sexta-feira, agosto 17, 2012

Resignar-se ao tamanho de humano



Não saber, não prever, não conseguir, não poder. Somos limitados, muito menores do que o mundo e nossas vontades diante dele. Aprender isso pode ser lento e doloroso. Aprender que não está em nossas possibilidades aquilo que gostaríamos de ter feito. Olhar de frente nossas limitações, aceitá-las; resignar-se a elas.
Sim, resignar-se implica em deixar algo morrer. Resignar-se a nosso tamanho de humano implica em deixar morrer algo que não existe, que é a possibilidade de fazermos o que é impossível para nós. Parece fácil aceitar isto, não? Não é. É fácil entender, mas não aceitar. Aceitar significa, enfim, resignar-se. Implica em uma pequena morte de nós mesmos. Deixar morrer o impossível.
Este tem sido um de meus imensos desafios. A morte é provavelmente o maior muro diante de nossas possibilidades, de nosso pequenino tamanho de humano. Ela esfrega em nossa cara o quão impotente nós somos. Encarar a morte da cami implica em uma enorme resignação. Em resignar-me ao fato de que eu não sabia; de que não estava lá; de que não fiz aquela pequena coisa naquele dia ou aquela outra no outro.
Aceitar nosso tamanho de ser humano pode ser, às vezes, uma tarefa maior do que nós mesmos. Para cami, como para tantos que tiraram suas próprias vidas, foi impossível resignar-se. Se quando nos resignamos morremos um pouco a cada dia, muitas vezes quando nos suicidamos é porque já não podemos mais nos resignar. Chegou nosso limite. Cami não podia mais se resignar à vida que estava levando; se resignar diante das impossibilidades imensas que se erguiam, que a colocavam diante do tamanho humano dela, insuperável e que a impedia de viver a vida como ela gostaria. Não dava para se resignar.
Maiakóvski foi um homem que nunca se contentou com seu tamanho de homem. Como disse Trotsky após seu suicídio: "Maiakovsky, pronto para servir à sua época, pelos mais modestos trabalhos quotidianos, não podia aceitar uma rotina pseudo-revolucionária." Nem cami era capaz de aceitar uma rotina pseudo-revolucionária, ou uma pseudo-vida. Quando Maiakóvski viu sua vida e sua arte encurraladas diante da muralha da burocracia soviética, não pôde resignar-se. Tentou, é verdade: "No mês de janeiro deste ano, Maiakovsky, vencido pela lógica da situação, fez grande esforço para aderir, finalmente, à Associação Soviética dos Poetas Operários (VAPP), dois ou três meses antes de matar-se. Essa adesão não lhe trouxe nada. Retirou-lhe, pelo contrário, alguma coisa. Quando ele liquidou suas contas, tanto no plano pessoal quanto no político, e movimentou seu barco, os representantes da literatura burocrática, aqueles que estão à venda, exclamaram: 'inconcebível, incompreensível'. Demonstravam, assim, que não compreendiam tanto o grande poeta Maiakovsky como as contradições da época." Meteu uma bala na testa, porque não podia se resignar. Cami lutou, lutou e lutou. Disto sou testemunha. Lutou para ser uma revolucionária integralmente; lutou para ser coerente com o que acreditava. Venceu muitas batalhas; perdeu outras tantas. Mas uma hora viu-se obrigada a dar um passo atrás, a resignar-se àquilo que poderia fazer; a resignar-se a seu tamanho humano. Recusou-se. Era já resignação demais para alguém com nada mais e nada menos do que a ambição de mudar o mundo.
Suicidou-se, porque não pôde resignar-se.
A nós, que ficamos, resta resignar-nos a nosso tamanho de humanos. Ao tamanho de pessoas que não podiam prever, não podiam ajudar, não podiam evitar. Resta também resignar-nos à compreensão do tamanho de humano que cami tinha, e não censurá-la por não poder ser mais do que humana e nem querer se resignar ao tamanho humano que podia ter. É mais fácil falar do que fazer. Resignar-se é um suicídio cotidiano, porque temos que matar algo em nós mesmos. Suicidar-se é o fim da resignação. O nosso tamanho humano também limita até mesmo nossa possibilidade de nos resignar, pois é típico querermos ser muito mais do que podemos. Vamos aprendendo, a cada dia, a resignar-nos quando necessário.

