segunda-feira, setembro 29, 2014

Tempo




matéria de nós
estico os dedos, doloridos,
e toco, bem de leve,
o sentido de você.

Vendo meu tempo
por um punhado de moedas
para gente que não se importa
se vivo ou morro.

Penso em você,
no seu tempo,
vendido, como o meu.

burocracias, rotinas, papéis.
linhas de bloqueio, trens, bilhetes.

Nosso tempo escorre.

Nossa luta
para que todos possam
possuir seu tempo.
viver, sonhar, amar.
encerrar a longa noite,
a pré-história da humanidade.

dê a mão, as horas escassas,
a duras penas ergueremos,
a ponte ao futuro
dos que virão.
o sacríficio desse tempo magro valerá
dar ao amanhã nosso pouco hoje

tropeço nos minutos
adivinho e tateio
preencho as lacunas
minha medida é a de um sonho
em que você caminha ao meu lado
pouco importam os exageros
na caminhada os corrijo

nos descaminhos todos
apenas o que quero
é tocar, só um pouco,
no pouco tempo do hoje,
suas necessidades, e as minhas,
de amor, cuidado, desejo.
porque a caminhada é longa e dura.


quarta-feira, setembro 24, 2014

Entrelinhas

Entre a amarela
            e a azul
            fica essa parte de minha vida

Mais-valia
                que gero na pública
e deixo na privada,
                com o suor (nosso)
do lucro de cada dia.

Entre as linhas
          agudas de Ana C.
e os acordes
          rasgantes de Cat P.
preparo-me
                 ao papel de ponte.

casa
       trabalho
casa
       trabalho

subo à superfície pra respirar
pra te inspirar
procuro sua voz
minha vida
nas entrelinhas.

Suspense(ão) do desejo



Nada, esta espuma

Por afrontamento do desejo
insisto na maldade de escrever
mas não sei se a deusa sobe à superfície
ou apenas me castiga com seus uivos.
Da amurada deste barco
quero tanto os seios da sereia.

Mocidade independente

Pela primeira vez infringi a regra de ouro e voei para cima sem medir as consequências. Por que recusamos ser proféticas? E que dialeto é esse para a pequena audiência de serão? Voei para cima: é agora, coração, no carro em fogo pelos ares, sem uma graça atravessando o estado de São Paulo, de madrugada, por você, e furiosa: é agora, nesta contramão.

cabeceira

Intratável.
Não quero mais pôr poemas no papel
nem dar a conhecer minha ternura.
Faço ar de dura,
muito sóbria e dura,
não pergunto
"da sombra daquele beijo
que farei?"
É inútil
ficar à escuta
ou manobrar a lupa
da adivinhação.
Dito isto
o livro de cabeceira cai no chão.
Tua mão que desliza
distraidamente?
sobre minha mão



Como terei orgulho do ridículo de passar bilhetes pela porta?
Esta mesma porta hoje fecho com cuidado; altivo.
Como não repetirei, aos teus pés, que o profissional esconde no
índice onomástico os ladrões de quem roubei versos de amor
com que te cerco.
Te cerco tanto que é impossível fazer blitz e flagrar a ladroagem.


domingo, setembro 21, 2014

Mulher incrível























Uma mulher incrível entrou na minha vida
não me pediu licença
nem eu a ela.
(mas é mentira: eu acredito nela).

Olho ali do canto
                     tímido
               - como sempre...
tento sem querer,
          tropeço,
    tento de novo.
leio,
acaricio esses pensamentos confusos
ou são os meus?

31 anos: momento de um desfecho.
              o que se encerra em tão tenra idade?
        Ou será que é um início,
e nós nem vimos?

Sim eu vi. Já havia visto. Sempre a vi, e a conheci ali
na margem oculta do desejo.
31 anos e a vida em um momento de clivagem.
Começo e fim.

Não parta, não. entre,sente,fique.
Te sirvo chá
       com bolachas,
    meu coração,
30 anos e a vontade
           do mundo.

Toma as palavras dela
          que as minhas, com todo esse desejo,
   não dizem mais que bobagens.















Onze horas

Hoje comprei um bloco novo.
Pensei: a você o bloco, a você meu oco.
Ao lápis a mão e os pensamentos em coro
Me sugeriam rimas e sons mortos.
Para, coisa. Se oculta, rosto.
Cessa estes ecos porcos,
Esta imundície coxa, este braço torto
Reabre o tapume verde do poço,
Salta dentro, ao negrume tosco
E se nada resta afoga-se no lodo
Para que sobre o resto do nada, o sono.
                               (Sussurro.) Euvocê.

