quinta-feira, dezembro 15, 2011

Faísca num barril de pólvora: o dia 27 de outubro

Depois de quase dois meses de imersão completa no ativismo da luta dos estudantes da USP, estou com um pouquinho mais de tempo, agora que as tarefas estão um pouco menos urgentes. Resolvi, portanto, tentar fazer aqui neste blog um breve resumo de pontos centrais da luta, recapitular algumas coisas que ocorreram desde o início da nossa mobilização. E começando, evidentemente, pelo estopim que desatou tudo isso: o dia 27 de outubro.

Era uma tarde bastante rotineira, se é que pode-se chamar este momento histórico de rotineiro em qualquer âmbito. Eu estava saindo de uma reunião do grupo de estudos e indo para outra, de discussão de chapa para o DCE da USP...

A política das correntes frente às eleições estudantis no momento pré-mobilização

Acho que vale à pena retomar um pouco como estava a política de formação de chapas, pois isto demonstra bem a visão estratégica de como atuam as correntes que existem no movimento estudantil da USP. Nós, da Juventude às Ruas e LER-QI, havíamos soltado já um chamado para discutir uma necessária unidade da esquerda frente aos novos ataques da reitoria. Como pontos programáticos essenciais, colocávamos o balanço do que havia sido, até então, a principal mobilização na USP: a greve das trabalhadoras terceirizadas da União no primeiro semestre , em que todas as correntes políticas cumpriram um papel completamente aquém do necessário, quando não abertamente ignoraram a mobilização fundamental destas trabalhadoras, que expôs o que há de mais podre na universidade. Colocávamos também a necessidade da unificação com base nos principais ataques da reitoria e do governo, como o PROADE, que visa institucionalizar o assédio moral e a demissão em massa de trabalhadores da USP para aumentar a terceirização; também a luta contra a perseguição política aos trabalhadores e estudantes, às dezenas de processos administrativos e inquéritos policiais. Enfim, fazíamos um chamado à unificação da esquerda com base em um programa de combate à reitoria e ao governo nos pontos principais.

Outro chamado de unidade, com conteúdo bastante distinto, estava sendo feito pelo Movimento Negação da Negação: ausente durante todo o ano, e completamente inexistente durante a greve da União. O chamado deles consistia em conformar uma unidade contra "a direita", que em sua caracterização tinha como ponto de articulação não a reitoria e o governo, mas a direita estudantil hoje reunida na chapa "Reação", e com único ponto programático de "Fora PM", o que, para nós, é completamente insuficiente para fortalecer uma ala combativa contra o projeto da reitoria. Ora, de que vale uma chapa que se coloca contra a polícia e não diz a serviço de que ela está aqui? Que não discute a estrutura de poder e a elitização da universidade? Que não está preocupada em aprofundar a aliança estratégica de trabalhadores e estudantes.

Para além disso, havia acordos eleitorais tão espúrios como o PSTU se aliando à corrente mais à direita do PSOL, o MES, que passou dois anos dirigindo gestões que fizeram de tudo para enfraquecer a democracia de base dos estudantes, não chamando assembleias mesmo diante da ameaça de expulsão de 24 estudantes, emplacando resoluções no X Congresso que fortalecem o CCA (Conselho de Centros Acadêmicos que reúne as direções das entidades sem nenhuma discussão na base dos cursos, atuando como um verdadeiro parlamento estudantil) em detrimento das assembleias, não colocando sequer a palavra "Rodas" no manual do calouro deste ano. Como contraposição, as demais correntes do reformismo fizeram outro acordo espúrio entre APS (corrente abertamente reformista e parlamentar do PSOL), Consulta Popular, ex-militantes do PCB e CSOL.

Ou seja, as correntes do movimento estudantil, mesmo diante do grande avanço repressivo de Rodas, da assinatura do convênio com a PM, do aumento da implementação de medidas de privatização e elitização da universidade, combinadas com o aumento do elitismo e a maior precarização do ensino, continuavam vendo as eleições como um momento de disputa por aparatos completamente por fora das reais necessidades do movimento.

Mas, ainda que estas correntes insistissem em fechas seus olhos para a situação explosiva que se desenhava na universidade, com a PM fazendo revistas em CAs, blitzes todos os dias, enquadros em professores e prisões de estudantes, a realidade não é regida pela política mesquinha desta esquerda adaptada...

A merda bate no ventilador: a prisão dos estudantes na FFLCH

Nada mais natural do que a explosão desta situação insustentável se dar no principal centro da resistência estudantil na USP: a FFLCH. Já havia, sim, ocorrido uma prisão na POLI, um enquadro na ECA, entre outras medidas da PM. Contudo, foi ali na FFLCH que dezenas de estudantes anti-PM presenciaram a prisão de três estudantes por porte de maconha. Em pouco tempo haviam centenas de estudantes ali. Os policiais pediram reforço e logo havia uma dezena de viaturas. O circo estava armado. E eu, indo para uma reunião sobre chapa de DCE, vi o que estava acontecendo e me juntei às centenas que gritavam contra a polícia. Cercamos os polícias, que haviam tomado o documento dos estudantes e queriam levá-los para a delegacia. Logo, estavam ali também diretores do Sintusp, como meu camarada Pablito e o Aníbal, e professores da FFLCH, bem como a diretora Sandra Nitrini.

Naquele impasse que se criou, logo se desenharam duas posições: Sandra Nitrini, os professores e os diretores do DCE passaram a conversar com os estudantes defendendo a seguinte posição: eles deveriam ir para a delegacia e assinar o termo circunstanciado por porte de drogas, em seguida teriam seus documentos devolvidos. Não aconteceria nada demais, era o que diziam. De outro lado estava o Sintusp, nós da LER-QI e centenas de outros estudantes indignados, que defendíamos que a polícia tinha que devolver os documentos imediatamente e ir embora, que os estudantes não deveriam ir para lugar algum. Diante do impasse e da confusão que estava ali, propusemos inclusive que se fizesse uma assembleia no vão da história para que discutíssemos com calma e democraticamente, e depois os estudantes tomassem sua decisão livremente, a qual seria respeitada por todos.

A gestão do DCE toma seu lado: cordão de isolamento para que os estudantes conversem "livremente" com a diretora

O DCE e Sandra Nitrini tinham outra visão sobre qual seria a melhor maneira dos estudantes decidirem "livremente", e foi a que prevaleceu: eles foram levados para dentro do prédio da Ciências Sociais, onde entraram em uma sala em que ficaram sozinhos com a diretora e outros professores, que tentavam convencê-los a decidir "livremente" que o melhor a fazer era ir para a delegacia. Nós, estudantes contra a polícia, também queríamos dizer a eles nossa opinião: de que não deveriam ir e que não estavam sozinhos, que iríamos ficar ao lado deles e respaldar sua atitude de não ir à delegacia. Contudo, não pudemos conversar com eles porque a gestão do DCE e seus aliados tomaram a seguinte decisão "democrática": fizeram um cordão de isolamento na porta da sala. Sim, isso mesmo, como se fossem capangas da diretoria, eles cerraram fileiras e piquetaram a sala, organizaram um piquete para defender a conversa da diretora com os estudantes com um ímpeto que nunca tiveram para organizar piquetes ao lado dos trabalhadores em suas diversas greves ou ao lado das terceirizadas neste ano. Chegaram mesmo a agredir diversos estudantes, como uma camarada minha que teve os pontos de uma cirurgia recém-feita abertos por uma cotovelada de um diretor do CEUPES.

A polícia tenta entrar no prédio e os estudantes a enxotam.

Neste momento os policiais tentam entrar no prédio para garantir o bom andamento das conversas entre diretoria e estudantes presos. Talvez não soubessem que a gestão do DCE (MES e CSOL compunham o cordão) já estava cumprindo este papel de modo eficiente. Nos 3 vídeos abaixo é possível ver o momento em que os estudantes expulsam a PM de dentro do prédio aos gritos de "FORA!".







