domingo, agosto 05, 2018

Hoje sonhei com você.
Não havia as duras palavras, o ódio e as lágrimas.
Havia só eu e você, como as coisas deveriam ser.

Hoje, e ontem, e amanhã, eu sinto uma dor que não posso lhe dizer.
Porque essa dor eu devo engolir a cada dia novamente,
com mais uma dose do cotidiano cinza desse mundo
que massacra toda tentativa de amar.

Eu levo esse amor como uma farsa
por que quem acreditaria nisso
que alguém tão vil,
tão sujo,
indesculpavelmente mesquinho,
possa ainda assim amar?

sábado, abril 14, 2018

As flores ceifadas de nosso jardim

Seis anos. Mais uma vez queria lhe dizer coisas que não posso. Digo-as à tela, a essas páginas esquecidas.

Durante esse ano minha dor e a ausência inescapável tiveram uma companhia, triste e inesperada. Nas palavras de quem sofreu talvez a mais dura das perdas, a perda de uma filha. Uma pequena flor, um broto arrancado, sem florescer, a raiz arrancada de uma Violeta que não pudemos ver crescer.

E quantas vezes não chorei na dor da partida da Violeta, na dor impossível de uma mãe que tão subitamente se vê sem a criança que acalentou com toda sua dedicação. Quantas vezes não vi nessa dor um espelho da minha.

O amadurecer de uma dor, o luto, é uma coisa que não se mede. Me indigno ainda e sempre com as réguas de uma medicina que quer marcar os dias e contar os prazos de nossa dor. 15 dias, é o tempo que nos é permitido sofrer (e olhe lá, porque você precisa trabalhar enquanto sofre).

Essa medida imensurável é um mistério que nos engole: quanto tempo vai demorar pra que eu consiga voltar a viver? E é uma ambiguidade terrível, que nas palavras da Marília vi tal como em mim mesmo. Será que poder viver novamente não é uma traição? Se a dor se transforma, não estou deixando para trás algo que deveria estar marcado a ferro e fogo, e sempre, e tanto? A gente se marca na pele para dizer que estamos marcados na alma. Uma marca que não se apaga.

E a gente sabe que não vai esquecer, que não vai passar. E não demora muito pra entender que a dor não vai embora. E olha um pouco indignado pro mundo, indignado porque, diferente da gente, ele não parou de girar. As pessoas vão vivendo suas vidas. No primeiro mês, todo mundo falava, todo mundo lembrava. Depois vai passando, vai ficando uma dor só nossa. E é como se tivéssemos parado no tempo.

De certa forma, sempre vamos ficar parados no tempo. Quando me pego chorando por um luto que já tem seis anos, como se tivesse sido ontem o dia da partida, já não me surpreendo que um pedaço meu ficou nessa dor. Que eu inteiro fiquei nessa dor, que não passa nem vai passar. A dor pode matar, e se a gente deixar ela nos leva embora. Eu vi, de longe, os seus pais partirem. E sempre me perguntei o quanto disso não era a dor que ficou. A dor que você já sabia que ia deixar pra trás quando partisse.

Eu vejo a força da Marília na luta por seguir a vida. Sem conseguir sorrir do mesmo jeito, mas sem se dobrar diante da dor. Uma coragem imensa, na qual me inspiro. Às vezes a gente já nem sabe mais porque resiste, mas resiste. Tem um pedaço de vida na gente que teima em viver.

Escrever é uma forma de tentar sobreviver. E mais uma vez eu vi muito da minha dor, nos textos que iam tentando dar forma, dar sentido pra esse sofrimento. Todos os dias. Depois a cada mês. Depois, uma hora, acaba passando um dia sem. E aí a gente até se sente culpado. Como se estivesse esquecendo. Como se tivesse deixando pra trás aquela dor, que, parece, é a única coisa que sobrou pra gente se apegar. Se perdermos a dor, perdemos tudo que nos restou. A gente quase se sente culpado por estar vivo. E por ter deixado escapar um sorriso em algum momento. Como pude sorrir? Como pude deixar de escrever naquele dia, mesmo tendo lembrado, como pude deixar pra depois? Ou não escrever? A gente sente às vezes que se não fala disso está deixando o mundo esquecer, e deixando o que ainda temos daquela pessoa partir.