- Ana Cristina César, maio de 1968.

sábado, setembro 20, 2014

Da luta que nos faz

As palavras nunca são suficientes para conseguir expressar aquilo que sentimos. Mas tem vezes que parece que elas não dão nem pro começo. É assim que eu me sinto diante da vitória da greve dos trabalhadores da USP. O triunfo de uma batalha, ainda pequena, ainda defensiva, mas que é imensa. E que sinto como minha, como parte da luta que é a minha vida. Sinto como minha ao lado desses herois de toda uma classe, que deram uma lição aos seus irmãos e a seus inimigos.



Lembro do arrepio me percorrendo enquanto filmava mais de mil trabalhadores votando o início da greve no vão do prédio da história, no dia 27 de maio. Uma onda se gestava ali, e que por sua vez já havia sido impulsionada pela ressaca das ondas anteriores: as ondas de junho e as dos garis, que arrastaram o país em sua correnteza e deram um belo caldo nos governos e patrões.

Mas na maré que criava o empuxo dessa onda havia também outras influências profundas. Há quatro anos os trabalhadores da USP não faziam uma greve, e para quem olhava a calma superfície parecia que a água não voltaria a se mexer. Mas as aparências enganam, e não é com um ou outro ataque de um reitor-capacho enfiado goela abaixo por um governador, nem com um ou dois prêmios cala-boca, que se destrói uma tradição consolidada por décadas de lutas. E os trabalhadores da USP têm uma tradição que corre na sua história, no sangue de sua classe, nos cabelos brancos dos diretores de seu sindicato; uma história que se confunde à história dos últimos grandes embates de classe desse país.



Uma boa semente, para brotar, só precisa de um solo fértil. Nada mais. Foi esse solo fértil que estava encoberto que surgiu quando o reitor Marco Antonio Zago e sua arrogância decretaram o arrocho salarial com o não-reajuste de 0%. Uma fera adormecida despertou, e a estrondosa votação de greve no dia 27 de maio foi apenas seu primeiro rugido. Diga-se, aliás, que bastante insuficiente para amedrontar seus inimigos, que têm, eles também, uma tradição e uma força imensa.

O segredo dos trabalhadores da USP estava no que não se via. O que eles mesmos não conheciam. Estava em mulheres e homens que, até ontem, viviam vidas normais, trabalhando na universidade e tocando seus demais projetos pessoais. Só que situações extraordinárias mudam as pessoas extraordinariamente. E não precisou mais do que o estalar dessa greve, algumas reuniões nas unidades, reuniões do comando de greve e atos para que alguns lembrassem e muitos descobrissem algo que passam a nossa vida inteira tentando esconder de nós: podemos ser sujeitos de nosso destino. Essa ideia estava ali no ar, na cabeça de muitos, mas precisava tomar corpo e mostrar que merecia existir não apenas como ideia, mas como ação.



Hoje, seus patrões que os olhem com desconfiança, porque cada um deles sabe - na prática - que a força que cada patrão tem para mandar em alguma coisa não vem senão do trabalho de cada um que ele explora. E o equilíbrio que sustenta essa relação parasitária parece inabalável, indestrutível, como um dogma, como a "ordem natural das coisas". Mas ele é um tronco devorado por cupins, oco e podre por dentro, frágil e que pode ceder a um golpe certeiro. A dominação se sustenta no poder das armas, das leis, da grana. Mas, antes de tudo, ela se sustenta na crença de que é impossível as coisas serem de forma diferente. Quando, em junho, arrancamos vinte centavos das tarifas, esses vinte centavos não mudaram a vida das pessoas. Mas a ideia de que é possível arrancá-los mudou tudo.

Os trabalhadores da USP arrancaram um aumento que não cobre a inflação que devora seus salários. Depois de 116 dias de luta incansável, com grandes sacrifícios pessoais, eles conseguiram um reajuste escalonado de 5,2% e um abono de 28,6%. É pouco perto do que é necessário para viver nesse mundo, para pagar o aluguel, as contas, as compras, as despesas, as dívidas, as faturas. Pouco importa: esses 5,2% tem o cheiro do medo dos patrões diante da força dos trabalhadores organizados; eles são o retrato da reitoria e do governo de joelhos, com todas as suas leis e armas, diante dos trabalhadores que tudo produzem.

Eu vi pessoas que andavam enfiadas em suas vidas, soterradas por um mar de rotina e exploração. E aprenderam a olhar para o lado, a ver em seu colega de corredor um companheiro que estará ali para apoiá-lo nas batalhas mais duras; um irmão de classe. Aprenderam que as barras das prisões nas quais nos jogam são forjadas sobre mentiras, quando levaram seu companheiro Fábio. Mas que essas grades também foram erguidas sobre nosso trabalho, e que podemos dobrá-las.

