos.

E: Em “Da frente do front” é mostrada a relação conflituosa existente entre os professores e alunos que defendem a escola pública e o governo, responsável por sua gestão. Em “Papo reto”, este mesmo conflito é colocado dentro dos muros da escola, com a direção. Como você enxerga a gestão da educação pública hoje em dia? Ela é democrática? Você considera que possui autonomia para desenvolver seus projetos e seu método pedagógico? Como você lida com isto?

R.: Pergunta um “tantinho” quanto complexa. Primeiro, precisamos definir o conceito do que entendemos por democracia. Democracia é “o poder pelo povo”? Certo. Mas entendo que, na instituição escolar, democracia é a garantia de você ter direitos. Ou seja, uma escola democrática, pra mim, é aquela que garante um bom aprendizado e desenvolvimento do aluno, enquanto estudante e enquanto ser humano. Avaliando por este ponto, nossas escolas não são democráticas. Não apenas porque os alunos não participam das instâncias de decisões – e existem algumas delas que eles não devem participar, já que existe a necessidade de uma certa maturidade e aprendizado técnico, profissional – mas porque eles não estão tendo a garantia dos seus direitos respeitados. Desde o direito mais básico, como o direito à vida e ao desenvolvimento pleno e seguro, quanto o seu direito à educação, cultura, lazer, respeito. Isto não está acontecendo em nossas escolas.
            Com relação ao desenvolvimento de projetos pedagógicos, temos autonomia sim. Em alguns pontos, autonomia até demais, eu acho. Pois o fato de não haver uma fiscalização, de não haver uma cobrança sobre o trabalho dos professores, é parte da responsabilidade desta lambança que temos hoje no ensino.
            Por outro lado, não concordo com o método que a Secretaria de Educação Estadual está querendo “corrigir” este erros, com os “caderninhos” de proposta curriculares para o ano letivo. Aquilo chega a soar como ridículo. Primeiro porque desconsidera todo o aprendizado, toda a formação profissional do professor, responsabilizando-o pela nossa situação catastrófica por “não saber ensinar”, e as coisas não são bem assim. Segundo, o Estado, com estes cadernos, faz o professor se comprometer com metas pelas quais ele sabe que o professor não poderá cumprir. Por exemplo: em História, nos quatro anos do ciclo II do Ensino Fundamental, parece que somos obrigados a trabalhar a história de “Deus e sua época”, ou seja, tudo. Isto é inviável. Seria muito mais ético fazer com que os professores estabelecessem sim, uma proposta curricular, um programa de trabalho ao longo do ano, mais um programa sincero, nas quais os profissionais pudessem se comprometer com a sua meta e realização real, na prática, e não essa proposta curricular que é quase impossível de se fazê-la cumprir com o aluno tendo o aprendizado concluído – já que esta também é uma questão posta: qual o nosso objetivo? Aplicar o programa, a proposta, na sua totalidade, como eles mandam – ou seja, conteúdo, conteúdo, conteúdo -, ou fazer o aluno apre(e)nder, de verdade, ainda que seja o mínimo e necessário? Das duas, eu fico com a segunda. Prefiro que o aluno apreenda um conteúdo mínimo proposto, com informações elementares à sua vida, e tenha domínio sobre isso.
            Que fique claro: não se trata de se comprometer com a “educação mínima”, ensinar apenas o básico aos alunos, não é isto. Mas rever a nossa proposta curricular atual e determinar o que é viável, praticável e possível inclusive para que isto possa ser cobrado e sua execução avaliada.

E: Por fim, podemos ver hoje em dia uma série de conflitos políticos colocados na cena da educação pública, com diversas greves e protestos dos professores não apenas pelo aumento salarial, mas também contra políticas do governo estadual. Como você vê o papel político dos professores atualmente? Qual a sua importância? Como você enxerga a atuação da APEOESP?