Às vezes dá vontade de não ter continuado. Às vezes a gente ainda é só dor. E, não, passar ela não passa. Mas é como se se diluísse nessa coisa chamada tempo, que queira ou não vai se infiltrando e comendo pelas beiradas. Quando arrancam as flores do nosso jardim, ele nunca mais é o mesmo. A gente pode plantar outras. A gente pode regar aquele espaço vazio com as palavras que destilamos dessa dor. A gente faz o possível para viver. Mas mesmo com o tempo se infiltrando, aos poucos, por entre essa dor que tudo toma. Mesmo com as coisas da vida lutando até arrancar um sorriso. Mesmo que de fora olhem e digam que a gente já tá melhor, quando a gente olha para dentro muitas vezes a certeza é de que não estamos. É como tentar diluir óleo jogando água no copo. Eles não se misturam. Permanece ali, inteiro. Escondida, mas viva, está essa dor.

Conseguir viver, apesar de tudo, talvez seja nossa melhor homenagem. Essas flores arrancadas de nosso jardim sempre terão ali seu lugar, onde nada mais vai crescer. Mas cultivamos sementes de esperança e de vida. E elas crescem também por vocês.



The powers that be
That force us to live like we doBring me to my kneesWhen I see what they've done to you

Well, I'll die as I stand here todayKnowing that deep in my heartThey'll fall to ruin one dayFor making us part

I found a picture of you, o-o-oh, o-o-ohThose were the happiest days of my lifeLike a break in the battle was your part, o-o-oh, o-o-ohIn the wretched life of a lonely heart


Now I'm back on the train, yeah
O-oh, back on the chain gang

segunda-feira, janeiro 15, 2018

Dolores



Não sei se alguma vez me senti tão triste pela morte de uma pessoa que nunca conheci pessoalmente. Mas hoje me sinto como se tivessem arrancado um pedaço da minha vida; esse pedaço era Dolores O'Riordan, uma voz com quem cresci e que me ajudou a me tornar a pessoa que sou, me deu um pedaço do tecido com o qual costurei a vida.

Ela era jovem, e subitamente não é mais. Estancou no tempo, está morta e deixou três filhos além de uma legião de fãs, entre os quais um bom tanto de gente deve estar triste e sentindo órfão como estou.

Eu sempre desprezei muito o sentimento de idolatria e tietagem. Não gosto de ficar investigando detalhes da vida de pessoas públicas que admiro; nunca vi sentido em um autógrafo. E talvez por estranhar essa bizarra sensação de proximidade com as “estrelas” da indústria cultural, algo que chega a níveis doentios na tal “sociedade do espetáculo”, eu acho estranho me sentir assim.

Nunca troquei uma palavra com Dolores, ela nunca soube da minha existência. E, no entanto, sua voz me consolou em momentos tristes, difíceis, de ódio mais do que a voz de qualquer pessoa que eu ame. Suas músicas foram a trilha sonora de momentos felizes; de desilusões amorosas. Da minha adolescência e da minha vida adulta. Uma presença constante, desde meus doze anos.

Eu também tive momentos de afastamento, quando gostei menos dos “novos” discos, primeiro o
“Bury the hatchet” em 99 (quando eu tinha quinze anos e Cranberries já era uma “velha banda” na minha curta vida) e depois ainda mais o “Wake up and smell the coffe”. Depois, com o tempo fiz as pazes e aprendi a gostar das novas músicas, que foram encontrando seus significados nas minhas experiências. Os próprios membros do Cranberries tiveram seu “tempo”, dissolvendo o grupo entre 2003 e 2009. Tal como eles, não aguentei ficar muito tempo longe da banda.