segunda-feira, agosto 06, 2012

O direito à morte

Vi outro dia um filme, "Você não conhece Jack". Era um filme medíocre, mas sobre um homem bastante extraordinário, Jack Kevorkian. É um médico que ficou famoso e foi processado muitas vezes, e preso durante uns sete anos, por praticar a eutanásia. Eu descobri, vendo o filme, que tinha uma visão conservadora da eutanásia. Acreditava que se resumia a, quando uma pessoa estava sendo mantida viva por aparelhos, ou tinha uma doença terminal, que ela tivesse o direito de morrer. Estava equivocado. Aliás, o direito de desligar os aparelhos já existia no lugar onde Kevorkian morava. O que ele fazia era ajudar as pessoas a se suicidar, quando elas tivessem doenças que tornassem a vida delas impraticáveis. Isso não significa necessariamente doenças terminais. Muitos dos pacientes dele tinham doenças com as quais as pessoas poderiam permanecer vivas por muito tempo, talvez décadas. Mas sofriam, e tinham suas possibilidades de viver de fato gravemente restringidas. Viver não é respirar, comer, dormir e cagar. Aliás, vivemos em um mundo onde, infelizmente, quase todos são obrigados a sobreviver. Se vivemos, acho bastante discutível.

Legalmente, ele não podia matar as pessoas. Mas colocava à disposição delas formas de se suicidarem, e as ajudava a morrer de forma tranquila e indolor. No primeiro caso, utilizou substâncias que eram injetadas e o coração da pessoa parava de bater. Contudo, depois do primeiro caso, teve sua licença médica cassada, e passou a utilizar um gás, se não me engano monóxido de carbono, que a pessoa inala e lentamente adormecia para não acordar mais. Obviamente, não demorou nada para que Kevorkian fosse perseguido e processado por centenas de religiosos. "A vida é escolha de Deus", entoavam em um ato uma multidão de religiosos no filme. Foi processado diversas vezes por "suicídio assistido".

Pensei bastante sobre o direito das pessoas morrerem. Há uma cena em que a polícia arromba a porta de um hotel e interrompe violentamente a entrevista de Kevorkian com uma paciente, dizendo que estavam lá para salvar a vida dela. A mulher, revoltada, dizia: "E quem pediu por isto?". No cristianismo, o suicídio é um crime, porque a sua vida não pertence a você, mas a Deus. O mesmo ocorre no aborto, em que a "vida" do feto pertence a Deus, e só ele pode interrompê-la. A nossa medicina se orienta por este dogma, essencialmente cristão: a vida é um valor absoluto, supremo, incontestável. E a missão dos médicos é preservar esta vida, a qualquer custo. Eles não estão a serviço de seus pacientes, mas a serviço de Deus, que estipulou que a vida é sagrada, e os médicos são seus todo poderosos sacerdotes, a serviço da manutenção deste valor sagrado.  Esta visão sobre a vida é completamente absurda, e leva a toda uma série de outras questões sobre as quais não vou escrever agora, mas que certamente merecem atenção. A diferença substancial de Kevorkian é que ele não estava a serviço de um ente abstrato e supremo que estabeleceu a Lei Sagrada da vida: ele estava a serviço de seus pacientes e do que fosse melhor para eles. E há momentos em que o melhor é morrer, por mais que isto seja tão difícil para nossa sociedade aceitar.