Neste terceiro vídeo também podemos ver o desespero da professora Marlene, da história, tentando defender os pobres policiais dos terríveis estudantes. Vale dizer que quando ocupamos a reitoria encontramos um e-mail bizarro desta professora, em que atacava duramente os estudantes e justificava a ação da PM dizendo que havia traficantes entre os estudantes, além de dizer que a PM não usou de violência para nos reprimir. Contém ainda uma pérola que sintetiza seu pensamento nojento, quando diz que eles apenas usou "aquelas bombinhas que fazem barulho para assustar gente ignorante". Será que ela já tomou um estilhaço das tais bombinhas barulhentas?

A gestão do DCE faz um cordão para levar os estudantes...para a polícia!!!

Enquanto isso, ali na salinha onde os estudantes eram coagidos pela diretoria com a conivência do DCE, as coisas pareciam difíceis...quase uma hora e nada. Tentaram pedir um reforço de alguém que parecesse menos tendencioso do que uma comitiva de burocratas universitários: chamaram a companheira Mafê, processada pela ocupação de 2007 da reitoria. O tiro saiu pela culatra: ela disse que em sua opinião os estudantes não deveriam assinar nada. Esta atitude de coragem não saiu barato para Mafê: a diretora Sandra Nitrini, alguns dias depois, tentou por meio de seu puxa-saco Clóvis adulterar o resultado da prova de ingresso no mestrado da Mafê para que ela fosse "expurgada" da USP. Contudo, mesmo com a postura da Mafê não adiantou: os estudantes, após mais de uma hora de "debate democrático" com a diretora, decidiram ir para a delegacia. Neste momento, quando eles saíram da sala, a gestão do DCE fez um cordão humano para, como eles disseram posteriormente, "respeitar a decisão dos estudantes" de ir pra delegacia.

Os estudantes cercam a polícia

Ok, eles foram pro carro pra ir pra delegacia, mas quem disse que deixaríamos a polícia ir embora com eles? Veja um vídeo que mostra quando cercamos os carros da polícia para impedir que ela saísse.



A polícia parte pra cima

Foram alguns minutos de tensão em frente aos soldados e o delegado que também estava ali. Os companheiros do PCO haviam estacionado um carro de som logo ali ao lado, e os policiais passaram a tentar força-los a fechar o porta-malas e desligar o som, e acabaram por quebrar o carro deles e danificar o aparelho de som. No vídeo abaixo é possível ver o momento, ainda que de forma um pouco confusa, quem que os policiais partem para cima de nós.



Vejam uma das primeiras matérias que saiu na Globo sobre o conflito, que sintetiza bem a posição de toda a mídia burguesa:



Além de sua posição reacionária de defesa da ideologia de que a polícia serve para defender as pessoas e que os estudantes-maconheiros começaram a atacar a pobre polícia, é interessante como a globo fala de 3 policiais supostamente feridos enquanto tentávamos nos defender desesperadamente com pedras e paus, mas não fala do companheiro que ficou com a cabeça rachada e sangrando fartamente. Infelizmente, só consegui registrar dois ferimentos, pouco expressivos diante das agressões que sofremos. O primeiro é o que eu mesmo sofri no braço:



O segundo é o de uma estudante de pedagogia, que também passou muito mal porque ficou nervosa e teve uma crise de pânico:



Além disso tiveram inúmeros outros casos de violência. Um camarada meu que tem asma quase sufocou com as bombas de gás lacrimogêneo.

A assembleia decide responder à violência policial ocupando a diretoria da FFLCH

Depois que nos reagrupamos no saguão da história éramos cerca de 450 estudantes. E o DCE, que não havia chamado nenhuma assembleia no ano, subitamente se viu forçado a referendar uma assembleia espontânea. E, mesmo com o bloco PSTU+PSOL que defendeu contra a ocupação da diretoria com seu falacioso argumento de que era necessário "ir aos cursos", colocando uma falsa oposição entre esta necessária atitude e uma resposta imediata e contundente, foi votada a ocupação da diretoria por apenas onze votos de vantagem.

terça-feira, outubro 18, 2011

Quarto encontro do grupo de estudos de cultura e marxismo


A Juventude às Ruas e estudantes independentes convidam todos ao quarto encontro do grupo de estudos, que está maior e melhor a casa sessão.
Desta vez vamos ler Trotsky, Breton e Gramsci. A bibliografia está no blog do grupo.

terça-feira, outubro 11, 2011

Terceiro encontro do grupo de estudos de cultura, literatura e marxismo


Vai firme o grupo de estudos na Letras, que já conta com estudantes de diversos cursos. Nesta semana teremos o terceiro encontro, a bibliografia está disponível no Blog do grupo

segunda-feira, outubro 10, 2011

Vídeo da Juventude às Ruas - Campinas - na luta dos trabalhadores terceirizados do bandejão

Vídeo muito bom que meus camaradas da Unicamp fizeram em apoio à luta dos terceirizados. O exemplo da União se espalha, contagia, contamina! Juventude em apoio à luta dos trabalhadores!!!

quinta-feira, setembro 22, 2011

1ª Sessão do Grupo de Estudos: Marxismo, cultura e literatura


FINALMENTE vai sair do papel um projeto político e, para mim, também um projeto pessoal acalentado há tanto tempo! O
grupo de estudos da Letras USP de Marxismo, Cultura e Literatura, impulsionado pela Juventude às Ruas e estudantes independentes.

O texto da primeira sessão, "O que é literatura?", do Terry Eagleton, está no link do blog logo ali acima. Divulguem!

quarta-feira, setembro 21, 2011

Todo apoio à luta dos trabalhadores terceirizados da BMK! Pagamento dos salários! Efetivação de todos!

Abaixo, matéria da rede bandeirantes sobre a ocupação da coordenadoria do campus butantã da USP pelos trabalhadores terceirizados da empresa BMK, que estão há mais de um mês com seus salários atrasados. No vídeo, Diana Assunção, diretora do Sintusp e dirigente da LER-QI, conta como foi agredida pela guarda ao se colocar em defesa dos trabalhadores e defende a incorporação de todos os terceirizados ao quadro de efetivos da USP.
Os militantes do Bloco Anel às Ruas e da LER-QI estivaram lá para prestar solidariedade ativa, junto a outros estudantes. Hoje, a solidariedade nos cursos está sendo organizada e a ocupação permanece até o pagamento dos salários!

terça-feira, setembro 20, 2011

Diário da Argentina: Compañero López, PRESENTE! Ahora, Y SIEMPRE! Punição a todos os responsáveis pela ditadura, na Argentina e no Brasil!



Venho novamente falar do caso de Júlio López, porque o considero um importante exemplo que trás reflexões fundamentais para a esquerda brasileira. Antes de prosseguir, acho que vale à pena deixar este vídeo aqui, que o PTS produziu aos quatro anos de desaparecimento de Jorge Julio Lopez:



Neste vídeo se mostra a condenação de Miguel Etchecolatz, ex-comissário de polícia e diretor de investigações em Buenos Aires, que foi um dos principais responsáveis por mortes, torturas e sequestros durante a ditadura argentina, que em seu total assassinou 30.000 trabalhadores, militantes de esquerda, opositores ao regime. Foi ele, por exemplo, o responsável direto pelo sequestro de estudantes na "Noche de los lápices" que mencionei no meu primeiro post daqui.

Este genocida havia sido julgado no fim da ditadura, em 1986, e condenado a 23 anos. Porém, logo em seguida foi inocentado de todos os seus crimes pela suprema corte argentina baseado na "Ley Obediencia Debida", estabelecida na Argentina em 1987, durante o governo de Raúl Alfonsín. Esta lei perdoava todos os crimes de militares com patentes abaixo da de coronel de seus crimes, baseando-se no fato de que estavam apenas "cumprindo ordens". Pouco antes desta lei, em 1986, foi promulgada a "Ley de Punto Final". Depois, no governo de Carlos Menem, que foi o governo liberal em toda a linha da Argentina com diversas privatizações, vieram os indultos.