R.: Os professores não tem um papel político atuante atualmente, com raras exceções, é claro. A maioria está de saco cheio de tudo, querendo apenas saber quanto vai cair de salário e pronto. Não os culpo por chegarem nestas situações, muitos deles devem inclusive ter sido “idealistas” como sou hoje e, por conta da estrutura, do governo, da direção, e dos raios-que-o-partam, chegaram a este ponto. Não os culpo por isto. Irei culpá-los se estiverem de saco cheio, cansados e continuarem na rede, empurrando com a barriga, fazendo um péssimo trabalho, enganando os pais, a sociedade, os alunos. Aí devem ser responsabilizados. Mesmo porque, eu fico pensando – agora, neste exato instante – se houvesse um êxodo em massa de profissionais da educação, um grito de “Basta!” emitido pelos professores, talvez o governo tivesse que fazer mudanças que são profundamente necessárias em relação a nossa categoria.
            Os professores não são valorizados hoje em dia. E por responsabilidade sua, em primeiro lugar. O docente não se valoriza muitas vezes enquanto pessoa, enquanto profissional – na sua formação. O governo só complementa o trabalho.
            A APEOESP deveria servir para alguma coisa, já que é um dos maiores sindicatos da América Latina. Eu ainda estou tentando descobrir para o que ela serve, por isso que sou filiado. E apesar do número de professores sindicalizados, não acho que ela tenha a representatividade em nosso meio como parece. E para mim um dos problemas é que ela mesmo não se leva a sério.
            A APEOESP deveria defender a educação, mas ela só sabe defender a corporação. Isso, é grave. Pois o fato de uma pessoa ser professor não significa que ela é uma boa pessoa, um bom profissional. Qualquer ser humano que estude, faça uma faculdade boca-de-esquina qualquer ligado à área educacional pode se tornar um docente, e aí? Por isso ele se torna um cara, uma mina legal? Então não acho que todo professor é defensável, e a APEOESP faz isso – não que não tenha direito de defesa, mas não se pode colocar todos como “santos” como este sindicato muitas vezes faz.
            Outro problema da APEOESP é que ela sempre coloca, como carro-chefe de suas reivindicações, a questão salarial. É claro, é óbvio que o professor precisa ganhar melhor, ter um bom plano de carreira, isto é óbvio. Mas uma coisa eu tenho como certa: ainda que houvesse um aumento de 100% dos salários dos professores, não ia ter mudanças substanciais na qualidade da educação paulista. Não creio. O que ia mudar é que o poder de consumo, o poder de compra destes professores iriam aumentar, mas não acredito que isso fosse ter um grande impacto na educação. Muitos docentes não iam abandonar seus outros cargos por conta do aumento, muitos docentes não iam melhorar a preparação de aulas por causa do aumento, muitos docentes não seriam mais decentes, mais humanos na relação com os alunos que eles tratam como lixo, como bicho, muitas vezes, só por causa deste aumento. E o sindicato só fica nesta ladainha: aumento, aumento, aumento.         
            Acho que tem outras coisas para serem colocadas na pauta de reivindicações, não apenas como adendo, mas como proposta mesmo. Uma coisa já falei é a questão da proposta curricular: fazer uma proposta viável. Discutir, seriamente, o que o aluno deve aprender na escola, o que é possível ensinar durante um ano letivo, já que a história de “Deus e sua época” não é possível. Outra coisa: vamos diminuir o número de alunos por sala. Vinte alunos por sala, já. Pra ontem. Que se construam mais escolas, que se repense os seus horários, não importa. Vinte alunos por sala, já. É um número razoável, satisfatório e adequado para o professor trabalhar, desenvolver diferentes propostas, projetos. Entre outros coisas. Se o professor conseguisse ensinar os seus alunos dentro de uma proposta curricular viável, em que todos aprendessem, trabalhando ao longo de alguns anos letivos numa sala com vinte alunos, tenho plena convicção de que algumas mudanças surgiriam: a) a evasão, problemas de indisciplina, diminuiriam; b) a qualidade da educação melhoraria; c) alunos e professores estariam mais satisfeitos, com auto-estima elevada.
            Posso dizer, com toda franqueza, que eu dispensaria inicialmente um aumento de salário se eu tivesse condições pedagógicas, administrativas e estruturais para trabalhar, se eu estivesse satisfeito com o meu trabalho. Ficaria lá, com os meus quatro salários mínimos, sem problema. Nós, seres humanos, não somos apenas material, não é só a massa e o concreto que importam, mas precisamos de realização, precisamos saber que o nosso trabalho, o nosso investimento está rendendo bons frutos, que não é apenas um gasto, uma energia, física, emocional, mental que você aplica e vai pro espaço, não é aproveitada. Se nós conseguíssemos executar ações capazes de fazer com que tenhamos este retorno, com que tivéssemos resultados, seria muito mais benéfico para todos, e acredito que muitos de meus colegas professores estariam satisfeitos com isto.

E: Gostaria de fazer alguma consideração final?

R.: Apenas que as questões aqui colocadas são bem complexas, que eu não tive o tempo adequado para responder à todas, já que as respostas demandariam semanas, meses de pensamento, reflexão e ação, mais do que apenas a semaninha que tive para fazê-las. Dizer que Educação é algo que eu levo muito a sério, gostaria que as pessoas envolvidas neste meio também o fizessem e, se acha que não dá conta, se acha que não é possível mudar, se acha que não tem o que fazer; se você não está a fim de investir nessa guerra que parece que não terá fim e que não conseguiremos uma transformação, seja sincero contigo, abandone o barco e vá fazer outra coisa da vida. Eu mesmo já pensei em desistir – estou pensando muito nos últimos meses –, mas enquanto acreditar, prossigo. Quando desistir, se desistir, aviso. Gostaria que outros profissionais da educação fizessem o mesmo.
            Quem vai começar a mudar a educação não será o governo, não apenas. Seremos nós. Aqui em São Paulo um partido político está há quinze anos tocando o barco e não conseguiu tapar os buracos. Já estamos com a água no pescoço e afundando. Portanto, temos muito trabalho a fazer. Façamos. Não podemos perder mais tempo.

quarta-feira, novembro 05, 2014

De você eu levo



Olhares
expectativas natimortas

o desejo
que se abrigou
nas pequenas marcas
pintinhas e sulcos
cavados na tua pele

sonhos estranhos
de vida
que dormem
persistem

hesitação
memórias
da luta
do front

um gosto agridoce
melancolia
esperança
palavras cruzadas
incomunicabilidade

poemas, poemas
besteiras de um
amor que não existe

Ana Cristina
em linhas fundas
encravadas na alma

essa cicatriz que se forma
deforma
sangra
quando cutuco
na compulsão
repetição da dor

besteiras
prolongadas
sonhos
que não apagam

levo a poesia
ressentimento
gratidão

passos difíceis
rumo a...

segunda-feira, novembro 03, 2014

Cabeça de usuário

Lembro-me de um desenho do Pateta chamado "Sr. Volante, Sr. Andante". É esse aqui:


Desde que me tornei um metroviário esse desenho me vem à lembrança com frequência. A partir do primeiro dia em que entramos no metrô, todo o treinamento que a empresa nos dá é para que pensemos no usuário (esse é o termo para os passageiros do metrô) como um "outro". E não um outro como nós mesmos, mas um outro incompreeensível, incomunicável. O usuário é um adversário, quando não um inimigo. Ele está no lado oposto ao metroviário, e sempre pronto a nos prejudicar. Ele fará exigências absurdas, reclamações injustificadas, escândalos, brigas malucas, chamará nosso supervisor, tentará nos enganar. Tome cuidado com o usuário.

Então, saímos do treinamento, entramos no metrô e vamos para casa. A tarifa cara nós não pagamos, pois é um dos "benefícios" de nosso emprego. Fora isso, a vida no metrô é a mesma de antes: poucas linhas e estações, trens lotadíssimos, falhas, todo tipo de problemas. Todos os problemas que qualquer usuário do metrô enfrenta, em uma metrópole na situação de barbárie, com seus 20 milhões de habitantes e ridículos 78 quilômetros de extensão.