O filme, é claro, me fez pensar na pessoa que amo que tirou sua própria vida. Já escrevi anteriormente sobre o direito dela em relação à sua própria vida, sobre como seria absurdo eu ter raiva dela, e sobre como, quando ela própria me perguntou, eu disse que as pessoas tinham, sim, o direito de se suicidar e que nunca poderiam ser considerados egoístas por isso. Escrevi isso sob a lógica de que no mundo podre em que vivemos a nossa vida não nos pertence, e isso poderia nos levar a querer a morte. Contudo, a história de Kevorkian me fez pensar a mesma questão, mas não sob a perspectiva do direito à vida, e sim do direito à morte. Mesmo em uma sociedade sã as pessoas morrerão, e sofrerão de doenças, e terão problemas e angústias e tristezas. E elas devem ter direito a decidir sempre, sobre sua vida e sobre sua morte.

Cami decidiu sobre a sua morte. Uma das coisas que mais me dói é não ter podido me despedir dela; ela estava se despedindo de todos nós, mas só soubemos depois. Pelo fato de que vivemos em uma sociedade onde a morte é um tabu, onde as pessoas não tem sequer o direito de decidir se querem morrer, porque nem sua vida e nem sua morte lhes pertence, eu não pude saber que ela efetivamente estava pensando e pesando os prós e contras de continuar viva. Vi outro dia uma discussão sobre se seria ou não um ato de coragem o suicídio. Em primeiro lugar, vale dizer que não faz sentido tratar todos os diferentes suicídios como "o suicídio". Mas, diziam, nesta conversa, que não havia como reivindicar a "coragem" de um suicídio. Na época concordei, mas Kevorkian me convenceu do contrário. Eu ainda estava muito impregnado pela visão da vida como um valor absoluto. E ela não é. Cami decidiu sobre sua morte. Para isso, ela teve que vencer várias coisas. Em primeiro lugar o medo de morrer, que não é mais do que uma derivação direta do fato de que a morte é um tabu para nossa sociedade. Ela tinha medo de morrer, e ela o venceu. Ela teve que vencer um medo muito maior, que é o medo do sofrimento que causaria as pessoas que a amavam. Em outras palavras: vencer a sua culpa. Não existe um sentimento mais cristão do que a culpa, e não há nada que culpe mais um suicida do que a religião. Ela teve que decidir e executar tudo sozinha e em segredo. Como foi todo este processo, a dificuldade que foi, o grau de consciência que ela tinha quando executou, o sofrimento pelo qual passou para conseguir fazer isto, são todos segredos que ela levou consigo. Mas, sem dúvida, exigiu dela muita coragem. Coragem para tomar a decisão que ela achou necessária, e coragem para executá-la. 

Eu gostaria muito de ter dividido estes momentos com ela. No filme, em determinado momento chamam a mulher de um paciente de Kevorkian para testemunhar. Ela diz que durante nove meses tentou convencer o marido a não se suicidar, a permanecer vivo, e nestes nove meses ele dizia que o desejo dele era poder morrer. Em seu aniversário, quando a mulher lhe perguntou o que ele queria, ele disse que a única coisa que ela poderia lhe dar seria uma consulta com o Dr. Kevorkian. Ela, finalmente, cedeu ao desejo do marido. E esteve ao seu lado quando ele suavemente morreu. Eu queria este direito, e queria que a cami tivesse ele. Queria poder ouvir serenamente de sua boca que ela achava que já não dava mais; que as limitações que estavam cerceando a sua vida eram maiores do que suas possibilidades de superá-las. Que os pesadelos, as vozes, a angústia já eram demais para continuar. Eu gostaria do direito de conversar com ela e refutá-la, de dizer que ainda havia muita coisa que não tentamos, que era possível sim melhorar a vida dela, fazer com que ela conseguisse estudar, trabalhar, militar plenamente. Que eu estaria ao lado dela, que tudo daria certo. Gostaria de poder, ao longo do tempo, de ser dissuadido de minha visão de quem ama demais, ou de dissuadí-la de sua visão de quem sofre demais. Gostaria de poder sofrer pela sua futura ausência com ela em meus braços, de antecipar a dor da saudade. Gostaria de poder ajudá-la a preparar sua morte, de estar ao seu lado, de segurar sua mão e, acima de tudo, de apoiá-la. De poder olhar em seus olhos e dizer: se esta é, finalmente, sua decisão, eu te apoio. Pode partir tranquila. Gostaria, num plano mais egoísta, de não ter que viver até o fim da minha vida com dilacerante dúvida: se eu não tivesse desmarcado nosso encontro naquela noite, ela estaria viva?