Pouquíssimos músicos ressoaram tanto e tão significativamente nos meus ouvidos. Gosto de muitas músicas diferentes, mas consigo facilmente destacar quatro bandas as quais me apeguei de um jeito muito mais intenso: Queen, Cranberries, Garbage e Sleater Kinney. As músicas as quais sempre recorro, como uma volta para casa. Como um abraço de um amigo quando você precisa.

As causas da morte de Dolores não foram divulgadas. Mas certamente foram terríveis e brutais, para tirar uma vida tão jovem e florescente, aos 46 anos, num quarto de hotel durante uma viagem para gravações. Como é inevitável, eu, como qualquer pessoa, me pergunto. A maldita palavra ressoa como uma pergunta na minha cabeça quase ao mesmo tempo em que recebo o baque pesado e inesperado da notícia de sua morte. Suicídio? Com fama, talento, fortuna e filhos que eram “a sua salvação”, como ela mesmo dizia, Dolores teve sua cota de merda desse mundo asqueroso. Abuso sexual na infância que levou a transtornos alimentares, um “colapso” e, depois, um diagnóstico – mais um número da nossa lista – de transtorno bipolar. Em 2014 e 2016 foi acusada de agressão em supostos ataques maníacos.

Não sei nada sobre sua vida pessoal, nem quero na verdade, transformar isso em objeto de especulação. Mas sei que a morte de Dolores, um dos maiores talentos musicais de sua geração e em minha opinião a mais linda voz dela, muito provavelmente, é mais uma dos infindáveis crimes dessa sociedade doente. Não são coisas "casuais" ou infortúnios que lhe ocorreram. São crimes bárbaros, são a marca desse mundo. Ela sofreu a brutalidade que é reservada às mulheres. Sua mente, adoecida, foi submetida aos procedimentos monstruosos que criamos. A bizarra forma como a arte é explorada como uma mercadoria de alta lucratividade, e os artistas muitas vezes são destruídos por essa engrenagem da indústria cultural, também cobrou um preço alto de Dolores. Ela disse que, no auge da fama do Cranberries, ela se sentia “realmente doente e estragada... eu me sentia como um fantoche, um objeto." De uma forma ou de outra, ela, como tantos, foi sendo envenenada de uma forma que ninguém nunca mais deveria ser. E eu lamento, por tudo isso, ainda mais sua tristíssima morte. 


Once you ruled my mind,
I thought you'd always be there.
And I'll always hold on to your face.
But everything changes in time,
And the answers are not always fair.
And I hope you've gone to a better place.

Cordell,
Time will tell,
They say that you've passed away,
And I hope you've gone to a better place.
Time will tell,
Time will tell,
They say that you've passed away,
And I know that you've gone to a better place.
Cordell [x7]

Your lover and baby will cry,
But your presence will always remain,
Is this how it was meant to be?
You meant something more to me,
That what many people will see,
And to hell with the endless dream.

Cordell,
Time will tell,
They say that you've passed away,
And I hope you've gone to a better place.
Time will tell,
Time will tell,
We all will depart and decay,
And we all will return to a better place.
Cordell [x7]

Era uma vez, você reinava em minha mente,

Eu pensei que você sempre estaria ali.

E eu sempre lembrarei de seu rosto.

Mas tudo muda com o tempo,

E as respostas não são sempre justas.

E eu espero que você tenha ido para um lugar melhor.



Cordell,
O tempo dirá,

Disseram que você morreu,

E eu espero que você tenha ido para um lugar melhor.

O tempo dirá,

O tempo dirá,

Disseram que você morreu,

E eu sei que você foi para um lugar melhor.

Cordell [x7]




O seu amante e seu filho irão chorar,

Mas sua presença permanecerá para sempre,

Era assim que deveria ser?