Há algo de familiar para você nestas leis? O Brasil, hoje governado por uma ex-guerrilheira, permanece com sua Lei de Anistia, que deixa completamente impunes TODOS os torturadores, empresários que financiaram o golpe, lhe deram suporte político, financiaram a OBAN (Operação Bandeirantes), que deu origem ao DOI-CODI. Durante o governo Lula, se fez uma "firula" de que algo seria feito. O ministro Paulo Vanucchi, considerado ala esquerda do governo, defendia uma "comissão da verdade e da justiça". Em pouco tempo, esta se tornou já uma proposta de "comissão da verdade": pedir justiça era demais. Mas a verdade é que Dilma e Lula não podem bancar sequer isso: seus maiores aliados eram parte orgânica do regime militar. José Sarney, por exemplo, a quem Lula dedicou grandes esforços para salvar, tendo chegado a centralizar o líder da bancada do PT no senado, Aloízio Mercadante, quando Sarney esteve envolvido em escândalos (se não me engano foi este aqui, mas são tantos que fica difícil lembrar de todos os escândalos!). Enfim, o PT não irá levar à frente nenhuma revisão da Lei de Anistia ou de punição aos torturadores.

Na Argentina, em 2003 foram revogadas estas leis que davam perdão aos torturadores. Em 2006, Miguel Etchecolat foi ao banco dos réus, e Julio López foi uma testemunha chave. Assistam abaixo, vale muito à pena, seu testemunho:



Foi por isso, por temerem sua coragem de dizer o que havia sofrido e de enfrentar os militares, coragem que os reformistas de ontem e hoje aplicadores da política burguesa do PT nunca terão, que sequestraram López. No dia seguinte de seu desaparecimento condenaram o primeiro genocida na Argentina, Etchecolat, à prisão perpétua. Mas é ainda pouco, muito pouco. Os camaradas do PTS há muito tempo dizem, como neste debate cinco anos depois das revogações das leis, que isso não é suficiente.

Não foi de graça que se revogaram as leis que anistiam os torturadores na Argentina, nem será de graça que o farão aqui. Lá, ainda há muito a se fazer. O governo de Cristina, que hoje tem 50% de popularidade, se passa por defensor de direitos humanos. A esquerda tem papel ativo, não apenas o PTS. O caso de Julio López, graças à atuação da esquerda, torna-se um escândalo nacional. No dia seguinte ao ato, no táxi, indo ao congresso, havia no rádio uma entrevista sobre isso. Hoje, passando por uma banca, vi estampado em um jornal. A denúncia ao governo está em nossas palavras de ordem nos atos:

- Cristina, no me chamuches! Hay genocidas libres, ainda há la impunidad! Y López dondé está? Y López dondé está?

(Chamuche, me disse uma camarada, é tipo uma conversa mole, lero-lero)

E também:

- Que pasa? Que pasa? Que pasa con el K? Hay desaparecidos en el gobierno popular!
e sua variante:
- Que pasa? Que pasa? Que pasa con el K? Ya pasán cinco años, Julio López dondé está?
("K" é o Kirchnerismo)

Há outra que denuncia a repressão ao movimento operário:

- mira Cristina, que popular! És el gobierno com más presos por luchar!

Em um país com 50% de popularidade em um governo que se diz "popular", em que o governismo tem uma base militante, com pichações nas ruas, marchas e manifestações, nos damos a tarefa de denunciá-lo, de enfrentar sua popularidade. Colocamo-nos a tarefa de enfrentar os resquícios da ditadura.

No Brasil, a esquerda está muito atrás. Somos um grupo muito menor, mas também temos nos colocado na linha de frente desta tarefa. É isso que demonstramos no dia 1 de abril, quando fomos a única organização que realizou um ato contra o golpe militar. A fala de Brandão foi muito lúcida no sentido de relacionar o que temos hoje com a ditadura:



É uma tarefa imprescindível da esquerda lutar contra a ditadura! O sequestro de Julio López é uma mostra de que ainda hoje há a impunidade, ainda hoje os torturadores e articuladores da ditadura estão livres, estão fazendo negócios milionários, estão nos governos! As transições pactuadas mantém os trabalhadores esmagados pela polícia, pelo estado! Se na Argentina nossos companheiros ainda lutam pela punição de todos os genocidas, aqui no Brasil, em que estamos muito mais atrasados, temos que redobrar nossos esforços: Pelo fim da lei da anistia! Pela punição de todos os torturadores, financiadores, cúmplices do golpe! Só os trabalhadores podem dar uma resposta a isso!

Participamos do ato pela punição do coronel Ustra, torturador de Merlino e muitos outros:



Mas este julgamento sequer pode condená-lo pelo que realmente ele é: um genocida!
Como gritamos no ato dos 5 anos de desaparecimento de Julio López:

- A los milicos assassinos les salvaran sus amigos: la democrácia peronista y radicál. Pero te cuides milico genocida, de la justícia obrera y popular.

Aqui também, não deixemos o PT salvar os milicos! Justiça operária e popular para punir todos os genocidas da ditadura!

Terceirizados da manutenção externa da USP ocupam coordenadoria do campus!

URGENTE!

Os trabalhadores da empresa da empresa BMK, responsável pelos serviços de jardinagem e manutenção de áreas externas da USP, agora há pouco ocuparam a coordenadoria do campus Butantã exigindo o pagamento de seus salários atrasados em cerca de um mês.

Minha camarada Diana Assunção, diretora do Sintusp e dirigente da LER-QI, está lá dentro com eles. Não sairão enquanto não receberem o que a empresa lhes deve.

Está é uma demonstração contundente do enorme impacto da greve dxs trabalhadorxs da União no primeiro semestre. Os terceirizados viram que é possível lutar, e que estaremos ao lado deles até a vitória!

TODO APOIO À LUTA DOS TRABALHADORES DA BMK!

segunda-feira, setembro 19, 2011

Diário da Argentina: 15º Congresso Mundial de Psiquiatria: hace falta el marxismo!




Primeiro de tudo: de quem e para quem é o congresso?

O Congresso Mundial de Psiquiatria em Buenos Aires deve reunir mais de dez mil psiquiatras. Realiza-se no requintado centro de convenções do Hotel Sheraton, e sua inscrição custa nada menos que 150 dólares. As mesas, quase todas, exceto umas poucas em espanhol, realizam-se em inglês, sem tradução. Fica a pergunta para vocês: quem participa do congresso? Mais uma dica: entre os milhares de participantes, vi aqui e ali uns dez ou, sendo otimista, vinte negros. Quem tem acesso à psiquiatria?

Dentre as muitas e muitas mesas que havia, tentei pegar as que pareceriam mais críticas ao abominável cenário da medicina do capital. Já deixo aqui no começo um esboço de uma crítica a este modelo de medicina, escrita por meu camarada Gilson Dantas, que converge com o que penso. É claro, a crítica à medicina do capital é extensa, profunda, e vou esboçar aqui mais algumas coisinhas.

A normalidade e a psicopatologia: horizontes estreitos da fenomenologia

A primeira mesa que vi falava sobre aspectos, digamos, mais "teóricos", alcançando aquele ponto restrito em que alguns poucos psiquiatras se preocupam em teorizar. A maioria dos trabalhos acadêmicos não trás nada além de estatísticas e quantidades. Então, a princípio, foi uma boa surpresa que o primeiro palestrante não mostrasse nada disso. O nome da apresentação, em tradução livre, era "rumo a uma definição das desordens mentais: questões conceituais". Como pontos mais progressistas, havia o questionamento de que os psiquiatras não estão nem aí para as definições de doença mental (sim, pasmem: aqueles responsáveis por tratar as doenças mentais NÃO ESTÃO NEM AÍ PARA PENSAR O QUE SÃO AS DOENÇAS MENTAIS!!!)