Mas, aprendemos, aos poucos, a esquecermos nós mesmos. Dos usuários que somos. No dia-a-dia das estações os mais de 4 milhões de passageiros que viajam todos os dias não encontram Alckmin, o secretário de transportes, o presidente do metrô, os executivos do departamento de publicidade ou relações públicas, nem os engenheiros. Quem eles veem ali, com a blusinha listrada com o símbolo do metrô, somos nós, os agentes de estação, ou, como alguns monitores fazem questão de deixar claro, "o mais baixo na cadeia alimentar do metrô". A extensão ridícula do metrô de São Paulo já estava em grande medida determinada em 1968, quando teve início sua construção, com cerca de meio século de atraso em relação à abertura do metrô de Moscou (1935) e muito mais do que isso em relação ao de Nova Iorque (1907). Mas, isso não foi suficiente, pois ele teve sua expansão dada a passos de tartaruga, regada a muito desvio de verbas e corrupção, como mostram os recentes escândalos do propinoduto (certamente apenas a ponta de um imenso iceberg encoberto).

Tudo isso, no entanto, não está na cabeça do usuário que, lá pelas sete e meia da manhã, ou lá pelas seis da tarde, está absolutamente puto da vida com a merda do metrô. Quem ele vê pela frente são as mulheres e homens de blusas listradas, ou seja, nós. Muitos deles descontam em nós sua raiva, gritam, alguns até nos agridem.

Anos e anos de exposição a esse tipo de ataque frequentemente levam a que os metroviários passem a ver, sim, os usuários como seus inimigos. Que seja, inclusive, coisas muito mais banais do que agressões: repetir a mesma informação oito horas por dia, cinco dias por semana, durante anos e anos a fio, é capaz de transformar a mais atenciosa e sensível das pessoas em um autômato. Máquinas de operar o metrô.

Os usuários são burros, os usuários são grossos, os usuários são mal educados, os usuários isso e aquilo. Ora, certamente se fossemos perguntar, veríamos que para muitos ali os metroviários são, eles também, tudo isso. Passamos os dias a nos xingar e nos odiar.

O irônico de tudo isso é que eles vencem, de qualquer forma. Eles, os que enchem os bolsos e a vida com nosso aperto, nos trens lotados ou nos uniformes que representam a empresa. Eles não andam de metrô, e nem sabem como é. Mas estão cheios de dinheiro que vem das passagens que cada um paga, da exploração de nosso trabalho a cada dia. Quanto mais acharmos que a culpa de nossa miséria é de usuários ou metroviários, melhor pra eles. Que nos matemos. 

Em Luz, onde trabalho, há uma fileira de catracas na transferência entre a linha 4 (privatizada) e a CPTM, e a linha 1 onde trabalho. Sempre que passava ali a caminho de casa perguntava, puto da vida, para que serviam aquelas malditas catracas que formavam filas imensas e eram gratuitas. Por que não tirar simplesmente aquela porcaria dali? E, pior: a cancela que ficava ao lado aberta começou a ser trancada, fazendo com que a fila aumentasse ainda mais porque já não podia escoar por ali livremente.

Hoje, uma das minhas incumbências é justamente vigiar essas mesmas catracas que eu xingava. E mais: manter a cancela trancada. Há pouco tempo, quando começaram a trancar a cancela, me vi espremido na fila entre a catraca do canto e a cancela trancada. Vários esperavam na longa fila para passar a catraca. Alguns pulavam por cima ou passavam por baixo da cancela. Me vi em dúvida: esperar pela catraca ou pular a cancela? Decidi passar na catraca. Hoje, assisto algumas centenas ou milhares, talvez, de pessoas pulando ou passando por baixo da cancela. Algumas caem. Hoje, uma colega disse que não tinha dó de quem caía ali. Logo no outro dia, podia ter sido eu... ou ela... A fila e a cancela fechadas, descobri, são para manter as pessoas passando pelas catracas e computando, a cada passagem, uma quantia que a CPTM deve pagar ao metrô pelas transferências. Dinheiro que não beneficia nem aos metroviários, nem aos usuários. Mas aos parasitas, que não andam de metrô. Enquanto isso, os usuários passam nas catracas, vendo as cancelas fechadas, e dois funcionários parados logo ali em frente. E xingam-nos, com frequência: Por que estão parados e não abrem as cancelas? Os metroviários, irritados, devolvem as agressões que recebem, odiando cada vez mais os usuários...

Outro dia, na copa, conversava com uma colega. "Os usuários estão sempre reclamando de tudo", dizia ela. "Claro", respondi, "o metrô é uma merda, como poderiam não reclamar". "Você está pensando com a cabeça de usuário". A única coisa que pude lhe responder foi: "Eu sou usuário". 

No dia em que deixar de pensar com a cabeça de um usuário, é esse o mesmo dia em que quero deixar de trabalhar no metrô. Significa que os patrões terão quebrado minha espinha. Se há algo que cabe aos metroviários é colocar sua força de trabalhadores que fazem o metrô existir a serviço de colocar esse transporte realmente na mão de todos os usuários, incluindo nós mesmos. E qualquer usuário que queira um metrô decente deve apoiar e fazer parte dessa luta.


sábado, novembro 01, 2014

não me leia



não me leia
porque falo
de

coisas
         duras
         e doces

coisas
         difíceis
         de ler
         e entender
         e tolerar

não me leia
porque falo
de

desejo
          reprimido
          e irreprimível

não me leia
porque falo

de você
de fantasias
de medos
de sussurros
e solidão

não me leia
porque falo
de

feridas
          abertas
          que sangram
          pulsam
          vivem
          levam teu nome
          tua ausência

não me leia
porque falo
de
 
coisas
         que não quero dizer
         que não devem ser ditas
         que não quero
         e quero
         que saiba

de sonhos
que não querem calar
nem se realizar

não me leia
pois se pudesse
não me leria também
nem me escreveria

não me leia
porque é feliz
e assim deve ficar

Dívida

A poesia
veio me cobrar com juros
o amor que lhe neguei

espero um dia fazer o mesmo com você.

Corrida para a morte

são cinco da manhã
a porta do metrô abre
as pessoas correm
como se suas vidas dependessem disso
(e dependem)

cada minuto conta

são cinco da manhã
entre estações
nos bancos
rostos cansados
envelhecidos
gastos
dormem minutos

cada minuto conta

correm
na baldeação
entre a noite e o dia

cada minuto conta

correm
como se não fossem correr
amanhã e amanhã e amanhã

mas há também benevolência:
economizam
quarenta e quatro centavos
na integração

quarta-feira, outubro 29, 2014

Nordestinos


Quando criança e adolescente tive a, digamos, sociológica oportunidade de conviver com a pequena burguesia paulistana vivamente. Primeiro, com parte daquela que se julgava mais "progressista" em escolas que eram recheadas de filhos, sobrinhos e netos de políticos petistas e peesedebistas famosos, uma suposta - e reforço o suposta - elite pensante, em minha primeira escola. Depois, no fim do colegial, com uma ainda mais suposta elite que se preparava para entrar nos disputados vestibulares das universidades públicas.