Você significava algo a mais para mim,

Mais do que muitas pessoas verão,

E para o inferno com o sonho sem fim.




Cordell,
O tempo dirá,

Disseram que você morreu,

E eu espero que você tenha ido para um lugar melhor.

O tempo dirá,

O tempo dirá,

Todos nós iremos partir e decair,

E nós vamos todos retornar para um lugar melhor.

Cordell [x7]

quinta-feira, janeiro 11, 2018

Queria que um grito bastasse
para dizer tudo que não me cabe
tudo o que nesse mundo de merda
diz não à vida, à liberdade

Mas há muito para um grito
e minha voz, rouca, já nem gritar consegue
sufoca

Abafa em meio ao caos, em meio à ordem
imposta.
Em meio ao quinhão que te cobram,
e já não resta um tostão
nem para pagar o amargo trago
que ao fim do dia te faria esquecer a dor
e anestesiar os músculos cansados
e a mente entorpecer
para que possa ao menos parar de pensar
e começar outro dia.

Não há grito que dê conta de dizer essa dor
Não há dor que dê conta de doer essa vida
Não há vida que dê conta de morrer essa morte
que já há muito tempo se tornou
maior e mais forte
do que você possa dizer

Quando morre mais um
e mais um e mais um
caindo ao teu lado
já não há mais surpresa
e nem grito, nem lágrima
um corpo morto que cai
como o teu, que continua

já não há mais grito, nem dor, nem surpresa
nem morte há mais, porque já é igual a vida
E já não há o que dizer

e por isso não digo

quarta-feira, janeiro 10, 2018

a mim

Pare e diga foda-se
foda-se a tudo ao redor
que te acossa, te importuna
te exige e não te larga, e te apressa

Diga a tudo que é necessário, nem que seja às vezes
pertecencer-se.

Exigir, em um mundo que nada nos permite
que ao menos nós, essa coisa degradada
agredida, explorada, estreitada, destruída,
mas que ainda devemos chamar de “eu”,

que essa coisa nos pertença.
Que possamos tomá-la,
rejeitar o mundo que a demanda por inteiro

E dizer não
foda-se você
o que você quer de mim
o que você pensa de mim
o que você pensa que eu quero de mim
ou de você
ou de qualquer coisa que seja

foda-se.
Eu preciso de mim.
Sem satisfações,
sem explicações,
sem demandas,
sem exigências.

É preciso um pouco de ilusão nessa vida
a ilusão, por um segundo,
de que podemos pertencer a nós mesmos
e a mais ninguém


O pensamento mais assombroso que pode haver é a imensidão da vida, a sua potencialidade infinita, e o contraste com a miséria e a estreiteza dolorosa do que vive a imensa maioria da humanidade.

O planeta é mesmo uma prisão suja.

segunda-feira, janeiro 08, 2018

I- Infância

Demorei um bom tempo até descobrir o que me incomodava mesmo, quer dizer, que tipo de gente eu era afinal. Quando moleque, já era uma criança esquisita. Claro que não era assim que me chamavam os adultos, com seus bem treinados eufemismos cretinos para tentar ridiculamente mostrar uns pros outros que sabem fingir que não veem o óbvio. Ou que o óbvio não é aquilo, mas outra coisa complicada que inventaram para ficar no seu lugar. As crianças, que ainda não tinham sido estragadas por esse hábito social que é a base dessa montanha de merda a que deram o nome de “civilização”, eram mais honestas ao menos. Elas sim diziam francamente que eu era esquisito.