A vitória ensinou a lutar. E hoje ela é imensa, e, como a primeira de muitos desses lutadores, ela sempre será imensa na memória. Mas logo olharemos para trás pensando como ela é pequena diante dos novos triunfos que virão. E virão porque, um dia, essas mulheres e homens aprenderam que podiam lutar, que podiam ser os donos de seu destino. Eu me orgulho de estar entre esses e travar essa luta ao seu lado.


sexta-feira, setembro 19, 2014

quarta-feira, setembro 17, 2014

A polícia só está fazendo o seu trabalho

Hoje, na correria do dia, só vi a televisão de relance. Mas uma frase era repetida como um mantra hipnótico aos telespectadores:

"A polícia só está fazendo o seu trabalho."



Sim, é verdade. A polícia estava fazendo seu trabalho. Qual era ele? Atacar 300 famílias, crianças, mulheres grávidas, velhos, todos, todos, todos. Para defender um dos valores mais importantes dessa sociedade: a sagrada propriedade privada.

A mídia passou o dia registrando imagens. E ela escolhia bem o que iria de pano de fundo ao seu mantra. A voz, em tom de revolta, repetia: "A polícia só está fazendo seu trabalho. Há manifestantes atacando ela." Os manifestantes atacavam ela, e as imagens não mentem: mostravam pedaços de sofá, pedaços de cama, pedras, pedaços de pau voando pelas janelas do prédio em cima da polícia.

As janelas de um hotel abandonado no centro da maior e mais populosa cidade do país, uma das maiores do mundo, cuspiam pedaços de móveis enquanto a polícia descarregava suas bombas. O hotel, abandonado há mais de dez anos; as famílias, jogando seus poucos pertences em cima dos soldados para se defender.

Uma telespectadora, minha nova colega de trabalho, manifestou-se na copa do meu trabalho, onde eu assistia às cenas: "um monte de gente pagando aluguel, trabalhador tudo morando na periferia, e esses vagabundo querem morar no centro, e de graça."

Isso. Os trabalhadores moram na periferia e pagam aluguéis caros. Porque no centro há hotéis abandonados há mais de dez anos, esperando a especulação imobiliária valorizá-los mais, enquanto isso os proprietários ganham seu dinheiro cobrando aluguéis caros dos trabalhadores que moram na periferia. E eles só podem fazer tudo isso porque há uma polícia para "só fazer o seu trabalho" de defender seus hotéis abandonados, e porque muitos trabalhadores olham outros apanhando na televisão por ocupar um hotel abandonado e concordam, não com eles, mas com a polícia, que "está só fazendo seu trabalho".



Outras imagens passavam: um homem, visivelmente bêbado, dançava em frente à tropa de choque armada em prontidão. "O manifestante provoca a polícia", diz o narrador. Dois policiais saem da formação, prendem o homem e retornam. Assisti essa imagem mais umas três vezes em meu intervalo de quinze minutos do trabalho. Era, como o pedaço de cama voando pela janela, mais uma dessas provas de que, enquanto "a polícia só estava fazendo seu trabalho", manifestantes atacavam-na, violentamente, com o resto de seus pertences.

Isso, na visão de minha colega, tornou-se mais um argumento: "Olha lá, jogando cama, quem é que joga as suas coisas na rua desse jeito?". Era uma pergunta retórica, mas a resposta estava bem clara na tela: as pessoas que têm sua moradia ameaçada jogam suas coisas na rua, na cabeça de quem ameaça seu direito de morar. Quem não joga suas coisas é quem não precisa disso pra tentar resistir...

Eu não respondi à colega, mas teve quem o fizesse, ainda que não se dirigindo a ela diretamente, mas a todos ali: disse que morou em uma área ocupada durante o governo Quércia, que fora expulso e que o dono do imóvel devia mais de dez anos de impostos. Essa, invariavelmente, é a história de todos os imóveis ocupados. A mulher fez que não era com ela. Ela estava em seu intervalo, mas a cabeça estava cheia: fazia naquele dia hora-extra para ganhar um troco a mais. Eu não sei porque ela queria o troco a mais da hora extra, mas sei o que permite a ela fazer hora-extra: que faltem funcionários para atender a demanda da estação; que os que trabalham não recebam o suficiente e precisem fazer hora-extra; que alguns dos que ali trabalham chamem de "vagabundos" os que apanham da polícia "que só está fazendo seu trabalho", mas não digam nada dos que enchem seus bolsos roubando a empresa pública na qual trabalham. E, é claro, também  não esqueçamos dos policiais que "só fizeram seu trabalho" ao atacar, tal qual àquelas famílias no centro, os seus colegas em greve há cerca de três meses, garantindo a continuidade dessas condições de trabalho.