Parênteses: como funciona a medicina psiquiatrica padrão

O artigo do Gilson acima citado fala bem sobre isso: de fato, quem dá a letra da maioria das decisões tomadas pelos médicos são os laboratórios. Há uma função essencial destas empresas cumprida pro profissionais chamados de "propagandistas". Estes são tipo os lobistas do corpo a corpo da multibilionária indústria farmacêutica. Sua função é peregrinar pelos consultórios particulares enchendo a cabeça dos médios de pesquisas patrocinadas pelos laboratórios para os quais trabalham que, de maneira muito "isenta e imparcial" (afinal, não é assim que nos dizem que a ciência procede?) "provam" que tal remédio no qual se investiu alguns milhões é a melhor cura para a doença X, e nada poderá ser melhor do que ele. Mas não se engane, os milhões investidos em pesquisas e desenvolvimento não são nada perto da verba destinada à "divulgação". Então, por via das dúvidas, caso estas maravilhosas pesquisas não os convençam, os propagandistas estão com ser arsenal mais poderoso: um grande estoque de presentes, bajulações e mimos baratos, caros e caríssimos para agradar seus clientes. Para que vocês não duvidem de quão longe vai isso, vou dar um singelo exemplo: viemos ao congresso eu, meu pai, meu irmão e sua namorada. Meu pai pagou minha passagem e minha inscrição no congresso e eu barganhei com o diabo para poder vir à Argentina conhecer de perto o PTS, prometendo comparecer mais ou menos ao congresso. Mas ele só pôde se dar ao luxo de pagar minha passagem e a nada amistosa inscrição, como forma de tentar me persuadir a voltar para o maravilhoso mundo da medicina, porque um propagandista simpático conseguiu que todas as outras passagens e inscrições fossem bancadas pelo laboratório para o qual trabalha! Entre outras coisas, já assisti uma palestra com ele sobre TDAH (Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade) no Hotel Mercure em São Paulo, com direito a um jantarzinho supimpa e um livrinho sobre esta doença. Tudo na conta do laboratório que produz a Ritalina, único remédio para este diagnóstico um tanto quanto suspeito, mas que é uma tremenda doença da moda. Quão isento é o diagnóstico do seu psiquiatra? Aquele mesmo que não se importa com definições de doença mental e recebe agrado de propagandistas que lhe trazem pesquisas patrocinadas por laboratórios? Pensa aí...

(Fecha parênteses, voltemos ao psiquiatra "filósofo" da conferência...)

Bom, entre os outros aspectos progressistas, ele disse o óbvio, mas que para nossos médicos que pensam com o cérebro dos propagandistas não é tão óbvio assim: o conceito de "doença mental" (em inglês ele usava o termo "mental disorder") é carregado de valores morais, culturais e sociais! Pra quem é marxista, chega a ser bizarro pensar que alguém precisa ir a um congresso ouvir isso! Mais uma obviedade progressista: as doenças não são nem apenas biologicamente determinadas, nem apenas socialmente construídas, mas são uma combinação destas coisas. Esta aí até dá polêmica com um monte de psiquiatra! Em seguida ele questionou os diagnósticos do famoso e aberrante "manual" de psiquiatria adotado universalmente, o DSM, que está em sua quarta edição e logo terá a quinta. Acreditem ou não, os psiquiatras, além do lixo entuchado pelos propagandistas, também utilizam isto, que funciona assim: você tem uma lista de sintomas para cada doença, e se o paciente atinge um certo número de sintomas da lista: BINGO! Ele tem a doença! Tipo um "Cheklist"!
Daí, depois de criticar a definição ridícula do grande manual sagrado da psiquiatria, ele deu sua definição pela positiva. Não era das piores. Incluía a "interferência em atingir objetivos pessoais" e "um comportamento ou crença não sancionado culturalmente". O mais progressista, a meu ver, foi admitir que é uma questão cultural, social e, portanto, (ainda que ele não tenha colocado neste termo) histórica. O outro ponto progressista foi quando ele discutiu a intensidade dos sintomas, o "cut point", o limite entre o "normal" e o patológico. Admitiu, coisa que poucos psiquiatras fazem, que no fim das contas é arbitrário, que não há como não ser.
O cara que veio em seguida mostrou a tosquice total do método científico da nossa medicina. É o que se chama de "evidence-based medicine", a medicina baseada em evidências. É a miséria da fenomenologia: os psiquiatras vêem o que está diante do nariz deles. E o cara falava sobre ansiedade, sobre transtornos e como diagnosticá-los. Inovando, mostrou um gráfico, em que muita ansiedade era patológico, e muito pouca era patológico, fazendo uma bela curvinha em seu powerpoint. Brilhante!

O ápice da miséria desta perspectiva imbecil, a fenomenologia, um tipo de empirismo mais "sofisticado", se demonstrou com toda a clareza na mesa seguinte que assisti, cujo nome era "Psiquiatria, religião e espiritualidade: aspectos clínicos". O cidadão que abriu fez uma fala de que a psiquiatria sempre estigmatizou a religião (verdade) e que era hora de mudar a relação que tinha com esta (verdade também). E daí foi de uma merda à outra, fazendo uma apologia da religião dizendo que tanto ela quanto a psiquiatria "querem o bem" e que era hora de "trabalharem juntas para o bem comum"!!! O que leva a tamanha barbaridade ser proferida por um "especialista" em uma mesa de congresso? Simples: o pragmatismo míope do seu método epistemológico e terapêutico. A apresentação a seguir, de um brasileiro, demonstrou exatamente o que leva a isto. Falava sobre religião e alcoolismo no Brasil, e demonstrava com seus diversos números, estatísticas e quantidades (lembrem-se do ditado imbecil: os números não mentem) que pessoas religiosas tem menos problemas de alcoolismo. ORA, QUEM DIRIA?!? O sensacional é que o estudo dele se detém exatamente aí, não vai um milímetro além. O que importa, pra esta abordagem tacanha, não é o que, como funciona, o que significa. O que importa é que funciona! Só faltou ele dizer que é bom prescrever religião pros pacientes!

E será que esta merda é o melhor que este congresso tem a oferecer? Ninguém tem uma visão um pouco menos imbecil?!? Milhares de psiquiatras e nada de bom a dizer? Calma! Há algo um pouco melhor, mas antes...