A vida não é um valor em si; o valor da vida está em vivê-la, em poder usá-la para aquilo que ela serve. Afinal, é para isso que nós, comunistas, dedicamos nossas próprias vidas: porque vemos que em um mundo como o nosso, a maior parte da humanidade está privada de viver suas próprias vidas. Acredito que a maioria chega à conclusão de votar sua vida a esta luta por ter sentido na pele ou testemunhado muito de perto a impossibilidade da alegria sob o capitalismo. Não à toa, cami era uma de nós, e lutou o quanto pôde para libertar a humanidade do fardo pesado que a oprime. Ela sabia, melhor do que nós que ficamos, que se a possibilidade de viver está interditada por qualquer motivo, o propósito de estar vivo fica comprometido. Para que serve uma vida que não se pode desfrutar? Para gerar mais-valia? Para agradar a convicção religiosa de alguém? Para que os entes queridos não sofram? Mesmo a possibilidade de estar vivo para lutar por uma humanidade livre e emancipada, que é o meu propósito de vida e também era o dela, torna-se inviável em um determinado grau de sofrimento. Precisamos ter o mínimo de apego a nossa vida tal qual podemos vivê-la hoje. Não é possível viver apenas de futuro. 

Eu passei momentos bastante difíceis assistindo a cami em grandes sofrimentos, e eu sofri muito também por vê-la mal e não poder ajudá-la de forma suficiente. A minha dúvida, que nunca vou poder eliminar, é pensar que ela talvez ela poderia, sim, melhorar. Pois ela já havia estado melhor antes, ela já havia tentado morrer e depois disso passou por momentos felizes. Se ela tivesse morrido da última vez que tentou eu nunca a teria conhecido, nós nunca teríamos podido aproveitar nossos breves anos juntos. Por isso, mais um motivo para eu desejar que ela pudesse conversar comigo abertamente sobre isso; não só para ajudá-la a morrer, mas para questionar sobre sua certeza em relação a isso. É uma dúvida, porque eu não descarto a possibilidade de que o melhor para ela fosse realmente partir. E que, se isso era o melhor para ela, estou certo que seria também o melhor para quem a amava. Mas o maldito dogma que cerca nossa vida - que é metade cristão pela preciosidade" da vida para "Deus", mas também metade capitalista pois a nossa vida serve para produzir para os outros e não para ser desfrutada - me impediu de poder sequer conversar com ela sobre isso. Ela manteve seus planos em segredo.

Em uma entrevista, Kevorkian diz: "quando morrermos, vamos para o nada. Todos viemos do nada, era tão ruim assim?" Um pensamento simples e verdadeiro. Ela não está mais sofrendo, não há nada de ruim para ela agora. Ruim é para nós que ficamos. Ruim é pensar em como cami era jovem e, nos momentos certos, cheia de vida e de vontade de viver. Como era linda, inteligente, sensível, generosa, engraçada, revolucionária, cheia de um milhão de potencialidades. Ruim é pensar neste potencial extirpado, pelas raízes, bruscamente. Ruim é nossa impotência diante disso, e o fato de que sequer podemos compreender direito porque foi assim. E é muito ruim também que nem eu nem todos os outros que a amam e sentem intensamente sua falta termos podido compartilhar a sua decisão. Pessoas que gostariam tanto de tê-la visto mais uma vez, e que certamente ela também gostaria de poder ter visto. Ter alguém ao seu lado para tornar sua partida mais tranquila. Um dia, nossos descendentes viverão em uma sociedade onde a morte não seja um tabu, em que as pessoas serão livres para decidir morrer, se precisarem.