O intervalo terminou. Ela foi fazer a hora-extra, eu fui continuar treinando meu novo ofício. A polícia, enquanto isso, continuou fazendo seu trabalho. E fez exemplarmente: no final do dia, São Paulo tinha 300 famílias a mais na rua, mais de 80 novos presos, e algumas dezenas de feridos. Diante disso, é de assustar que ainda tenha muita gente, de direita ou de esquerda, que diga que a polícia é despreparada. Nada disso: nossa polícia é muito bem preparada, e ela só está fazendo o seu trabalho.

segunda-feira, setembro 15, 2014

Seis sentidos




Decisões que fizemos
que nos fizeram
cicatrizes
no couro da alma
as marcas
de tudo aquilo que já foi sentido

tateamos
as escolhas parecem poucas
o tempo parece pouco
a vida parece pouca
e nos dá rasteiras
mas sabemos
que não adianta apenas olhar pro chão,
sentido.

É preciso arrancar alegria ao futuro
se, nos teus sonhos, teus impulsos ganham a carne do teu desejo
invadem tua percepção, teus sentidos,

saiba que ali, do outro lado do sonho,
há um outro alguém que desenha nas nuvens também
uma fantasia, um futuro, emaranhados,
buscando uma vida plena de sentido.

Botar abaixo os medos, as idealizações,
seguir sereno, fazendo da vida uma labuta diária,
segurando os impulsos, cavalgando os sonhos,
enchendo-lhes de realidade.
Olho adiante, pra você e o futuro,
caminho nesse sentido.

Lembrando como é sentir,
consigo olhar para frente, pro futuro,
com a cabeça erguida, posição de sentido.

As escolhas são nossas.
E o futuro pode nos pertencer.

"É preciso sonhar, mas com a condição de crer em nosso sonho, de observar com atenção a vida real, de confrontar a observação com nosso sonho, de realizar escrupulosamente nossas fantasias. Sonhos, acredite neles."

- Lenin.





Chegança

Amanhã começo a trabalhar como metroviário na estação Tietê do metrô.
Sim, dá um frio na barriga. Como poderia não dar?

O que achei mais legal é pensar em como vou estar num dos lugares onde mais passam as pessoas que chegam a essa cidade, de todos os cantos do país. Dezenas de milhares de pessoas que desembarcam com sonhos, expectativas, esperanças, projetos... que vêm muitas vezes trazendo o pouco-tudo que têm nesse mundo, chegando sem nem saber direito o que é um metrô, o que é uma São Paulo, o que é esse monstro filho daquilo que chamamos curiosamente de civilização.

É triste, muitas vezes. São pessoas que em alguns casos serão recebidas por essa cidade indiferente como "o homem que virou suco". Mas elas estão vindo para vender sua força de trabalho, tentar arrumar alguém que pague um salário um pouco melhor para poderem tentar a vida. E vão engrossando as fileiras daqueles que trarão o amanhã para esse mundo, sobre os escombros desse mundo velho. Aqui, muitas vezes, sua cabeça encontrará novas ideias, novos sonhos, e nada nunca mais será o mesmo que antes.

É uma honra poder recebê-los. Espero que eu esteja à altura dessa tarefa, e possa ajudar, só um pouquinho, a essa mudança ser tranquila.

sexta-feira, setembro 12, 2014

Desejo

"(...) existem muitas pessoas 
que pensam como revolucionários
 e sentem como filisteus."

- Leon Trotski, Literatura e Revolução

Anseio
vazio
no peito um aperto
um buraco negro
dragando 
pensamentos, sentimentos, horas, dias, rotinas.

Anseio
na cabeça não param
compromissos, horários, contextos,
é tudo desejo.

Em mim, também, a anatomia ficou louca:
sou só coração.

Nas circunvoluções emaranhadas de teu cérebro,
nas páginas nunca escritas de teus diários,
nos teus sonhos indecifráveis:
onde se escondem teus desejos?

Quem coloca a vida a prova,
o faz por paixão.

Como pode esse amanhã que não é teu
instigar esse desejo violento?
Em que hoje que mora esse seu embrião de futuro?
De que gestação acalentada por teus sonhos virá a poesia?

Olhando em volta, às vezes se vê
bandeiras vermelhas autômatas,
recortes remastigados e repisados em panfletos de hoje (ontem?)
um emprego sem salário para dizer que fez sua parte,
e depois de um dia de trabalho estúpido,
deitar a cabeça cansada um pouco menos culpada.
Para quê?

O mundo é muito maior do que uma fórmula gasta e requentada
na qual um sorriso desolado diz:  "foi o que deu pra fazer".
É necessário o sentimento do mundo 
para torná-lo parte de nossas veias, de nossos sonhos e pesadelos,
é necessário o ódio visceral para vomitá-lo sobre nossos inimigos,
Só se pode mudar a vida
fazendo das nossas bandeiras o estandarte do desejo.

Esse sonho gasto e sem paixão
que a eles centralizou feito bobos
em mais uma morna reunião.
Com os braços em riste, como os de um espantalho,
repetiu no microfone mais esta receita pronta.
Isso não é digno desse nome: sonho.