Não é que as crianças fossem melhores, longe de mim achar isso. As crianças são mais nítidas, são transparentes, como se não tivessem ainda tido tempo de nutrir essa espessa camada com a qual cobrimos a monstruosa verdade do que queremos. A sua crueldade se vê a céu aberto, elas dizem como desprezam os demais, como querem apenas satisfazer suas próprias necessidades mais imediatas e individuais; e quando o fazem, são duramente repreendidas pelos adultos, que vão aos poucos lhes incutindo a capacidade, ou melhor, a imprescindível habilidade de mentir para o “bom convívio”. Quando se cresce, a dura sinceridade das crianças já está devidamente esmagada sob um disfarce que apresentamos como nossa cara; até que nós mesmos acreditamos que somos essa mentira que apresentamos para os demais.

Não satisfeitos em mentir uns para os outros e para si mesmo sobre o que são, os adultos também precisam mentir a si mesmos sobre as crianças e o que elas são, dizendo que são “puras”, “ingênuas”, “sem maldade”. Essa última mentira, repetida à exaustão, e cujas frequentes tentativas de se desmentir são combatidas com a maior violência e virulência, é absolutamente necessária para manter a absurda ideia de que, no fundo, somos todos “bons”, e não feitos essencialmente daquilo que se convencionou chamar de “egoísmo” e condenar de maneira hipócrita – enquanto nossa “criança interior” continua cuidadosamente o cultivando.

De todo modo, quando era criança o meu convívio social se dava, em grande parte, com outras crianças, que com sua brutal sinceridade e sua autêntica crueldade tão tipicamente humanas me fizeram logo perceber – e não poder esquecer disso por um segundo sequer – que eu era uma criança esquisita. As formas de polidez, os eufemismos e os atenuamentos para falar da minha condição particular ficavam reservados aos adultos em seus diálogos: professores, pais, seus amigos. Enquanto isso, eu recebia ostensivamente de meus colegas, essas “flores primaveris” do jardim-da-infância, a implacável marca da distinção, como a marca a ferro na testa do louco ou do criminoso do vilarejo para dizer a todos quem ele é.

Músicas eram cantadas para mim com a intenção de me humilhar. Agressões e provocações eram um passatempo que trazia muita alegria para as crianças ao redor. O prazer “puro” e “ingênuo” de se sentir superior ao inferiorizar outro ser humano, esse se manifestava sem disfarces na relação das demais crianças comigo. Contrariamente ao que se pode pensar, eu creio que devo muito a esses pequenos carrascos: me ensinaram de forma precoce e inequívoca o sentido da humanidade e do convívio social.

O constante castigo por se ser como se é pode apresentar diferentes resultados em quem os sofre. É claro que nada daquilo me agradava, e não deixava de sofrer sentindo em mim um grande alvo para as zombarias infantis de todos os colegas. Mas, bom, eu não era o único. Sempre há outros desajustados, outros esquisitos para serem vitimados pela ditadura da “normalidade social”. Se na boca dos adultos o comportamento duro das crianças com seus colegas “diferentes” ganha uma condenação formal, por baixo desse discurso há um sentimento de gratidão: a crueldade, que muitas vezes ganha em intensidade e ousadia na fase adolescente, cumpre um papel social indispensável nesse mundo. Em primeiro lugar, ensinar a quem não se encaixa qual é o seu lugar. Em segundo lugar, tentar conformá-los aos estreitos padrões aceitos socialmente. Claro, mesmo quando a humilhação impele aos excluídos que se conformem para poderem ser aceitos, nem sempre eles conseguem. Mesmo assim, cumprem um papel: o de exemplo.

Era esse o caso de uma outra criança que teve a desgraça de habitar a mesma escola que eu. Pedro tinha uma lesão cerebral congênita, o que lhe trazia muitas marcas distintivas que as demais crianças simplesmente não conseguiriam “deixar barato”. O déficit intelectual, se fosse o único sintoma, poderia ter ficado despercebido, pelo menos, quem sabe, até a adolescência. Mas o rosto de Pedro trazia estampada a diferença; seus movimentos, mais lerdos e imprecisos, e realizados a um custo muito mais elevado do que os das outras crianças, eram os trejeitos “perfeitos” para que alguns colegas que já mostravam o talento para buscar avidamente a admiração de todos e o “brilho” público pudessem fazer o seu “show”. E, assim, imitavam Pedro arrancando gargalhadas das demais crianças, que se regozijavam rindo do menino defeituoso.