Entre as coisas que aprendia nessa infância estavam, como não pode deixar de faltar em qualquer infância, os palavrões e xingamentos, palavras tão importantes para qualquer criança. Lembro-me como entre esses constavam os termos "baiano", "baianada" ao lado de outros como "cuzão", "filho da puta" etc. Se dizia de alguém que tinha feito uma "baianada" quando fazia algo estúpido, burro, ignorante. Se utilizava esses xingamentos, em particular e de modo, diria, até bastante inconsciente, com um nítido viés de classe, referindo-se em especial contra os que conviviam conosco por meio do trabalho que faziam. Eu, como qualquer criança, repetia aquilo que ouvia, sem muito compreender de seu sentido.

Cresci um pouco, e quando cheguei ao final do ensino médio já entendia claramente o sentido dessas palavras, e me enojava com os que as usavam. Sentia-me, cada vez mais, um pária em minha própria classe, no meio em que convivia todos os dias. E me lembro bem nitidamente de quando "amigos" brigavam com o porteiro da escola porque esse proibia determinada coisa, e assim recebia o "xingamento" de "baiano". "Esse porteiro baiano de merda", ou algo assim. Ele não era baiano. Era apenas um peão, e que naquele caso ainda tinha a ousadia de impor as regras da escola em que trabalhava aos alunos ricos que ali estudavam.

Não demorei muito na vida para perceber e me perguntar porque, se não todos, a esmagadora maioria dos que trabalhavam nos ônibus, na faxina, nas portarias, como empregadas domésticas, motoristas particulares, babás, peões de obra, enfim, todos os que trabalhavam muito e recebiam pouco por isso ao meu redor tinham sotaque nordestino. Todos, quando faziam algo "errado", eram xingados de "baiano", ou tinham apelidos de "Ceará", "Paraíba", "Piauí" etc. E porque, entre os que estudavam nas melhores escolas, tinham mais dinheiro e posses, esses eram tão raros.



Lá pelos meus doze anos comecei a entender mais claramente de onde vinha tal divisão. Comecei a ter contato com a incrível produção cultural do nordeste, pelo que me lembre, quando ouvi pela primeira vez a música "Asa Branca", uma das primeiras que aprendi a tocar, e que é ironicamente ensinada a cada um que toca piano nesse país. É possivelmente a música mais emblemática de nosso país. Sua letra fala da seca, da migração, do sofrimento. Pouco depois, li pela primeira vez "Vidas Secas", e as palavras incisivas de Graciliano Ramos pela primeira vez me mostraram de forma cortante uma luta muda contra os coronéis dessa vida. Depois, esse contato não parou.

Tudo o que há de grande e importante em São Paulo e no Brasil tem a mão, o suor, as lágrimas e - com frequência - as vidas e mortes de trabalhadores nordestinos. São eles que foram expulsos de sua terra pelos latifundiários, obrigados a suportar a miséria que lhes foi imposta por essa sociedade, obrigados a vender sua mão de obra pelos mais baixos salários, a aguentar as piores condições de trabalho, como as da construção civil, para erguer as enormes obras superfaturadas dos governantes. Fizeram as avenidas, as pontes, os prédios, o metrô, os carros, os ônibus. Enfim, tudo o que cada paulistano usa a cada dia poderia ser chamada de uma "baianada".



É do nordeste que vem as contribuições mais ricas, vivas, originais de nossa cultura. Tem sua própria culinária, sua dança, sua música, seu cinema, sua literatura. Ainda hoje, o melhor cinema nesse país não vem de outro lugar senão de Pernambuco, e Recife é certamente a mais importante capital cultural desse país, berço de gigantes da música contemporânea do porte de Chico Science e Antonio Nóbrega, entre tantos outros.

Tendo recebido os mais duros fardos na nossa sociedade, ao lado do povo negro - que, não à toa, tem suas maiores proporções justamente ali - os nordestinos foram os responsáveis por constituir o grosso da classe social que não apenas ergueu esse país sobre suas costas cansadas pela exploração, mas também a única classe que tem em si o potencial para libertar de fato esse país e seu povo. A classe trabalhadora brasileira é preta e nordestina.

Hoje, é nítido que esses trabalhadores votaram majoritariamente no PT nas eleições. Votaram por ver em Lula um dos seus: um peão, que, expulso de sua terra pela miséria, foi vender seu trabalho nas imensas metrópoles do sul. E Dilma como continuadora de sua obra. Mas Lula não é um dos seus, pois há tempos mudou de lado, abraçando os mesmos coronéis que um dia criticou, como o "senhor do Maranhão" e aliado da ditadura, José Sarney; ou o herdeiros dos coronéis de Alagoas, Fernando Collor. Nordestinos como esses, para os patrões e a pequena burguesia, não são os "baianos" ignorantes. Eles são os descendentes dos senhores de engenho, e não dos escravos e dos que migraram para o sul nos precários paus-de-arara. Eles continuam enriquecendo, explorando, matando e oprimindo sob o governo de Dilma e Lula, com sua conivência e sua "benção".

