quinta-feira, abril 21, 2022

Suicídio

Eu tenho falado muito de suicídio, é verdade. 

Esse tema, que sempre foi meu, incomodava os sacerdotes da igreja que frequentei. 

"A vida é bela", dizia um de seus dogmas, repetidos como a Letra da Lei. A escritura, assim, literalmente interpretada, dizia para amar a vida - que, afinal, é bela. Quem atenta contra isso incorre em "desvio": um dos nomes do pecado nessa religião laica.

As leituras obtusas das linhas de antigos camaradas há muito falecidos fizeram da palavra morta a regra que conduz a vida. Mas a vida é viva, pulsa, se debate, e debate-se. A letra precisa ser viva, ou, de que adianta nossa vida se são os mortos que nos conduzem? Nenhuma revolução da vida foi conduzida por mortos ou por letras mortas.

A vida não é bela. Ela pode ser bela. Poderia... É fácil ler assim, com um pouco de traquejo, a letra antiga do camarada morto, e à luz da evidente falta de beleza da vida que se leva. Ele morreu lutando para que a vida fosse bela. A sua vida, a bem da verdade, não foi lá muito bela. Foi dura, com alguns momentos efêmeros de grande beleza (ainda que estes também duros). Foi uma vida de prisões, degredos, exílios, guerras, privações, assassinatos, traições, calúnias, conspirações, perseguições. Ela terminou num isolamento atroz, que seus camaradas só sentiram mais após sua morte. Viu camaradas, amigos, familiares, gerações de combatentes e pensadores sendo exterminados aos milhares. Foi uma das pessoas mais difamadas da história, tanto no país que ajudou a triunfar contra a opressão, como em todo o mundo.

Ele lutou, e muito, mas a vida não se fez bela. O seu planeta havia se convertido em uma prisão suja, para usar suas próprias palavras. A revolução que fez, enterrada em mentiras e sangue. 

A vida só se fez mais feia desde então. As prisões de outrora nem sonhavam em ser as prisões de hoje. O panóptico foucaltiano enrubesceria de vergonha diante da vigilância digital que se espalha, um panóptico universal em rede que circunda todo o globo numa teia invisível onde cada mosquinha está grudada. A escravidão de ontem, forçada a golpes de polícia, parece o instrumento rudimentar de um troglodita perto da servidão voluntária escrutinada milimetricamente pelos próprios servos, que não precisam mais das correntes, trocadas agora por suas identidades digitais que biopoliticamente registram suas informações mais íntimas, fornecendo-as numa instantânea identificação biométrica aos vigilantes. O grande irmão está aqui.

O lema dessa morte em vida é a "preservação da vida". A atomização do indivíduo isolado e cercado se erigiu sob os gritos de salvar o coletivo. Os venenos são chamados de remédios. A escravidão, de liberdade. A novilíngua, o duplipensar são regras desse admirável mundo novo.

Aqueles poucos que deveriam ser algum tipo de resistência, ou pelo menos tentar, deixaram de lutar e tomaram parte no exército servil, aplaudindo a condenação dos que não se sujeitaram voluntariamente. Adornam a sua própria servidão com frases bonitas tiradas dos que lutaram contra a tirania ontem. "A vida é bela", repetem numa rede social qualquer ao lado de suas fotos injetando os lucrativos venenos dos donos do mundo. A amarga ironia disso é só mais um pequeno enfeite na coroa dos tiranos.

Eu me pego pensando naquela frase apócrifa que diz que a resignação é um suicídio cotidiano.

Como não se resignar?

A impotência é a regra quando o mundo te esmaga. Descobrir-se potente é a luta do espírito, da carne a cada dia. "A vida é bela" significava ver a possibilidade de potência em meio ao esgoto, ao planeta que era uma prisão suja. A vitória que tiveram aqueles camaradas, aqueles poucos torturados, assassinados, foi não se resignar. Havia alguma beleza nisso, ainda que a vida estivesse muito longe de ser bela. Mas e agora, quando os que deveriam lutar louvam as grades de sua prisão?

Quando o mundo vence, permanecer vivo é se resignar? É se fazer cúmplice? Há alguma beleza, qualquer uma, em uma vida assim?

Penso em Adolf Joffé, que viveu segundo o sentido de sua vida: o trabalho e a luta pelo bem da humanidade, deixando a vida no momento em que teve consciência de não poder ser mais útil à sua causa. Pôde se convencer de que sua morte tinha também a beleza da luta.

Penso nos Guarani-Kaiowá. Na epidemia de suicídios entre os jovens. O que os mata é a potência de vida, cortada na raiz. Suicidar-se, então, é não se resignar com essa pálida sombra de existência, à qual não se pode chamar de vida.

Os profetas desse mundo sujo nos dizem que é preciso abrir mão da vida para sobreviver. 

Os jovens indígenas, que sabem que a vida não é útil, abrem mão de sobreviver porque não abrirão mão de suas vidas.

Às vezes o suicídio é a única porta de saída para a prisão suja que é esse planeta.


domingo, abril 10, 2022

dez anos. tudo piorou

Faz dez anos, e muita coisa mudou; antes eu queria que estivesse aqui para ver as coisas que tinham mudado. Hoje eu até penso que você teve sorte de não ver muita coisa que mudou.

O mundo ficou pior, e vai ficar pior. Isso não te surpreenderia. Não tinha como supreender gente como nós. 

Mas o pior é que algo disso ainda surpreende sim. 

Sua sensibilidade se ofenderia tanto com o embrutecimento que as pessoas passaram. Algumas delas gente que você conhecia e amava, e que hoje não reconheceria. Se tornaram duros, estúpidos, intolerantes. Seguem as ordens, se consolam consigo mesmos.

Sim, é claro que eu queria que estivesse aqui sofrendo comigo. Eu teria coisas novas pra te dizer, te ensinar também. Coisas que mudam um pouco nossa vida, tornam essa dor toda um pouco mais tolerável.

Hoje mais do que nunca faz falta alguém que te olhe, que saiba ouvir. A sua sensibilidade sempre foi rara, e hoje é quase impossível. Mas seria massacrada.

Eu tenho vontade de te seguir, cada dia mais.
Sinceramente, não tem valido à pena.
É um projeto falido.

E é sempre mais difícil ancorar um navio no espaço.