Outra característica de Pedro que garantia grande alegria aos pequenos era sua irritabilidade, e a forma como se comportava ao ficar nervoso. Corando como um pimentão, ele soltava grunhidos, se agitava todo e batia os braços e mãos. Às vezes se tornava mais agressivo e arremessava objetos, o que dava um ar a mais de “desafio” a quem se postava como a estrela do show ao ir lidar com o estranho animal que intrigava a todos, como o domador de leões do circo. Lembro-me de uma vez, que passando esses limites, a frustração de Pedro chegou à sua bexiga e o fez urinar nas calças. É claro que foi o delírio das crianças, e apenas com muito tempo e repreensões da professora o apelido de “mijão” deixou de ser o nome mais utilizado para designar Pedro.

Ele não me inspirava simpatia, mas aprendi muito vendo esse colega que dividia comigo o infortúnio de ser desajustado e, para minha sorte, fazia com que eu quase parecesse normal em contraste com ele. Éramos, de fato, muitíssimo diferentes, mas na realidade pouco importa. O que importava mesmo é que não éramos iguais aos outros. E ele, atormentado por sua estranheza, procurava em vão formas de se adaptar, de parecer mais normal. Pedro não queria ser diferente, e, obviamente, os adultos deviam lhe dizer bobagens como “você não é diferente”, ou “você é especial”, tentando alimentar nele a ilusão de que poderia em algum momento fazer parte do mundo das crianças que lhe humilhavam. A crueldade infantil, como sempre, era consciente ou inconscientemente ignorada pelos adultos.

Eu rapidamente entendi que o caminho mais rápido para conseguir ser aceito era mostrar a sua própria capacidade de humilhar alguém outro. Essa opção estava ao alcance da minha mão: tivesse eu um dia qualquer, bem no meio do pátio ou dentro da sala, à vista de todos, acabado com Pedro ou com alguma outra criança desprevenida, as coisas certamente mudariam para mim. Ainda que não fosse aceito, teria imposto ao menos um respeito, uma hierarquia que facilitaria minha vida. Eu não era uma criança mirrada e fraca, o que me deixava também aberta a possibilidade de escolher um de meus algozes e torcer-lhe o braço, enfiar sua cara na terra, abaixar-lhe as calças ou fazer qualquer outra pequena crueldade que o destituísse de seu posto de “superior”. Poderia passar a ser uma criança temida, ao menos, o que me daria uma vida mais tranquila na escola.

É claro que naquele momento eu não tinha uma clareza tão racional disso tudo; não havia ainda compreendido que a crueldade e a humilhação têm suas próprias regras bem estabelecidas não apenas entre as crianças – quando começamos a aprendê-las – mas também no mundo adulto. De toda a forma, eu já sentia tudo isso, e lembro-me mesmo de considerar essas possibilidades. Por que então não fiz nenhuma delas?

Bom, a verdade é que rapidamente tomei um caminho muito distinto de Pedro: o seu sofrimento gerado pela humilhação alheia lhe instigou à triste conclusão da auto-humilhação. Quanto mais lhe diziam inferior, mais ele acreditava, mais invejava as crianças normais e desejava ser aceito por elas. Essa é, eu creio a regra fundamental para que o mundo se mantenha assim: os humilhados admiram seus humilhadores, desejando ser eles; e enquanto desejarem ser eles, aceitarão as humilhações procurando um caminho inexistente para que possam, como nos seus sonhos, passarem a ser eles mesmos os humilhadores. Toda a crueldade que despejavam em Pedro ele acrescentava àquela que já existia dentro dele, e a cultivava secretamente. Ninguém o percebia, mas eu passei a ver como aquela criança estúpida e chorona lentamente se transformava naquilo que o estavam moldando.