Intervalo 1: a burocracia sindical argentina tenta lavar sua cara




Eis que no fim da primeira mesa ouço um longínquo "Bum! BUM! BUM!" e me pergunto "Que pása?" Será que há uma apresentação de dança? E eis que à porta do Hotel vejo meia dúzia de gatos pingados da Associação dos Agentes de Propaganda Médica (Sim! Isso mesmo! O sindicato daqueles propagandistas que mencionei lá em cima!) fazendo isso aqui. Estão batendo uns bumbos descompassadamente e dando uns panfletos pra quem está por ali. Em seu uniforme do sindicato está ostensivamente colocado o símbolo da CTA, uma central sindical dominada pela burocracia peronista. Nesta matéria sobre sua manifestação no site, cinicamente dizem: "La medida de fuerza será llevada acabo con una marcha y escrache donde se no se descarta la interrupción de las propias actividades del Congreso de Psiquiatría auspiciado por la industria farmaceutica." HÁ! Até parece! Seria sensacional se levassem a sério suas próprias palavras, causando no meio de um congresso internacional! Seria facílimo fazer isto e o efeito seria estrondoso! Mas é óbvio, é pura demagogia.
A causa de seu ato é mais do que justa: demissões, práticas antissindicais, péssimas condições de trabalho. Mas se sua intenção não era fazer nada de efetivo, por que estavam lá panfletando? (diga-se de passagem, fui até eles, pedi seu panfleto, li e fiquei ali parado, com um crachá do congresso. Ninguém se deu ao trabalho de trocar uma palavra comigo sobre o que estavam fazendo. Só no bumbo descordenado). Estavam ali porque de uma forma ou de outra, o maravilhoso fenômeno do sindicalismo de base pressiona as burocracias a darem respostas às suas bases. Precisam fingir que organizam mobilizações e lutas, porque os trabalhadores vêem o que acontece na Kraft, no metrô, na Pepsico, em Zanon, na Disco e em tantos outros lugares. Pra saber mais sobre esta impressionante organização dos trabalhadores pela base, contra a patronal e as burocracias, recomendo ver o site do Nuestra Lucha, o jornal que o PTS impulsiona junto com os trabalhadores independentes do sindicalismo de base.
Dá o que pensar a burocracia sendo forçada a organizar este tipo de coisa, mesmo que seja um ato tão tosco que foi muito parecido com uma propaganda de um laboratório que teve na hora do almoço (com a diferença que na propaganda as pessoas sabiam tocar os instrumentos adequadamente). Quando há luta de classes, a potencialidade de uma política de exigência e denúncia a partir de uma localização estratégica no movimento operário é imensa...




Intervalo 2: passeando no maravilhoso shopping center da saúde mental

Como podemos ler na notícia do sindicato, o congresso é "auspiciado" pela indústria farmacêutica, como tudo o mais que os médicos fazem nesta vida (até as festas da medicina da USP, com chopp de graça, são patrocinadas pelos laboratórios). Isso quer dizer que os corredores do congresso são um grande mercadinho, tipo uma feira de rua mesmo, com cada barraquinha (estande) cheia de propagandistas vendendo seu peixe. Alguns pôsteres anunciam atividades no congresso que vão falar dos remédios. E, como não podia deixar de ser, tem os presentinhos. Depois do almoço hoje fui numa das salas onde ficam concentrados dezenas de standes (além dos que ficam em TODOS os corredores). Tomei um café por conta de um laboratório, ganhei uma destas garrafas de água (destas de atleta) de outro. Depois, usei a internet em um terceiro. Ainda ganhei de meu pai um caderno, uma caneta, um porta-lápis, um marcador de livro e uma caneta marca-texto. Amanhã, acho que vou levar uma sacola pra recolher tudo e depois quando voltar pra São Paulo abro uma barraca de camelô...

Perspectivas menos sombrias: psiquiatria transcultural (ainda hacé falta el marxismo!)

Mais pro fim do dia, pelo menos tive uma esperança de que nem tudo é horror. Fui numa mesa mais acalentadora com o título de "Efeitos duradouros do colonialismo na saúde mental de povos pós-coloniais". Muito interessante, depois vou explicar melhor pq estou já ficando com muito sono, mas o lance é pensar como os diferentes contextos culturais afetam a perspectiva psiquiátrica. Porque a perspectiva fenomenológica é tão cretina que sequer consegue pensar em algo tão elementar quanto isso! A tal psiquiatria transcultural tem florescido muito no Canada, um dos poucos redutos em que ainda sobra algo do estado de bem estar social e que há um influxo imenso de imigrantes e refugiados. Houve uma apresentação sobre a psiquiatria e os povos originários da Australia, uma sobre o conceito de paranóia cultural e o diagnóstico equivocado de esquizofrenia em pacientes negros nos EUA e uma sobre imigrantes negros no Canada. Muito interessante, mas vou desenvolver isto em outro post porque estou cansado (o facebook me distrai muito!). Este pedaço foi o filé do primeiro dia, e vai dar pano pra manga, mas quem sabe isso não incentiva as pessoas a voltarem para ver este blog com mais frequência (e seu autor a escrever com mais frequência!).

domingo, setembro 18, 2011

Diário da Argentina: 5 anos sem Julio López!



Consegui pegar o 150 na Avenida Santa Fé depois de rodar um pouco que nem tonto e perguntar para algumas pessoas. O guia de Buenos Aires que me foi dado pela camarada Patricia, trabalhadora da indústria alimentícia que conheci ontem na festa, me ajudou bastante. Não tenho nada a reclamar dos meus camaradas do PTS, que me receberam todos muito bem, mas sem dúvida noto uma diferença da proximidade que os brasileiros costumam ter. Sempre fiz pouco caso disso, como se fosse uma conversa pra boi dormir, um destes mitos nojentos que eu colocava no mesmo bojo de comentários reacionários sobre a sexualidade exacerbada das brasileiras e coisas afim, de estereótipos a serem rechaçados. Mas não se pode negar que há um traço cultural que nos influencia, ainda que eu, em geral, me considere um ponto fora da curva por minha timidez e antissociabilidade crônica. Daí que mesmo na festa tive longos momentos de isolamento e observação de canto.
No começo da festa o camarada Daniel Romero, o delegado demitido da Disco, foi muito legal me apresentando a todos; ele parecia ter bastante orgulho de apresentar um camarada da Fração Trotskista do Brasil - em especial aos companheiros independentes da nossa agrupação no comércio - e eu o entendo porque sinto o mesmo: acho incrível poder pensar na potencialidade de todos nós, em cada país que estamos, refletindo, atuando, conspirando contra o capital e golpeando a um só punho embasados em nossa estratégia e nosso programa que são fruto de milhares de cérebros e corpos dedicados ao mesmo propósito. Por mais que sejamos tão pequeninos perto da necessidade de nossa classe e da luta que enfrentamos, acho incrível esta potencialidade que existe, e sempre que penso nisto sinto minhas forças renovadas para continuar a lutar pela construção do partido mundial da revolução, ou seja, para que possamos voltar a ter a Quarta Internacional.
A companheira Sole, da agrupação "comercio despierta", também foi muito legal tentando me forçar a aprender a dançar, inclusive as músicas de meu próprio país que sempre desprezei. Infelizmente, creio que apenas a decepcionei em relação à sua capacidade de ensinar e também à tradição da "ginga" brasileira. Na verdade acho curioso como eu posso ser tão tosco para dançar, considerando que sempre gostei muito de tocar instrumentos musicais e acho que isso me dá um ritmo relativamente apurado. Acho que é mais um efeito colateral da timidez.
Mas, enfim, estou divagando. O ponto é que a camarada Patricia me ajudou e eu consegui pegar o ônibus 150 que parava em frente ao Congresso Nacional, de onde sairia o ato no dia em que se completam 5 anos de desaparecimento do companheiro Julio López. Este foi um companheiro que havia desaparecido durante a ditadura e reapareceu, era uma testemunha chave em processos contra torturadores e genocidas da ditadura militar, inclusive o chefe da polícia de Buenos Aires. Em 18 de setembro de 2006 foi sequestrado novamente, e até hoje não de sabe seu paradeiro. O governo dos Kirchner nunca se pronunciou a respeito, não faz nada para encontrá-lo e encobre muitos genocidas da ditadura. Há uma seção especial no site do PTS sobre os cinco anos de desaparecimento de Julio López.