Mas hoje, vivemos ainda em tempos sombrios, em que traidores como Lula, que tomando para si a força das lutas dos operários nordestinos e de todo o Brasil para chegar a abraçar os coronéis, aparecem como heróis. Pois, ao enriquecer as fartas mesas de banquete dos ricos industriais e banqueiros paulistanos, fez questão de empurrar algumas migalhas para o povo de onde veio. Ainda, gente assim, figura como um "salvador messiânico". Ainda vivemos em um tempo em que a aspereza da luta de classes se faz sentir no preconceito bruto e deslavado que vem à tona no ódio de uma região que vota no PT, mas que ainda não oferece saídas de fato. Em que ainda são louvados como "salvadores" do povo nordestino aqueles que estão abraçados aos ricos, e que, com as mãos dos herdeiros dos "soldados amarelos" descritos por Graciliano, sufocam as lutas heróicas dos nordestinos que continuam a erguer as imensas obras, agora, presos como escravos modernos nos canteiros de obras do PAC espalhados pelo país. Esses nordestinos, os que ousam se erguer contra os patrões, são nossos verdadeiros heróis. E as bravas mulheres nordestinas que, trabalhando como terceirizadas da limpeza na USP, ousaram lutar e vencer contra seus patrões - esses novos-velhos coronéis - que continuam com seus chicotes a arrancar o couro e a mais-valia de cada imigrante nordestino.

Para lavar a boca dessa elite estúpida, que continua impunemente não apenas falando suas barbaridades preconceituosas, mas, muito pior, enriquecendo às custas do trabalho do povo nordestino, da classe trabalhadora, dos negros, das mulheres, dos homossexuais, não nos basta apertar uns botões a cada dois anos. Esses que hoje enchem a boca para se dizerem aliados do povo nordestino há tempos se aliaram com seus principais inimigos. O futuro, não o das urnas, mas o de uma liberdade em que não mais serão os nordestinos a carregar o pesado fardo da exploração, está nas mãos não dos que enriqueceram ao vir pra São Paulo. Está nas mãos de cada peão explorado nos canteiros de obras, nos bares, nas portarias, nos ônibus, nas lojas, e em cada canto desse país onde se produza a riqueza. São esses os nordestinos que libertarão a seus conterrâneos e a todos nós.

E, se hoje, essa burguesia afetada dá seus gritos de desespero ao ver os nordestinos e os negros elegendo Dilma, mal sabem que deveriam agradecer por isso. Pois motivo para eles se desesperarem não vai faltar no dia em que esses nordestinos, negros, trabalhadores, souberem que a força que têm nas suas mãos não é a de apertar 13 para que continuemos a ser dominados por todos os tipos de coronéis. A força que têm é a de tomar esse mundo em suas mãos, e, aí sim, Lobão e todos eles irão se mudar pra Miami sem hesitar. E, lá, que resmunguem e destilem seus preconceitos à vontade. Mas sem o direito de arrancar nosso couro, que com 13 ou 45 continuam tendo todos os dias. O futuro nos pertence.


segunda-feira, outubro 27, 2014

um tolo por você



perdendo a prudência
                e os dentes

calo.

a palavra, o gesto
o lamento incontido
que
      escapou
                   entre
                           os gestos

os dias
não apagam
a vida
não apaga
esse gosto amargo
e as desculpas...

é perder um olhar
              uma palavra
              uma chance
              uma vida

é aceitar
   com a lágrima
      entre os dentes
           entre os dias
as fantasias
    feridas
    desditas
    malditas
 
é o arrependimento
do que nunca foi
nunca será
nem existe

é pedir desculpas
por qualquer coisa
assim sem querer
que me tocou
feito lança

pra quê, então?

domingo, outubro 26, 2014

Termina mais uma "festa da democracia"

Os grandes amigos nessa "democracia"

Por 51 a 48% Dilma e o PT arrancaram sua vitória suada sobre o PSDB de Aécio, numa eleição disputadíssima. Foi o processo eleitoral que mais polarizou esse país desde 2002, quando Lula venceu pela primeira vez.

Eu lembro bem quando isso aconteceu. Eu tinha 18 anos e era tão fervoroso partidário da vitória de Lula como são hoje tantos que conheço, comemorando entusiasmados a vitória de Dilma como um grande triunfo dos pobres, despossuídos e trabalhadores contra a elite. Na época eu estudava em um cursinho da classe média, da pequena burguesia abastada de São Paulo, tentando me convencer a estudar coisas que não me despertavam nenhum interesse para poder passar no vestibular de medicina. Aquela classe média expressava ali a polarização de todo um país. As salas de aula do cursinho se dividiam: as de exatas ostentavam majoritariamente bandeiras, adesivos, camisetas do PSDB; as de humanas, majoritariamente do PT; a minha, que era mescalada, literalmente se dividiu ao meio, com o lado esquerdo da sala pintado de petismo e o lado direito de tucano. Eu acreditava que era uma disputa visceral que decidiria o rumo desse país...

Aquela vez, em 2002, foi a última vez que não votei nulo no segundo turno de uma eleição. Foi a última vez em que acreditei que um candidato eleito mudaria as coisas nesse país. Na realidade, eu só achava isso porque sofria de uma adesão ao PT que era muito mais sentimental e ligada a uma história pessoal que me fez ter ilusões nesse partido do que pela sua política de fato. Alienado que estava na minha classe social, no meu meio, não vi nada acontecendo: não vi o PT ostentando como vice de sua chapa ninguém menos que o milionário industrial José de Alencar, na época do Partido Liberal (que hoje se chama PR, como se fizesse alguma diferença). Não cheguei sequer a ler a famosa "carta ao povo brasileiro" (na realidade uma carta aos banqueiros e industriais), em que Lula garantia seguir religiosamente a política do capital.

E votei, entusiasmado. Vibrei com a vitória do PT. Nas ruas, as pessoas comemoravam. Um partido de esquerda na presidência; um partido de trabalhadores. Ou, achávamos (a maioria dos eleitores) que assim era. No ano seguinte, o primeiro do governo Lula, eu estava ainda mais alienado em um meio ainda mais escroto e dominado por uma mentalidade de "senhores de engenho": a faculdade de medicina. Não acompanhei, senão muito superficilmente, quando Lula mostrou vigorosamente a que veio, fazendo a reforma da previdência que FHC fora incapaz de concretizar. Numa tacada, Lula criou o fator previdenciário, aumentou a idade das aposentadorias, atacou direitos que os trabalhadores conquistaram a ferro e fogo.

