sábado, janeiro 24, 2015

Destituindo-se, despindo-se lentamente, parte a parte, dia a dia. Como montar um quebra-cabeça ao contrário, retirando cada peça, uma por vez, até que o grande desenho coerente e completo vá se transformando em um monte de fragmentos dispersos, inconclusos, incoerentes.

Ver-se ao contrário, desdito, desvisto. Redescriado, um parto para o interior de si mesmo, vivendo nas estranhas entranhas das circunvoluções do cérebro. As palavras, lá fora, ao longe, balbuciadas como rumores de uma civilização antiga da qual se desconhece por completo os significados, os ritos, os dias.

Uma morte ao olhar a face sem reciprocidade do outro. Emaranhado de traços, dessentidos. Esquecer-se do humano como o outro, como a si, como o repositório de sentido. Porque já não há comunicação. As palavras, antes brilhantes, são despejos de sons guturais vindos da caverna de um tempo em que tudo era outro. Em que se era gente, com tudo, tudo mesmo, até aqueles papéis que se usam para identificar. Até aqueles papéis, aqueles gestos, aquelas mesuras sociais que já viraram um edifício de sentidos por si mesmas. Ninguém precisava mais encontrar o sentido, ele já havia se estabelecido em seus sólidos alicerces, fundos, fortes, há milênios. Se era gente.

Hoje, não mais. Hoje balbucios, desencontros. Hoje os rostos, traços desconjunturados. Hoje os sons, os sons. A luz, fere os olhos. Hoje já não há mais dias, mais tempo, mais vida. A morte, de longe se avista, como a única fonte de sentido (amor?). Abraçar-te, ao longe. Tomar fôlego e mergulhar, procurar o sentido ali, onde já não há esse desespero esbaforido a nos perseguir. Onde des-existir é um ato morno, de ternura, e não mais os rituais sangrentos de poder desse mundo fétido, praticados contra aqueles que se quer dominar. A morte para nós mesmos, calma, serena, procura de sentido. Refúgio da podridão dos dias. A necessidade de respostas ficou para trás.