Os sonhos são aqueles construídos do desejo
no frigir dos dias, das dores, dos feitos.
Os sonhos são aqueles que vi na senhora que empurrava
o escudo do policial armado até os dentes.
No braço que lançou seu ódio encarnado em uma pedra
e nos olhos que ardiam enquanto se chutava as bombas.
Os sonhos estão nas vozes que gritam sem esmorecer,
que passam as noites acordadas na apreensão de não saber,
que não arregam diante do incerto,
que arriscam o pouco de hoje pelo talvez do amanhã.
E sabem que temos um mundo inteiro a ganhar.

Os desejos não estão só no calor das batalhas.
Eles estão na poesia, e por ela lutamos,
na sua rotina, entre o um e o outro,
ela se esconde, e é necessário espremê-la das pedras
só o desejo pode extraí-la dos esconderijos improváveis
e transformá-la no porquê de nossos dias.

Não há natureza, exceto o desejo.
Ele é teu pai, tua mãe, teu guia. 
Nas lutas, nos teus braços, o encontro.
Sempre, a me levar pela mão.
Veloz, vagaroso, confuso e lúcido.

quarta-feira, setembro 10, 2014

Desamparo

É verdade que às vezes a felicidade é mesquinha.
E isso é também porque esse mundo, o mais mesquinho que fizeram, ensina a felidade mesquinha, forçada, de sorriso amarelo, de egoísmo.

Quem não é feliz é um fracassado, um perdedor, o que não competiu, não pisou o suficiente nos outros e não venceu na vida. O que não é feliz não tem uma família como aquela, da margarina, não tem um bom carro e um bom emprego. Ele não vai ao Pão de Açúcar, que, como sabemos, é lugar de gente feliz. A felicidade é um produto que te vendem caro a cada esquina.

E num mundo assim, mesmo quem não é feliz desse jeito, tem pouco tempo para olhar para o lado. Tem pouco sentimento para ser empático. Tem pouca paciência e carinho para as lágrimas dos outros.

A verdade é que gente que não sofreu sabe entender muito pouco sobre o sofrimento. Ele é um mistério indecifrável, porque não pode ser traduzido plenamente em palavras. As palavras explicam, mas não fazem sentir algo que nunca passou pela sua vida. É como tentar explicar uma cor a um cego de nascença.

Volta e meia bato a cabeça nessa questão. As pessoas mais lindas e sensíveis que conheci, que sabiam verdadeiramente ouvir o outro, eram as que sofreram, e muito. Outras pessoas que conheci, mesmo lutando pelo melhor do mundo, tratam o sofrimento alheio como uma dor de cabeça ou uma farpa no dedão. Não o fazem por mal.

A felicidade é burra, com frequência.

É preciso coragem para encarar as dores de frente. Cada vez mais, em um mundo que quer nos vender o alívio instântaneo para tudo. Tome isso e passou. As dores nos fazem como somos. Há uma frase de Tolstói que dizia: "Todas as famílias felizes se parecem. As infelizes o são cada uma a sua maneira.". Essa frase é de Anna Karenina, um dos livros mais belos sobre uma mulher que sofre fundamentalmente porque vive em um mundo nojento, patriarcal, horrível.

Mas saber as causas sociais de nossos sofrimentos não os aliviam, sequer os explicam de fato. Por isso, são mais belas as pessoas que sabem sofrer. Seu entendimento da dor está além de esquemas sociológicos abstratos. Não se trata aqui de nenhuma exaltação do sofrer, como faziam os românticos do "mal do século". Nada disso. Luto por um mundo onde todos possam ser felizes ao máximo. Mas sofrer e escavar nosso sofrimento, procurar em suas raízes o que há de mais íntimo nele. Ouvir, entender, ser capaz de abraçar o sofrimento de outro. Isso nos torna mais humanos.

Saber que não é com soluções mágicas que resolveremos os problemas nossos nem de ninguém. Que às vezes é necessário apenas sentar e chorar, junto ou sozinho. Que às vezes, e não são poucas, as dores serão imensas demais para nossas pequenas mãos. Que essas dores e tristezas podem vir, arrebatadoras, e levar de nós as pessoas mais queridas e que mais amamos. Elas se vão, para sempre. E nós, ficamos aqui, com um pedaço imenso de dor que é nossa herança. Aprendemos. Essa dor nos faz o que somos. E, sim, ela nos faz mais humanos. E, mesmo que eu não possa aplacar sua dor, saiba que você pode chorar ao meu lado.

terça-feira, setembro 09, 2014

De pé





Na linha do piquete são os primeiros,
na madrugada fria enfrentaram cacetetes
levantaram suas bandeiras
e cantaram, com fúria, inalando o gás espesso
olhos vermelhos, ardendo, a lacrimejar.

Longas reuniões, jornais, livros,
a teoria, o estudo, a estratégia
que se tornam a carne viva da batalha
do áspero choque entre as classes
o embate parteiro do futuro.