Quando eu entrei na USP, ele preparava outro novo golpe, chamado Reforma Universitária, e foi na minha calourada que voltei a me politizar e entender o que de fato o governo do PT estava fazendo. Lula, sendo um caudilho traidor experiente (já o era nas greves do ABC), aprendeu que o melhor era "fatiar" seus ataques e disfarçá-los como pudesse de concessões. Assim ele fez com a reforma universitária, que dividiu em várias "concessões": uma delas continua sendo um grande "trunfo" dos doze anos de lulismo. O ProUni, que garantiu aos empresários do ensino privado, que haviam expandido seus negócios de forma ensandecida durante os governos Collor e FHC, que eles não tomassem prejuízo pelo esgotamento de seu mercado. O governo Lula deu uma força: ele precisava fazer demagogia de uma expansão da educação, e os empresários precisavam ocupar as cadeiras ociosas de suas universidades; é simples: o governo paga por suas vagas com isenções de impostos, comprando uma vaga em uma universidade pelo preço que pagaria três vagas em uma federal, e todo mundo sai ganhando. Depois, veio a expansão precarizada do Reuni, com universidades sem professores, sem moradia, sem biblioteca, sem nada... mas que aumentavam os matriculados nas estatísticas. Foi essa expansão que levou à enorme greve de 2012, derrotada pela política da burocracia estudantil aliada de Lula (UJS - PCdoB) e pela impotência da esquerda anti-governista do PSOL e do PSTU.

Enfim, não vou ficar aqui listando todos os ataques de 12 anos de PT no governo, e todas as medidas que eles implementaram de forma a fazer inveja a qualquer tucano e levar até Paulo Maluf, notório corrupto e governador biônico da ditadura, a dizer que "perto de Lula ele era um comunista". O ponto desse texto é olhar para essa imensa comoção catárica de "nenhum passo atrás" da vitória apertada de Dilma.

A democracia burguesa não é feita apenas de repressão e ideologia. Ela possui um ritual, uma mística própria que toma as pessoas de um jeito impressionante. Eu vi ao longo desse processo eleitoral pessoas que criticavam o PT passarem a ser ferrenhos defensores dos "avanços" de seus doze anos a frente do governo. Amigos de esquerda, que foram às ruas em junho, tirarem "selfies" com Dilma e Padilha. Acreditarem que o ranço reacionário elitista, racista, homofóbico, machista e monstruosamente arcaico de certos eleitores de Aécio já era justificativa suficiente para votar no PT, independente do que eles fizessem no governo.

Defender o voto nulo tornou-se um motivo para ser desprezado, nessa atmosfera de "briga de torcidas" que a eleição passou a ser. Argumentos políticos em defesa do voto nulo não me faltavam e nem aos meus camaradas. Diante deles, ouvi uma mesma resposta repetida à exaustão como uma cantilena de igreja: você não vota em Dilma porque nunca passou fome. Curiosamente, só ouvi esse argumento sendo dito por pessoas que nunca passaram fome. As que passaram, no entanto, eu ouvi posições sobre seus votos: vi as que votavam em Dilma, as que votavam em Aécio e as que votavam nulo. Mas o "você não passou fome" não era um argumento político, pois ele se detia aí: era um argumento moral. Quem é você, que nunca passou fome, para falar sobre o que melhorou na vida dos pobres? Ora, acho que estudando a história econômica e política do país dá para saber o que mudou. E é bem fácil ver que nesse país há ainda muita gente passando fome, muita gente morrendo nas filas dos hospitais que o governo do PT vem privatizando com a EBSERH, muita gente sem acesso a saneamento básico... que os 0,4% do PIB que vão para o bolsa família continuam sendo "um peido no vento" perto dos 42% que vão para o pagamento da dívida pública, ou seja, o "bolsa-banqueiro". E não somos nós, os "esquerdistas malucos" que "nunca passaram fome" (ainda que vários de nós já tenham passado fome, mas não me parece que seja essa a questão a discutir) que vemos quem o PT representa. Michel Temer, Renan Calheiros, Collor, Maluf, Marco Feliciano, Sarney e tantos outros burgueses e seus representantes que nunca passaram fome estão apoiando entusiasmados o PT. Torturadores da ditadura militar, os mesmos que ontem prendiam a Dilma, sabem que não foram eles que mudaram de lado quando apoiam o PT.

Contudo, os argumentos políticos já foram colocados muitas vezes e de muitas formas por mim, por camaradas meus e ainda por outros. Mas em praticamente nenhum momento desse segundo turno consegui, infelizmente, ter uma discussão profundamente política com os "petistas de última hora". O medo se apossou deles, o medo de um suposto "golpe de direita", de uma "enorme retrocesso". Vivemos em um país com uma das maiores desigualdades do mundo, governado há doze anos por gente que garantiu aos bancos seus maiores lucros em toda a história e governou lado a lado com torturadores e mandantes da ditadura. E as pessoas saíram votando loucamente nesses "progressistas" que estão "melhorando o país". Será que eu estou louco? E os 30% que anularam seus votos ou se abstiveram nessas eleições? Será que todos eles não entendem que o PT significa o progresso? Será que todos esses e mais os 48% de votos válidos que votaram no Aécio nunca passaram fome, ou não entendem que as cotas, a lei maria da penha, o pronatec "mudaram o país"? Será que fomos às ruas em junho e colocamos de joelhos governos do PT, PSDB e PMDB de mãos dadas para continuar vivendo em um país onde, sim, pessoas morrem de fome com a conivência desses que hoje nos governam?

Dilma ganhou, e logo teremos todas essas respostas. Como eu aprendi, desde meu primeiro voto em Lula, que estava enganado, sei que muitos dos que hoje comemoram a vitória de Dilma verão que estavam enganados. E nos encontraremos nas lutas, contra PT, PSDB e todos seus aliados. Para que esse país e esse mundo mudem de fato. 

terça-feira, outubro 21, 2014

Desejo da poesia

eu
    sem eu
em trabalho bruto
na busca
do pungente sentido
    de ser
              eu

no afã
das palavras
o não dito
          fustiga
     inquieta
          acossa
     instiga
          a ânsia
     de ser

quem?

emudecido
persigo
o eu
       perdido

topada:
no soluço desse criar
um sentido embaralhado
me levou a você

soletra
         desejo
     espelho
         desencontro
sorriso

tua vida pulsante
virou meu be-á-bá
meu (des!)engano
procura de sentido

na tua pele
teu escrito
      cru
           rasgante
                        em carne viva
      viva!

