quarta-feira, abril 08, 2020

Carta de outro mundo

O mundo está um caos. E está só começando. As coisas vão ficar feias, e os capitalistas já sabem disso. No meio disso tudo, vão se completar oito anos da sua partida. É terrível sentir como sua presença é algo tão distante, como já é muito difícil sentir você por perto. Você está lá, sempre nos meus pensamentos, sempre nas minhas palavras. E eu queria que você pudesse viver aqui, em meio a esse que vai ser o maior desafio das nossas vidas até hoje.

Como você estaria hoje? Formada em pedagogia, atuando como professora. Nesse momento, com as aulas suspensas. Te imagino construindo os comitês, ajudando na organização das novas iniciativas nas redes, militando no seu computador, com uma long neck de Heineken e um cigarrinho ao lado. A Pagu no seu colo.

Conversas online, você me xingando, esbravejando com sua voz aguda e gesticulando. 

A vida que não foi continua não sendo. E, hoje, dezenas de milhares de vidas sendo interrompidas, como a sua foi. Por esse sistema social miserável em que vivemos. Vidas que não serão, pessoas sendo incineradas nas ruas do Equador, como lixo descartável. No maior país imperialista do mundo, o recorde de mortes. Imagino seu ódio e sua tristeza. O mundo te atingia demais, e talvez fosse difícil pra você esse momento. Eu me imagino ao seu lado tentando ajudar a transformar a dor em raiva, em luta.

Minha vida pessoal continua o caos, e penso em você alternando palavras carinhosas, "ah, lindo, não fica assim", com momentos de raiva, em que você me xingaria por me meter nessas situações "ah, pardal". O cheirinho dos seus cachos, misturado ao do seu Marlboro. Sua pele macia, marcada pelas cicatrizes aqui e ali. 

É terrível pensar como vidas se acabam por momentos decisivos que poderiam não existir. Sua vida, ainda penso às vezes no que poderia ter prolongado ela. E hoje, a angústia de ver milhares de vidas que acabam a cada dia. Sonhei que tentava ajudar as pessoas com remédios que não foram ainda liberados; e que nem serão produzidos em quantidade suficiente, se forem. O capitalismo segue matando, segue mutilando nossas vidas.

Você ainda é minha companheira nessa luta. Ainda é minha companheira em cada dor, e eu ainda luto para que a dor seja coragem. Eu não sei se falei aqui, nessa espécie de túmulo/confessionário virtual, que encontrei Andreia, a sua analista. Ela estava ali, como por acaso, no meio do caminho em que comecei a traçar com a sua ajuda, um caminho complementar e paralelo para tentar ser companheiro de dores e de descobertas das pessoas, e que sigo lutando para unificar com a luta revolucionária. Foi bonito e emocionante encontrá-la. Compartilhei com ela um pouco do destino trágico que se abateu sobre sua família também. Algo que poderia parecer um triste acaso, mas que acho que nem nós psicanalistas, nem nós marxistas, vemos como acaso. Acho que ela ficou feliz. Não me reconheceu prontamente, só quando eu disse a ela quem era. Pareceu acender a luz de algo adormecido ali. É claro que você marcou decisivamente a vida dela também.

Eu sigo também lutando por me revolucionar. Dou passos adiante, mas, confesso, dou passos atrás também. Suas palavras doloridas ainda me marcam. Tento aprender com os erros que cometi com você. Tento me apoiar nos acertos, nos momentos em que aprendemos juntos.

Amanhã serão oito anos completos de sua partida. Já não penso em você todos os dias, ainda que sei que sua marca indelével está lá, a cada passo. O sentimento de falta, de impotência, eu sei que a dimensão mais profunda dele até hoje eu tive com a sua morte. Mas ao longo desses anos fui aprendendo que faz parte da condição humana. Pelo menos dessa humanidade que conhecemos. E, talvez, isso me ajude a encarar de forma mais "harmônica" a falta que você faz na minha vida. Mas não é verdade que sei lidar com a falta, porque se não, não seria também parte dessa humanidade claudicante. Eu continuo errando, mas continuo andando. Hoje passo menos dias abatido, jogado na cama. Hoje penso muito menos em como seria seguir seus passos. Me fortaleci, sem dúvida. Como apostava que você poderia se fortalecer para permanecer aqui. Mas nem todas as batalhas vencemos. Ainda tenho vontade de pedir seu perdão, mesmo depois de tudo.

Hoje em minha janela brilha o sol. E o coração se põe triste a contemplar a cidade. Ele ainda se pergunta porque você se foi.

Um comentário:

Mafê disse...

ontem entrei na live do Mano Chao e escutei essa música. E percebi a data. Quando terminou, coloquei de novo, com lágrimas nos olhos, e pensei que as coisas que são distorcidas pelo tempo e pelo espaço são aquelas pelas quais devemos simplismente declinar, em momentos de pandemia. O que fica, o que permanece, isso merece nossa luta.
O luto é engraçado, porque ele não dói menos, ele simplesmente se transforma e a vida tenta dar um sentido àquilo tudo.
Eu gosto de saber que fui atravessada pela Cami. Gosto de saber que carrego isso, de certa forma, com você.
Um beijo, Mafê.