Incapaz de encontrar uma criança a quem ele mesmo pudesse agredir, insultar ou fazer algo para se mostrar ou sentir superior, Pedro procurou outros lugares onde pudesse expressar seu ódio e sua crueldade que se alimentavam cotidianamente daquilo que as outras crianças faziam com ele. Os desenhos que fazia se tornavam mais violentos, sempre com pessoas se partindo, sangue, objetos pontiagudos, gritos. Nas suas brincadeiras solitárias, ele descontava em bonecos ou blocos de montar o seu ódio. Batia com força os brinquedos e muitas vezes era advertido pela professora por estragar algum que fosse mais delicado. Era ali que ia se depositando o ódio e a frustração de Pedro, enquanto crescia seu triste desejo por ser normal, por ser como as crianças que lhe humilhavam.

Mas é claro que o poço que estava sendo cavado nele era fundo demais para que apenas desenhos e bonecos pudessem extravazar tanto rancor. Mesmo porque o pensamento de Pedro era pouco dado a abstrações, era limitado e concreto; ele precisava ver diante de si sofrimento que expiasse sua própria dor. Então ele procurou coisas vivas. No pátio, destruiu um formigueiro com violência, pisoteando. Seu rosto tinha uma expressão de satisfação que nunca havia visto. Passou a gastar seu tempo em minuciosas buscas por insetos em meio à terra e as plantas, e quando os encontrava exercitava sua crueldade destruindo-os da forma mais criativa que pudesse. Os adultos não se davam conta, talvez muito preocupados em manter sua historinha de que as crianças eram todas boazinhas, talvez tentando fingir que Pedro poderia ser “mais um” com seus colegas e que logo iriam parar os episódios de perseguição.

Mas logo eles perceberam que havia “algo errado”. Foi quando Pedro pegou um martelo de bater carne escondido da cozinha de sua casa e resolveu partir para algo “mais elaborado”, vendo o que poderia fazer com um dos filhotes que sua cachorra havia parido recentemente. Eu imagino a satisafação de Pedro ao ouvir os ganidos do filhote enquanto o destruía com aquele martelo. De alguma forma, deveria ser como tirar um peso de seu ombro, das próprias “marteladas” que havia recebido tantas vezes dos colegas. Quase não vi mais Pedro depois disso. Ele acabou saindo da escola, sei lá o que inventaram que seria “melhor” para ele. Dúvido, de toda forma, que tenham conseguido fazer alguma coisa por aquela criança. O que se expressava ali naquela escola, e depois nele descontando da forma que pudesse em insetos e bichos, era uma lei do mundo dos homens.

Comigo as coisas foram diferentes, eu não era como o Pedro. Não porque fosse melhor, claro que não. Apenas muitos anos depois fui entender que, na realidade, havia muito em comum na forma como “sobrevivemos” àquilo. Talvez eu tenha tido apenas sorte – será? – de que eu não precisava de martelos de verdade ou de bichinhos mais indefesos para expiar meu ódio e frustração. Eu nunca tentei ser aceito, talvez porque consegui de alguma forma ir assimilando ali mesmo, naquelas precoces primeiras lições, que aquilo tudo era podre, podre demais. E que, se era verdade que não conseguiria escapar – o que, é claro, eu ainda não sabia – eu ia encontrando recursos dentro de mim para explorar esse ódio. Eu passei a desprezar os que me humilhavam; não queria ser como eles, nem queria ser aceito. De alguma forma, era motivo de orgulho para mim ser excluído: em minha cabeça, isso significava que eu era melhor que eles.