e as raízes
       sedentas
       procuram
terreno firme para se afincar

tolices, tropeços
os pés pelas mãos
e me (te) afogo
nesse obscuro pulsante
desejo
          sôfrego
                    de poesia
                    amor e vida
            a dor de procurar
a salvação em um espelho
são palavras, gestos
impaciência, besteira
isso tudo sou eu
                 confuso
         incoerente
    pedinte

resfôlego
              de
                  querer
respira
respira
respeita
o tempo
a vida
a dança

um recomeço? é cedo para dizer
exageros, expectativas e o futuro à parte
te oferto essas desculpas
bobas, como o resto

somos carne
           coração
           contradição

e se, de nada restar nada
fico com esses sonhos
talvez não tão lindos
         mas que são,
                legitimamente são.

herança e resultado
da procura da poesia
que achei no teu encontro
e esse desejo






segunda-feira, outubro 20, 2014

avesso



tristeza
          decantada
                          é
                             ódio
          pelo avesso
        é
amor

das tripas coração
um toque de ternura
nessa angústia
seca

quero vomitar
esse sentir
sobre
        tudo
sobre
        todos
e gritar
até que mina garganta
se desfaça em um
novelo
          de
              lágrimas

as palavras que estavam aqui
cadê?
se foram
emudeceram
secaram
tornaram-se sangue
             pus
  solidão
desejo cru
                ressentido

fantasia embriagada
fecha seus olhos
diante da claridade
do dia, da vida,
da verdade que queima
a retina desses sonhos
que só vivem
                    de noite
   de sombras
                  de querer
     sem poder    

fecha
        teus
             olhos
        e adormece
pois
      os sonhos
         são a morada
      dos desejos
          secretos
       lá
          esse gosto
       amargo
          se dilui
       na fantasia
          dos poemas
       malfeitos
          inacabados

somos o que amamos, e não o que nos ama



Não é bem verdade, mas vai ter que servir agora. Às vezes temos que nos agarrar a mentiras bonitas.

O ato de amar é uma das coisas mais profundamente humanas que podemos fazer. Tem em si algo de indecifrável, mas não deixa de ter um lado no qual podemos perceber o que há de mais característico, de pessoal, de definidor de quem é cada um de nós.

Ele revela nossa história, nossa subjetividade, nosso modo de encarar a vida e o mundo, tudo sintetizado e embaralhado nesse gesto de colocar uma pessoa ou algo em um lugar especial na nossa vida, no nosso querer. E, sim, portanto, nós somos o que amamos. Somos o que desejamos, pois no ato de desejar implicamos aquilo que nos constitui e que queremos ser.

Mas é apenas metade da verdade, porque também somos o que nos deseja. Aprendemos a amar sendo desejados e amados por aqueles que primeiro cuidaram de nós, que nos receberam nesse mundo e nos cercaram de cuidados, de atenção, nos ensinando o básico e fundamental para podermos viver nesse mundo. É esse o nosso primeiro contato com o desejo humano, no qual somos o objeto de desejo de alguém. A ausência desse desejo é o incentivador de enormes complicações na formação de um psiquismo, de uma subjetividade e, enfim, da capacidade de desejar e amar. E, portanto, somos também aquilo que nos ama. Pois é a partir, em grande medida, dessa experiência, que aprendemos nós mesmos a desejar e amar, ou seja, a definir como somos aquilo que somos.

Mas amar implica em investir nossa energia desejante em algo. Implica em tirarmos de outras coisas, e também de nós mesmos, para fornecer essa capacidade desejante em relação a algo. Ou alguém. E nem sempre nossa forma de desejar encontra um alvo que nos deseje de volta.

Isso dói.

E a vida, o desejo, o amor, não se resolvem em esquemas ou fórmulas, mesmo que nos ajudem a compreender. A vida, ela é maior do que o entendimento que temos dela. Muito maior.

Só quero saber de amor que seja libertação.

Mas como é o ato de nos libertarmos através de um desejo que nos liga a algo? Amar uma parte de nós que perdemos, e que podemos aproximar novamente de nós impulsionados por esse desejo. Aprender a sonhar, a sentir, a criar. A amar alguém. Alguém que representa a liberdade que buscamos na vida, na luta.

Desejar é contradição. É também estar preso a algo, a alguém. Oferecer-se como companheiro, como aprendiz e mestre, como apoio e como desamparado. Mas o desejo precisa da seta em sentido contrário. Ele é a sede de um caminhante no deserto, que precisa de água para permanecer vivo.

Se escolhermos, se tomamos a decisão de que somos o que amamos, e não o que nos ama? Será? É água o desejo que não tem contrapartida? Ou apenas a sede no deserto, que seca, que mata? Que decisões podemos tomar sobre aquilo que nos toma? Podemos viver desejantes, eternamente?

Será que o ato de amar é um exagero, mesmo quando amamos aquilo que está distante e impalpável, aquilo que não é a realidade crua, mas uma pedra basilar sobre a qual apoiamos sonhos e expectativas? Que exagero há em desejar o que não conhecemos? Em procurar aquilo que não tocamos, que está distante de nós? Quando a criança recém-nascida chora, ela não sabe porque. Ela é puro desejo, ela é a ânsia, o anelo, uma busca completa que toma todos os seus sentidos desprovidos de entendimento. É a mãe, o ser que o deseja, que sabe pelo que procura aquela pequena criatura, e lhe oferece o peito que ele suga, sorvendo a vida, a essência de seu desejo.

Todo desejo é um pouco assim. E há momentos em que somos tomados inteiramente, e que nos entregamos. A ausência corta nosso peito como uma faca quente na mantega. E quando, perplexos, estamos diante desse mistério, de um abismo do qual não vemos o fundo, que nos encara de volta com sua negrura indecifrável, que podemos fazer? Não consigo arrancar meu peito. Aguardo a vida.




sábado, outubro 18, 2014

O capitalismo e suas grades

(texto publicado no jornal Palavra Operária número 109, uma publicação da Liga Estratégia Revolucionária )


Angela Davis

Todo preso é um preso político. Essa ideia, que pode parecer estranha a princípio, é demonstrada de formas diferentes por dois ótimos filmes que estão em cartaz em pouquíssimas (não à toa) salas de cinema no país.