Acordei tarde, saí correndo, achando que se chegasse às 16h (a concentração estava marcada para 15:30) estaria muito atrasado. E se eles saíssem?! Nunca mais conseguiria achar o ato!
O transporte público em Buenos Aires assustaria qualquer morador de São Paulo. É privado e subsidiado pelo governo, como em minha cidade natal. Mas para além disso, não tem paralelo. As tarifas de ônibus variam de acordo com o trajeto, chegando a um máximo de 1,25 pesos (cerca de 65 centavos de real); o metrô, com mais do que o dobro de nossas estações em uma cidade com muito menos gente, custa 1,10. Num domingo, esperei menos de dez minutos pelo ônibus.
Desci em frente ao congresso. Na praça, espalhavam-se rodeando-a as delegações de todas as organizações. As mais expressivas eram as do PTS, PO, IS, MAS e MST. Vi também a do recém-fundado PSTU argentino num canto. Fiquei decepcionado, na realidade, pelo reduzidíssimo número de pessoas, tanto em nosso bloco como em todo o ato. Logo fui conversar com Chipi, o Christian Castillo, nosso candidato a vice presidente pela Frente de Esquerda e dos trabalhadores (FIT). Ele, como sempre, foi muito simpático comigo.
- Ah, pardal! Viu o resultado das eleições? Ganhamos entre os estudantes.
Referia-se ao resultado das eleições para diretor de carreira, na qual estava concorrendo para a de sociologia na UBA, como disse no meu primeiro post. Eu havia visto no facebook, no qual a mafê havia me marcado em um post de Chipi referente aos resultados. Mas vi muito de relance, quando cheguei da festa antes de dormir. Pensando ingenuamente que acordaria antes do horário do ato, teria tempo para ver no dia seguinte. Respondi apenas:
- Não, não vi. como foi?
- tivemos 36,4%, os outros... (não me lembro bem o que disse, mas era coisa de 21% para um e não sei quanto para outro. Em segundo lugar ficaram os autonomistas e em terceiro os kirchneristas. Quem quiser ver alguns dos resultados, que no entanto não tem este especificamente, os companheiros do PO publicaram aqui no facebook)
De fato, ganhamos com folga entre os estudantes, o que mostra um ressurgimento da esquerda na sociais da UBA. A FIT tem dado um novo destaque a nossas ideias, e tem se mostrado uma tática completamente acertada, dando uma grande lição tanto aos ingênuos que pensam que os revolucionários não devem participar nas eleições como, principalmente em nosso caso brasileiro, ao miserável eleitoralismo de partidos como o PSOL e até dos companheiros do PSTU que rebaixam seu programa para "dialogar com as massas".
Enfim Chipi, obviamente, estava muito ocupado e não pode ficar muito tempo falando comigo, mas deixo-me dizendo:
- Não viemos com o partido todo, apenas uma delegação.
"Bom - pensei, tentando me consolar de ver apenas cerca de 50 camaradas por ali - os camaradas devem ter tido um bom motivo, talvez, para dar tão pouco peso a este ato." Mas a verdade é que não me convenci: fiquei com uma enorme pulga atrás da orelha pensando se não estávamos nos adaptando às lutas de calendário e ao rotineirismo da esquerda, tratando este ato dos cinco anos de desaparecimento de Julio López como mais um ato sem importância no qual devíamos aparecer para "cumprir uma obrigação". Além disso, parecia um velório. Camaradas parados, conversando entre si, sem canções, bandeiras enroladas e enfiadas no caminhão de som. Conversei um pouco com Patricia e com companheiros que vi na festa ontem, mas guardei minha inquietação para mim mesmo.

Algumas horas depois aprendi a mesma lição do dia anterior pela segunda vez: os argentinos tem um ritmo próprio. O bloco do PTS, como todo o resto do ato, cresceu assustadoramente. Avalio, de onde eu estava, que tínhamos lá umas quase 400 pessoas no nosso bloco. Camaradas meus da ler-qi já me contestaram mais de uma vez por minhas estimativas elevadas, então deixemos por 300. No ato inteiro eu diria que tinham umas 2000 pessoas. fiquei à frente, próximo a nossa bandeira de vanguarda, imensa, carregada com dificuldade por três pessoas fortes que seguravam imensos bambus e enfrentavam o forte vento de Buenos Aires. Todas as organizações grandes levam uma destas, na foto abaixo podemos ver as três da FIT enfileiradas lado a lado:



Carreguei uma bandeira do PTS/FIT de fazer inveja a nossa pequeninas bandeiras da LER-QI. Estive o tempo todo perto de um bloco de camaradas secundaristas e universitários que com certeza eram os mais animados do ato. Cantamos contra a ditadura argentina, seus resquícios e a cumplicidade do governo de Kirchner. Minha memória tosca tenta reproduzir algumas, sem dúvida as mais fáceis:

- A los milicos assassinos les salvaran sus amigos: la democrácia peronista y radical. Pero te cuides milico genocida de la justícia obrera y popular.

- Ahora, ahora, resulta indispensáble: aparición con vida e castigo a los culpables!

Tinha outras que lembro e esqueço a todo momento. Mas é incrível como aqui não se fazem apenas palavras de ordem, mas realmente marchas e músicas com cantos afinados e baterias apuradas, com letras com conteúdo político e programático de fazer inveja a panfletos toscos de grande parte da esquerda brasileira.



Enfim, já me alonguei muito e amanhã tenho que acordar cedo. Meu acordo com meus pais para vir para cá é que iria ao congresso mundial de psiquiatria, e agora vou ter que dividir meu tempo entre isso e as atividades políticas. Encerro deixando abaixo o manifesto lido na Praça de Maio no encerramento do ato, acordado entre mais de cem (!!!) organizações políticas, sindicais, estudantis, de direitos humanos, etc, etc.


Se cumplen hoy 5 años de la desaparición de nuestro compañero Julio López.

5 años de impunidad, 5 años de encubrimiento y silencio oficial.......

Una vez más, recordamos cómo, ante su ausencia y a pesar de la incredulidad, salimos a las calles a exigir su aparición.

La silueta de su rostro recorrió la argentina en multitudinarias marchas exigiendo su aparición con vida y el castigo a los responsables de su secuestro. Su imagen, testimoniando en el juicio del genocida Etchecolatz, se convirtió en el emblema de esta etapa de lucha contra la impunidad y por la aplicación de justicia a los genocidas.

A partir de ese momento y durante estos 5 años, la respuesta del gobierno nacional y provincial a nuestras demandas fue la descalificación y el silencio. Poblamos las calles con nuestro reclamo y recorrimos cuanto despacho oficial y judicial era posible.

Exigimos al gobierno una y otra vez, que impulsara la acción necesaria para dar con el paradero de Julio y con los culpables.

Sin embargo, el gobierno que se autoproclama defensor de los derechos humanos, no consideró de su incumbencia ocuparse del tema.

Por eso hoy, a 5 años , convocados por el Encuentro Memoria , Verdad y Justicia, .estamos una vez más en la Plaza, reafirmando que:

Acusamos al gobierno nacional y provincial de encubrir la desaparición, los responsabilizamos de usar el silencio para impulsar el olvido que sostiene la impunidad.

Los acusamos de haber renunciado a su responsabilidad de buscar y encontrar a nuestro compañero Julio, y a su obligación de detener , juzgar y condenar a los responsables..
Lo hacemos concientes de que esa política de impunidad es coherente con la política represiva que implementa hacia la protesta social.

La mano de obra genocida, así como sus discípulos presentes en las fuerzas de seguridad , están dispuestos y son utilizados para reprimir la protesta social.

El poder judicial demuestra palmariamente en este caso como es capaz de actuar cuando está al servicio de los sectores dominantes. La causa judicial de Julio es un ejemplo descarado de las maniobras de impunidad y encubrimiento de las que son responsables jueces y fiscales subordinados al poder político o a las fuerzas represivas.

Una vez más el discurso de derechos humanos del gobierno es un doble discurso. La realidad desmiente sus afirmaciones.

La anuencia oficial, del gobierno y de la justicia, con la desaparición de Julio y la impunidad que lo rodea , han sido la condición que facilitó el asesinato de Silvia Suppo, los secuestros de Pouthod y .. y las centenas de amenazas a testigos y querellantes en los juicios contra los genocidas.
Jamás se investigó a la Bonaerense, que en todos estos años, y en las más diversas situaciones , demuestra ser una verdadera organización mafiosa.

Hoy, a 5 años de la dolorosa desaparición de Julio, estamos firmes en la Plaza para ratificar la lucha popular contra la impunidad, para denunciar el encubrimiento, para poner voz al silencio de los de arriba, para reclamar justicia.