Cansaço, dores, doenças.
Gastando o sossego do inimigo
desesperado, toma teu salário, 
toma tuas bandeiras, 
toma teu companheiro e mete entre as grades.
Em rios de tinta ele esbraveja
te difama, te ameaça, te acusa dos crimes que foi ele quem cometeu.

Em vão. Seus piquetes desfeitos logo se reerguem.
Dos trapos fez novas bandeiras,
e seus jornais continuam passando de mão em mão,
gritando contra as mentiras de ontem.

Dizem que sua luta é contra o povo.
Mas sua mão generosa estendida está visível,
lutando por tudo o que eles negaram ao povo.

Ergueram contra sua luta paredes de leis,
a sapiência dos livros, a sagrada constituição,
mas sua luta é mais forte do que as leis,
e sua persistência muda as cláusulas pétreas.

Não arrega. 
O desespero e o suor transparecem nas janelas das torres,
a um passo firme de distância está a vitória.
Os ferimentos, por certo, existirão.
São duros, profundos. 
O inimigo lacerou tua carne.

Não importa, porque o mais valioso ele não pôde levar.
O seu tesouro é a história que fica, as marcas,
a certeza de que, enfim, pode se levantar,
e ao estender as mãos encontrará seus pares,
ombro a ombro, prontos a se erguer,
a perder de vista, a romper fronteiras.

Ali ao lado, os inimigos também tremem.
Tomam-lhe as fábricas, tomam-lhe as noites, tomam-lhe os lucros.
Nossos irmãos estão feridos, como nós.
Mas lutam. Tal qual os guerreiros negros que nos ensinaram,
junto com a história de nossa classe,
que a história não é dos que arregam.
Mas dos que sabem que todo futuro só é impossível
enquanto acreditarmos que ele seja.

Não esquece de sonhar.

A vida não é só dos que virão

Perco o passo
     Perco o prumo
          Perco o tino
              Perco o barco
                   Perco a hora

Só não perco da minha vista
essa vista que me perde
devaneio
nos teus sonhos
viram meus
nos meus sonhos

Adivinho sua vida
nas linhas que leio
sonho, sonho uma pessoa que não existe
- porque não existe outra forma de sonhar -
e me apaixono por esse sonhar,

você sonha em versos
nos seus versos me carrego
para aprender, como uma criança na vida
a sonhar também.

Não que tenha esquecido
mas meus sonhos se tornaram ásperos
os duros sonhos de quem enfrenta um mundo cão
os sonhos de quem luta por um mundo que não vai viver
e endurece. Endurece mas perde a ternura.

E não se deve perder a ternura, jamais.

Você é dura, e sonha.
E com vc eu aprendo,
devaneio.
Me leve, por favor,
que seja em um sonho, só um,
mas seu.

Não se preocupe.
Não quero aprisionar, não quero possuir, não quero domar nem dominar.
Não quero me completar, não quero uma cara-metade.
Endurecendo perdi também algumas ilusões que enfiaram goela abaixo,
ilusões imbecis para ver a vida com os olhos de um consumidor.
Eu não quero mais sonhos enlatados.
Quero o imprevisto.
E o meu sonho maior é coletivo.

Só quero pegar na sua mão, uma tarde, enquanto sentamos na grama.
Quero ouvir sua história, e ver suas covinhas desenhadas no fim de uma piada boba.
Passar a mão no seu cabelo, um carinho, um toque,
sentir as bochechas rubras e quentes de vergonha,
gaguejar umas palavras sem jeito, e ir construindo aos poucos as frases,
como essas que escrevo, que tomei de volta.
As frases que dirão esse futuro.
Quero encaixar algumas peças nesse quebra-cabeça que abri
e que me fascinou.

Quero apenas sentir que a vida não é só dos que virão.
Que hoje, também, podemos viver e sonhar.
E que podemos aprender isso a cada dia.

e tudo isso é solto, possuir é coisa de quem tem medo.
o exercício da coragem, da vida, do amor e da liberdade, mais do que nunca, é necessário.

domingo, setembro 07, 2014

indizível

Escrever os segredos
                   contá-los,
                aos poucos,
   sussurros no teclado.

sonhos que se escondem
nas covinhas de um sorriso
nas palavras que se engasgam
                      que tropeçam
                    que se roçam
                  nas reticências
               nos silêncios
            olhares de canto  
querendo dizer o indizível

Paciência
para retomar as palavras que um dia perdi
para sentí-las aos poucos
acariciando o incerto

seu sabor é novo
é perto
toco, com as pontas de suas letras
                         o que não digo
                 o que escapa
       o que me prende
e me liberta.

quinta-feira, setembro 04, 2014

A morte de mais um joão-ninguém



Ontem a greve da USP completou cem dias. Cem dias de uma luta heroica, contra a polícia, o governo e a mídia. Uma luta que começa motivada por um arrocho salarial, ou seja, um ataque às condições de trabalho na universidade, mas que em seu decorrer transcendeu em muito essa luta, mostrando que o arrocho salarial era apenas a ponta do iceberg. O ataque à universidade, por mais que ela seja hoje uma ilha de elitismo, é um ataque à população de conjunto, pois essas "reformas" irão elitizá-la cada vez mais e tirar o que ela ainda tem de público, como o atendimento no Hospital Universitário, que a reitoria pretende desvincular da universidade para, logo, passar às mãos de alguma empresa privada disfarçada de OS (organização social).