Um deles é o documentário nacional “Sem Pena”, de Eugenio Puppo. Sob a forma de um mosaico, no qual cenas são apresentadas ao espectador com vozes sobrepostas que apenas ao final saberemos a quem pertencem, o filme conta um pouco como funciona o sistema penitenciário brasileiro, desde o judiciário até as cadeias e o pós-prisão.

Em um dos depoimentos, alguém diz que nas sociedades ditas “primitivas” não há cadeia ou detenções, e que os crimes são resolvidos coletivamente, pois se considera que “não há crimes individuais, apenas crimes sociais.” Os melhores depoimentos do filme desenvolvem justamente essa ideia. Um relato de uma conversa entre um presidiário e estudantes de uma faculdade toca nessa ferida, de que os crimes são criados pela desigualdade, quando o preso afirma que roubaria o carro da menina porque ela tem e ele não, e que se ele roubar ela ganhará outro do pai. Conforme esse diálogo é relatado pelo depoimento que ouvimos, as cenas mostram como o próprio sistema judiciário reproduz essa lógica: os cenários das cadeias, caindo aos pedaços, superlotadas, com centenas de presidiários em condições sub-humanas, são contrastadas com tomadas em que se mostram suntuosos tribunais, luxuosos edifícios como o da Faculdade de Direito da USP, com uma Ferrari partindo de sua frente enquanto moradores de rua fazem comentários. São os dois lados do sistema judicial.
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É nesses momentos que “Sem Pena” foca o centro da questão, o elemento que faz com que toda prisão seja efetivamente uma prisão política: em uma sociedade fundada na desigualdade, onde alguns possuem muito, e muitos não possuem nada, frequentemente o roubo chega a ser uma necessidade. A manutenção de um sistema carcerário repressivo e injusto é um pilar de sustentação desse estado de coisas. E o filme demonstra como são justamente os que roubam por necessidade os que amargam longos anos nas cadeias, quase sempre sem sequer um julgamento – que dirá um julgamento justo.



Nas falas de um juiz e de uma desembargadora aparece o caráter de classe dessa justiça feita pelos ricos e para os ricos: uma senhora negra, idosa, catadora de materiais recicláveis é acusada de tráfico. O juiz, ainda que a absolva, defende não apenas sua detenção arbitrária como justa, mas também faz diversas insinuações sobre como pessoas “desse tipo” são usadas pelo tráfico. Ainda pior são os comentários da desembargadora, que retrata o discurso “linha dura” de que as penas no Brasil são muito brandas, quando temos a terceira maior população carcerária do mundo e a que cresce em maior velocidade.

O filme demonstra como o encarceramento é bastante caro ao Estado e de forma alguma serve para ajudar os presos a se reinserir profissionalmente. Contudo, fica no ar a pergunta: se é tão ineficaz, porque persiste? Talvez a principal lacuna de “Sem Pena” seja que, apresentando diferentes pontos de vista sobre o problema, ele se abstém de tentar apontar diagnósticos mais profundos. Algumas falas apontam o problema de forma equivocada, levando a supor soluções utópicas: esse é o caso quando, no início do filme, se fala sobre a falta de uma polícia preventiva no Brasil, afirmando que não se pode encarar a polícia meramente como “o braço armado do Estado com a função de reprimir”. Mas ao analisarmos o papel de um Estado em uma sociedade dividida em classes, constataremos que a instituição policial surge exatamente com o papel de manter a desigualdade e a exploração.

Esse ponto é pouco desenvolvido no filme, que mostra de forma dolorosa o problema e seus sintomas, mas que deixa ao espectador a tarefa de procurar suas causas. Em alguns momentos, passa a impressão de que seria uma questão de um sistema ineficaz e burocrático; mas, em seus pontos altos, o filme transparece uma mensagem clara: a existência de multidões encarceradas no Brasil tem sua raiz em uma sociedade fundada na desigualdade.

Provavelmente a maior ausência do filme – o apontamento de quão racista é o sistema penitenciário – aparece no centro do segundo filme, o documentário “Libertem Angela Davis”, de Shola Lynch. Retratando o ativismo político de Angela Davis no movimento negro e no Partido Comunista dos EUA na década de 1970, o filme fala sobre a detenção e o julgamento dessa militante que gerou um amplo movimento de solidariedade internacional no mundo inteiro. A prisão de Davis era um ataque direcionado pelo Estado americano contra uma mulher que simbolizava naquele momento a resistência do povo negro contra uma sociedade racista, em um momento em que se levantavam com força os Panteras Negras, organização que reuniu dezenas de milhares de negros no país com uma perspectiva revolucionária de luta contra a segregação social que ainda hoje persiste tanto nos EUA como no Brasil.

Não poderíamos dizer que é uma coincidência o fato de que Angela Davis ganhou grande notoriedade ao defender três jovens negros encarcerados, no caso que ficou conhecido como “os irmãos Soledad”, em que se armou uma farsa judicial para incriminar estes detentos pela morte de um guarda penitenciário. Seus crimes, como os de dezenas de milhares de encarcerados pelo sistema penitenciário brasileiro, eram pequenos delitos contra a propriedade privada: o roubo de uma televisão, de setenta dólares; enfim, delitos aos quais foram levados por uma sociedade que reservou aos negros a maior fatia de miséria e exploração.
Por ter se tornado um símbolo da resistência negra, uma nova farsa jurídica foi montada contra Angela Davis, em que um atentado contra um juiz que termina em um tiroteio e mortes (um ato que seria em defesa dos “irmãos Soledad”) leva à acusação de que seria um plano armado por Davis. Aqui no Brasil vemos hoje exemplos desse tipo, como o caso de Rafael Braga, que, por ser pobre e negro, é até hoje mantido encarcerado no Rio de Janeiro pelo crime de participar de manifestações de rua portanto um frasco de Pinho Sol.


A demonstração em “Libertem Angela Davis” do uso político explícito do sistema carcerário contra a organização política de um setor explorado e oprimido no capitalismo é complementar ao massivo encarceramento da pobreza denunciado em “Sem Pena”. São dois filmes que ensinam muito sobre o capitalismo e suas grades.