Y , junto a nuestros 30000, está Julio con nosotros, exigiendo cárcel común y efectiva a sus secuestradores, , a todos los represores y asesinos, a todos los genocidas.

Compañeros y compañeras: Levantamos aquí las banderas de la lucha por la memoria, por la verdad, por la justicia . Son las banderas de nuestra responsabilidad histórica con los compañeros detenidos desaparecidos y con Julio López.

Por ellos y por nosotros también levantamos las banderas del derecho inalienable y el compromiso a luchar por vivienda, trabajo y salario digno para todos, por educación y salud para nuestro pueblo, contra la entrega de nuestros recursos naturales, contra el pago de la ilegitima y usuraria deuda externa, contra la depredación ambiental de las empresas imperialistas. Por un país sin opresión, sin explotación. Un país justo por el que ellos dieron su vida.
Por eso reinvindicamos y nos sentimos partícipes de las puebladas, movilizaciones; cortes de ruta, huelgas, ocupaciones de fábricas, de tierras y de edificios públicos, escraches a genocidas, acampes, piquetes, que son la expresión más genuina de la disposición a la lucha y de la rebeldía popular .


Porque defendemos el derecho a luchar , estamos también aquí hoy denunciando al gobierno nacional y también a Macri y a los gobiernos provinciales, por la brutal criminalización de la protesta social y por la impunidad, de las que son responsable. Los denunciamos por el asesinato de luchadores populares.

Con dolor y con bronca tenemos que decir que en el último año fueron asesinados por las fuerzas represivas y por las patotas 14 de ellos, y que durante este gobierno , la respuesta a la ola de luchas populares que recorren el país ha estado marcada por represión y tortura. ; Que el gatillo fácil, instrumento de criminalización de la pobreza, sigue golpeando a nuestros jóvenes.

Denunciamos también que la impunidad de los responsables políticos y materiales de los asesinatos a nuestros hermanos se garantiza una y otra vez, mientras se persigue a los dirigentes obreros y populares a través de procesos judiciales, que se abren y reabren una y otra vez.

, Alzamos nuestra voz reclamando juicio y castigo por los chicos de Bariloche( nombres) , por Mariano Ferreira , por Roberto López........

Como el pueblo sí tiene memoria, estamos con Petete Almirón, Darío y Maxi, Cristian Ibáñez y Cuellar, Carlos Fuentealba, Lázaro Duarte.

Diário da Argentina: Na Disco-Jumbo há ditadura! Não à demissão de Daniel Romero!

Chego a um casarão velho, uma imensa árvore no jardim debruça-se em direção à calçada. O portão externo aberto me sinaliza que devo estar no lugar certo, apesar do imenso silêncio e nenhum movimento por ali. Entro e subo as escadas da frente. A plaquinha discreta na frente me confirma que cheguei: Instituto del pensiamiento socialista - Karl Marx. Logo ao lado um pequeno bilhete sobre a campainha diz: não está funcionando - bata na porta. Contudo, antes que eu o possa fazer, vejo que algumas pessoas surgem no corredor andando em minha direção. Espero que abram a porta e me perguntem o que quero.
- Sou do Brasil, da LER-QI, vim para a festa.
- Ah, da ler-qi! Chegou cedo, vai poder nos ajudar.
"temprano"? Penso que os argentinos têm realmente hábitos diferentes dos nossos. Andei a passos apressados quase vinte quarteirões desde o apartamento que meus pais alugaram, chegando mais de onze horas com medo de que poderia ser tarde demais. No Brasil as festas que fazemos na Casa Socialista raramente passam da meia-noite, tanto por conta das possíveis multas como por conta do horário de trabalho, reuniões e estudo da militância e demais convidados. Depois de me receber, um dos anfitriões do PTS me explica: sim, chegou cedo. A maioria das pessoas vai chegar por volta de umas duas da manhã. Ajudo alguns preparativos. Têm luzes, mesa de som. Fazem cartazes com os preços: Fernet com coca-cola, 25 pesos; cerveja (brahma, uma de nossas multinacionais que vai inundando o continente) 15 pesos.
Converso com um camarada mais receptivo e simpático que vem me perguntar quando cheguei e quando vou, essas coisas. Descubro que é Daniel Romero, e que a festa é por sua causa: é delegado de base dos trabalhadores do comércio, e foi despedido por perseguição política. Trabalha na Disco, um mercado que foi comprado pela Jumbo, uma empresa chilena que já vem perseguindo os trabalhadores e sua organização sindical há algum tempo. Depois, lendo o boletim, descubro que já deixaram os delegados sem salário, que proíbem os funcionários de ir ao banheiro e que não fornecem refeitórios a eles. A festa é para arrecadar fundos para a luta dos trabalhadores, impulsionada pela agrupação Comercio Despierta (PTS e independentes).
A festa começa tão vazia que penso que será um fracasso completo. Algumas horas depois descubro que meus camaradas estavam certos: as pessoas começam a chegar às duas. Antes disso, Sole, também trabalhadora da Disco, foi a pessoa que me tirou do isolamento completo: insistiu para que eu aprendesse a dançar com ela, entre músicas bregas argentinas e lixo exportado por nós: ouvi na festa até a boquinha da garrafa. A discotecagem desta parte da festa ficou por parte de Diego, outro delegado de nossa agrupação independente. Conversei com camaradas do PTS sobre estas músicas, em que coincidiram comigo que eram terríveis e machistas. Mais uma mostra, dentre tantas outras, que mesmo entre a vanguarda da classe trabalhadora, a discussão sobre ideologia, arte e cultura é premente.
Mais de cem pessoas compareceram, e conheci camaradas sensacionais de diversos lugares. De Santa Cruz, da indústria alimentícia. E preparo-me para amanhã ir ao ato pela reaparição de Júlio López. Deixo-os com alguns vídeos da luta dos companheiros do comércio contra a demissão de Daniel Romero.

No al despido de Daniel Romero

Daniel Romero, delegado despido de disco, contra el desafuero de Victor

sábado, setembro 17, 2011

Diário da Argentina: nas eleições da UBA (Universidad de Buenos Aires)