Para continuar a luta, os trabalhadores da USP e das estaduais paulistas fizeram um enorme ato, que foi até a porta da reunião de negociação com o Cruesp (Conselho dos Reitores das Universidades Estaduais Paulistas) cantar a plenos pulmões aquilo que se tornou o lema dessa greve, tomado dos garis do Rio: Não tem arrego!

Mas esse texto não é sobre nada disso. É sobre algo que acontecia paralelamente, enquanto essa luta ocorre. É sobre um cadáver encontrado ao lado do bloco F do Crusp, virando logo uma "fofoca do dia" na universidade. Ou, mais precisamente, sobre a pessoa que se tornou, naquela madrugada fria, um cadáver que ficou ali estendido, por horas, tomando chuva, até que fosse encontrado.

A pessoa por trás desse corpo era João. Eu nunca conversei com ele, mas sempre o via por aí. As últimas vezes que em que o encontrei foi no acampamento que os trabalhadores da USP ergueram diante da imponente reitoria da universidade, como um marco de sua luta. João aparecia lá. A história dele eu não sabia. Como todo mundo que anda pela USP sabe, ali é um lugar em que circula uma grande quantidade de "loucos": Gautiê, Piauí, João...

Eles são gente que não tem lugar nessa sociedade. Não vendem seu trabalho, não geram mais-valia e, portanto, nessa sociedade não têm valor algum. São jogados à rua, jogados à sua própria sorte. São olhados de canto, com medo, pelas "pessoas de bem". Ficam na USP porque sabem que ali é, de certa forma, um lugar um pouco menos hostil, que ali existem muitos trabalhadores e estudantes que repudiam a presença da polícia, que para eles sempre representa um perigo. Que ali, muitas vezes encontrarão alguém disposto a conversar, a ceder uma bebiba, uma ponta de um baseado, alguma coisa que os lembre que eles também são gente, como os outros.

Essas pessoas não nasceram na condição de párias sociais. É esse mundo, de um jeito ou de outro, que os joga, pelas piores formas possíveis, nessa situação. Nossa sociedade fecha os olhos para isso, finge que não é com ela. É o "liberalismo aplicado à vida": cada um cuida do seu, e foda-se os problemas do vizinho. João é mais um destes, que não nasceu como um sujeito maltrapilho que andava pela USP. Eu não sei quase nada da sua vida. Mas sei que ele foi um professor da rede pública de ensino do estado de São Paulo, e que, como muitos outros, foi perseguido por lutar em defesa da educação pública. Na histórica greve de 2000, o governo de Mario Covas do PSDB, muitíssimo bem auxiliado pela burocracia sindical do PT que dirige o sindicato dos professores, conseguiu consolidar a correlação de forças que até hoje persiste nessa categoria: o governo os massacra, impõe novos ataques a cada dia, precariza impiedosamente todas as suas condições de trabalho.

Nenhuma categoria de trabalhadores é derrotada sem resistência. E os professores, hoje uma categoria que é marcada por muitas derrotas, resistiram bravamente. Essa resistência foi feita, como hoje a luta da USP, contra a polícia, o governo, a mídia. E tinham ainda um outro obstáculo, que era seu próprio sindicato. Os protagonistas dessa luta foram milhares de homens e mulheres que estavam - ao contrário dos diretores do sindicato - sofrendo a cada dia nas salas de aula a precarização de seu trabalho. Entre eles estava João. Para que o governo vencesse, ele precisou derrotar essas pessoas. E na greve de 2000 vieram muitas demissões. Caçaram a aposentadoria de Tonhão, um lutador que conheci também nas greves da USP, nas quais participa levando seu apoio. Exoneraram João.

O que aconteceu com João depois disso? Eu não sei. Não era seu amigo, nunca conversei com ele. Mas sei do que esse mundo é capaz para derrotar um peão que ousa levantar a cabeça para enfrentar seus patrões. E, o que quer que tenha passado pela vida de João depois de sua demissão por lutar, foi o que o levou a virar um peregrino da USP, andando maltrapilho por aí. Das pessoas que conversavam com ele, ouvi muitas coisas: que ele tinha momentos de lucidez, em que contava as histórias de sua luta, e outros de embriaguez - é muito provável que tenha se tornado alcóolatra. Sobre esses outros momentos, há histórias nada bonitas de João: que assediava as meninas, que ameaçava.