Esse desprezo era o meu “martelo”, na verdade: pude sobreviver sem precisar ver um filhote despedaçado sob meus golpes, mas por outro lado talvez o ódio que Pedro expiava naqueles golpes fosse muito mais simples, muito mais autêntico e purificador. Como essa crueldade “pura” das crianças, a forma que ele encontrou era também mais limpa, mais direta, porque era assim que ele lidava com o mundo. O meu ódio se fincou em mim e ali construiu sua fortaleza, e dali nunca mais saiu.     

sábado, janeiro 06, 2018

Eu fico fritando – talvez na melhor das hipóteses, porque às vezes já nem isso me sinto muito capaz de fazer – e tentando entender o que aconteceu. Como aconteceu, quando aconteceu. Como eu fiquei desse jeito. Eu olho pra trás e pra agora, tento fantasiar qualquer coisa que me entusiasme para que eu possa acreditar numa resposta mágica, pelo menos isso, uma esperança de que não precisa ser sempre assim.

Será que aconteceu uma hora que nem percebi nada? E aí de repente eu estava assim. Será que foi aos poucos? E aí fico revendo os anos, as escolhas, as coisas que fazia e que fiz. Será que foi ali, naquele momento decisivo em que ela morreu e “tudo mudou”? Mas, o pior de tudo é: será que não tem nada de “ficar assim”, será que na real eu sempre fui assim, e o presente é só uma cela suja de onde não consigo olhar para fora, e na qual fantasio que há um lugar longe dali onde tudo é bom, bonito e... sei lá, esperançoso ao menos. E cada presente sempre foi assim, mas quando essa cela se move aos poucos junto comigo ao longo dessa nossa abstração chamada “tempo” eu não consigo perceber que ela se move e deixa do lado de fora tudo o que acredito que eu deveria ser, fazer, viver.

Não – eu repito pra mim – não é isso. Eu lembro oras, lembro das coisas que fazia. Ora, eu escrevia, aqui mesmo, eu refletia, eu planejava, eu enfrentava as coisas. Eu tocava. Eu me interessava. Eu me apaixonava pela vida, pelos seus desafios, pelas suas novidades, seus mistérios. É claro que há um “fora” desse lugar em que me meti. É claro que eu vim de lá.

Veio? Nas suas tardes intermináveis de infância, nas quais a descoberta da palavra “tédio” foi quase uma epifania para expressar uma angústia infantil sempre presente. A incapacidade de levar qualquer tipo de paixão até o segundo degrau de uma longa escada. O precoce ódio da humanidade, a descoberta de sua insuficiência.

As amizades, você diz. Elas eram uma diferença substancial. Esse isolamento impenetrável de onde não consigo me comunicar com ninguém; essa impaciência com tudo, todos, comigo, com os outros: isso não era assim. Ou era? Claro, havia tempo livre, havia distração a rodo. Isso, é nítido, é sim um presente que as crianças podem desfrutar. A ausência de preocupações sérias. Ainda que, em retrospectiva, algum adulto que pudesse passear pela sua cabeça infantil certamente poderia ficar assombrado com algumas questões bem pouco infantis que já te atormentavam. A carapaça que você criou pôde ter brechas pelo contato com os semelhantes. O que acontece que nem os que mais se assemelham agora te parecem semelhantes? Por que não há contato?


As palavras já não te saem. São mecânicas, forçadas, se as consegue a custo arrancar dos dedos. São obrigatórias. A vida é um beco sem saída. Se consegue se perguntar, logo o ímpeto esmorece frente à brutal muralha de um cinza infinito, que pinta uniformemente, o fora e o dentro se confundindo, a vida e a morte indistintas. Às vezes chora, e quer pedir desculpas por todos com quem invariavelmente falhou. Os amigos que abandonou, as namoradas que decepcionou, a família a qual não pertence, os camaradas a quem trai com seu interior ressecado de onde não brota nenhum futuro. Nenhuma insignificância pode te salvar de si mesmo. Dorme e já não consegue sonhar. Corta-se, e não escorre sangue. Tua vida gangrenou. E, balbuciando esse lixo, agora já apenas por uma ilusória busca de sentido, de alívio, já não sabe o que faz. Nem porque.