Dou crédito a essas histórias porque as ouvi de muitas pessoas, inclusive pessoas em que confio. Mas não atribuo apenas a essas histórias o "mérito" por ter ouvido comentários como esse sobre a morte de João: "Sinceramente? Ainda bem que morreu. Foi tarde. Só metia medo nas pessoas. Não sei como permitiam uma pessoa dessas ficar solta pela USP e colocar medo nas estudantes."

Os comentários como esse devem ser feitos às dezenas nas conversas da USP. Quando não são públicas, como no caso acima, devem ser ainda piores. Não defendo em nenhuma instância a atitude de João de assediar as meninas, independente da forma como o fizesse. É uma dessas monstruosidades que ocorrem mil vezes por segundo em nosso mundo, um testemunho inequívoco da podridão de nossa sociedade. Isso, no entanto, está muito longe de ser tudo o que João era ou fez. A mesma sociedade que o ensinou a assediar as mulheres foi a que lhe tomou seu trabalho, seu sustento, lhe impôs uma vida de andarilho e alcoolatra. Sobre isso, essas vozes "revoltadas" calam. A mesma sociedade que ensinou João a assediar as mulheres é a que ensina cada estudante endinheirado da USP a fazer a mesma coisa; mas eles não são barbudos maltrapilhos que não tomam banho: são garotos perfumandos, com roupas caras, malhados da academia, que o fazem em festas open bar promovidas pelas suas atléticas, onde eles se embebedam sem o olhar condenador de sua sociedade, e onde podem tratar as mulheres como objetos sexuais sob a conivência de todos, inclusive de grande parte dos que se revoltavam com a forma como João assustava as estudantes.

Quando João deu o melhor de si para o mundo, que foi colocar em jogo o seu ganha-pão para defender uma escola digna para os filhos dos trabalhadores, ele foi punido com todo o "rigor da lei". Quando ele passou a ser um "vagabundo" andando pela USP, nenhuma instituição dessa sociedade se preocupou com isso. Quando ele morreu, largado, possivelmente de frio, no mesmo lugar em que estuda a elite desse país, que vai ali se formar para garantir a continuidade desse mundo tal como ele é, e de tudo o que fizeram com João durante sua vida, nesse momento muita gente lembra que João existiu. Não do que ele fez para transformar esse mundo; lembram-se da sua aparência assustadora. Comemoram sua morte. E, amanhã, já terão esquecido dele para sempre, embriangando-se com as possibilidades que a vida lhes oferece. As possibilidades que foram arrancadas brutalmente de João e de tantos bilhões de outros todos os dias.

Por todos esses, seguimos lutando. Para que ninguém mais morra, após ser derrotado em uma luta pelo mundo, largado no relento, tratado como alguém que não merece o melhor que a humanidade é capaz de criar. A greve da USP e tantas outras lutas que travamos, sem desistir, é por isso. E, se amanhã, algum lutador entre nós tiver o mesmo destino que João, que continuemos lutando, incansavelmente, para que isso nunca mais aconteça, e que às mortes de todos esses seja feita justiça.

terça-feira, setembro 02, 2014

Um canto na batalha

Essas linhas, foi você quem me deu,
e brotaram na noite mais improvável
bem no meio da batalha.

E na batalha, exaustos, continuamos.
Ela não tem tempo de parar para ouvir um lamento,
porque é o canto de todos, em uma voz.
Porque luta por um mundo.

Lutamos, sem saber se venceremos.

Mas hoje, por essa noite, eu sei que vencemos.
Eu, com meu canto, que pode ser feio,
mas que é um presente que você me deu, que é meu,
no meio da batalha.
Um canto de uma voz rouca, tímida, assustada.
Mas que ousa existir.

E não é assim que se fez também essa batalha?
Tantas vozes, que se julgavam mudas,
tomaram coragem, corpo, cresceram e gritaram.
Elas se impõem, destemidas.
O futuro é, finalmente, desconhecido novamente.
Não é mais uma interminável sucessão de ontens.

O resultado, por fim, já veio.
Era mentira o que eu disse:
foi essa batalha que soltou todas as vozes,
que fez dos escravos, sujeitos.
Ela tem lugar, em seu corpo, para todos os desafios.

A batalha libertou cada voz para poder gritar seu canto,
de luta ou de lamento.
E em meio a eles, encontrei nessa noite,
esse canto que você me deu.

De quem já não quer voltar atrás,
e nunca seguirá pelo caminho do meio.
Estendo-lhe a mão.

As vozes gritaram, rasgaram a rotina, os tímpanos dos que nos ensurdeceram por tanto tempo.
As nossas vozes.