- Vou para a faculdade de ciências sociais da UBA. - digo ao motorista no meu espanhol tosco. Funciona no começo, ele nem percebe que sou "gringo".
- A que fica no bairro X?
Meu disfarce não resiste ao primeiro teste. Eu sei o nome da rua, e até como chega lá, mas não o bairro. Afirmo que é na Marcelo T. de Alvelar e revelo que "no soy de acá".
- Sim, sim, é logo ali. Política?
Surpreendo-me.
- Sim, como sabe?
- Estão acontecendo eleições em todas as faculdades. - mostra-me os prédios quando passamos. - aqui é a odontologia, ali o direito (ou era medicina?). A Sociais é a mais politizada.
Vendo no google, antes de sair, eu descobri que tive sorte. Tinha receio que fosse difícil encontrar os meus camaradas do PTS, nosso partido na Argentina, o maior de nossa organização internacional. Mas no e-mail que recebi dizia que havia eleições para os centros estudantis, e procurando no google descobri que estava há meia hora a pé da Sociais. Ia andando, mas além do cansaço da viagem, minha ansiedade por chegar logo me fez optar por pegar um táxi. Agora que estava conseguindo, apesar de meu portunhol e de minha escassa habilidade para conversar, falar com o motorista, não me arrependi. Ele me ensinou como voltava de ônibus, me deu o troco em moedas para pegá-lo, afirmou conhecer o PTS e me disse que naquele dia havia uma marcha pois completavam-se 35 anos da "noche de los lapices" artigo do PTS sobre os 35 anos da "Noche dos lapices" e artigo do PTS há 33 anos da "noche". Quando lhe contei que era da organização irmã do PTS no Brasil, disse-me que conhecia o PTS. Deixou-me à porta da faculdade dizendo:
- Buena sorte com tus compañeros! És preciso luchar!
Impressionante o que vi quando cheguei lá. À porta, dezenas de cartazes, faixas, militantes de todas as chapas. Entrei procurando algum camarada. A faculdade estava tomada pelas eleições, num clima de debate e politização que só havia visto antes nas eleições presidenciais de 89 no Brasil. Perguntei para um estudante que panfletava, que logo me levou aos camaradas do PTS, que imediatamente me receberam calorosamente quando disse que era militante da LER-QI.
Gastón, meu camarada que conheci por lá, foi quem mais me guiou pelo mundo desconhecido das eleições da sociais. Vi os corredores apinhados de gente por todos os cantos, todas (e quero dizer realmente TODAS) as paredes estavam preenchidas de cima a baixo pelos "afiches" das distintas "listas" (chapas) que concorriam. Não sei quantas haviam, mas Gastón me disse que as principais eram três: o kirchnerismo (governismo), o autonomismo estudantilista, que é uma espécie de esquerda reformista (o grupo que é seu principal expoente, "La Mella", surgiu anos atrás de um racha à direita de um dirigente estudantil de nosso partido); e, por fim, a nossa chapa, da esquerda revolucionária. Somente nossa chapa era composta por oito grupos diferentes: PTS, PO, IS, MAS (troskos), 29 de Mayo, PRISMA (maoístas envergonhados), FEL (anarquistas) e El Viejo Topo (estudantilistas). Sei lá quantos milhares de outros compunham cada chapa. Vi nos cartazes, eram muitos.
Contrariamente ao que parecia pelos corredores entulhados de gente, foi-me dito que era um dia vazio: quase todas aquelas pessoas eram das chapas. Mesmo dentro das salas de aula todas as paredes eram forradas de cartazes. Era o último dia de eleição, e estavam votando também os professores, pois as eleições eram unificadas com o conselho diretor de cada faculdade e com as direções de cada carreira (cada curso dentro das faculdades). Christian Castillo, "Chipi", nosso camarada que é professor de sociologia e é candidato a vice-presidente pela Frente de Esquerda e dos Trabalhadores (FIT) era também candidato a diretor da carreira de sociologia. Ganhou de longe entre estudantes, mas o voto destes vale muito pouco: algo como vinte, sendo o dos funcionários 70 e dos professores 100. Impressionante como a própria estrutura de poder da universidade é milhões de vezes mais democrática que aqui, disse aos meus camaradas.
- Sim, sabemos que é muito mais democrática que nos outros lugares, mas isso não nos impede de fazer um grande barulho para protestar.
E aqui no Brasil, o movimento estudantil adapta-se à miséria completa. Pedem no máximo diretas para reitor. Quando levantamos o programa de dissolução do Conselho Universitário e constituição de um governo tripartite com maioria estudantil, chamam-nos de loucos...
Meu espanhol porco me atrapalhou muito (entendia tudo quando falavam comigo, mas quase nada quando falavam entre si ou quando cantavam), mas tudo o que vi foi suficiente para me deixar assombrado. Óbvio que já sabia o quão diferente é a situação política daqui e do Brasil, onde vigora uma passividade acachapante. Mas ver de perto nunca é o mesmo.
O que mais me espantou, para além da quantidade e da qualidade dos militantes, da quantidade de propaganda política e de votantes, foi a moral que têm. E isto não apenas de meus camaradas, mas de todos, inclusive o governismo! Nas eleições da faculdade de sociais votam aproximadamente 8.000 estudantes (já é mais do que para o DCE da USP. Hoje li uma notícia sobre as eleições de ontem (com um caráter bem menos reacionário e superficial do que nas de qualquer jornal brasileiro) no jornal "La Nación", que afirmava que em todas as votações foram cerca de 300.000 estudantes!!!
Depois de terminada as votações, formavam-se blocos de dezenas de estudantes das distintas chapas e cantavam-se palavras de ordem de confronto. No auge do tensionamento estivemos próximos de um embate físico com os governistas (eram a chapa mais à direita nas eleições). Infelizmente meu espanhol limitou muito não apenas meu entendimento como minha participação, mas as poucas que entendi cantei a plenos pulmões com meus camaradas. Os governistas nos provocavam com canções despolitizadas que diziam que o PTS é "a fração da fração da fração". Respondíamos:
- Vai acabar, vai acabar! A burocracia sindical!
Lembrávamos a morte de Mariano Ferreyra, companheiro do Partido Obrero assassinado pela burocracia sindical kirchnerista durante a luta pela incorporação dos terceirizados nas ferrovias (o livro editado pela LER-QI sobre a greve das terceirizadas da USP em 2005 "A precarização tem rosto de mulher" foi dedicado a ele). Cantávamos:
- E Mariano Ferreyra nós vamos vingar, e Mariano Ferreyra nós vamos vingar, com piquete e a greve geral!
Denunciávamos o caráter antipopular e antioperário do governo de Cristina Kirchner cantando:
- Kirchnerista, que popular: é o governo com mais presos por lutar!
Há uma que gostei muito, da qual já havia ouvido uma variação cantada pelos trabalhadores da Brukman:
- Universidad a los trabajadores! Y a que no le gusta: se jode, se jode!
Havia uma infinidade de outras músicas, muito mais longas e complexas, que infelizmente não sei reproduzir (certamente é daí que herdamos noss hábito na LER-QI de fazer palavras de ordem muito mais complexas que a esquerda brasileira. Já cheguei a ouvir de uma amiga do PSTU que nossas palavras de ordem eram impossíveis de aprender rs).
A faculdade havia sido dividida em três blocos: na frente, na rua, ficaram os governistas; dentro, "nosotros, la izquierda"; no estacionamento estava "La Juntada", a esquerda autonomista. Esta situação durou por longas horas com os camaradas cantando incansavelmente contra os governistas. Depois, saímos ao estacionamento, onde, debaixo de uma fina chuva, os camaradas desenrolaram as bandeiras e passaram a se enfrentar com cantos com "La juntada". Eram incansáveis! Eu, exausto, acabei indo para casa, sabe-se lá até que horas ficaram.
Amanhã é dia de marchar contra a impunidade e o acobertamento do governo ao desaparecimento de Julio López, lutador que testemunhava contra os crimes da ditadura e está há cinco anos desaparecido Chamado do PTS ao ato amanhã

sexta-feira, setembro 09, 2011

LER-QI e Bloco Anel às Ruas no Colóquio Marx e Marxismos

Convido todos a participarem dos debates nas comunicações dos militantes da LER-QI no Colóquio Marx e Marxismos na C. Sociais da USP:

12/09:
14h: Fernando (eu): Literatura e Ideologia: a imposição de valores políticos a partir de valores estéticos

13/09:
11h: Daniel: Entre o gradualismo lulista e as contradições estruturais do país: que “projeto de país”?

14/09:
9h: Nat: Educação Chilena: impacto do neoliberalismo e resistência estudantil
16h: Edison: A dialética de meios e fins no marxismo: Lukács e Trotsky
Leandro: As crises capitalistas em Trotsky
Thyago: Surrealismo e trotskismo: o combate à cultura proletária

15/09:
9h: Thiago: Desafios do Marxismo: práxis e precarização
11h: Letícia: Revolução Burguesa e Colonialismos: uma visão marxista
16h: Bruno: A dinâmica de classes da “primavera |rabe” e o fim do neoliberalismo
André: O ataque reflexo da esquerda: o fascismo no século XX

16/09:
11h: DG: A Questão Negra em Florestan Fernandes
14h: ale: Contradições político-econômicas da crise
Iuri: A crise do fetichismo: crise econômica de 2008 e as respostas do marxismo

Também recomendo enfaticamente:

13/09, 11h: Tati: A reorganização sindical no governo Lula: um estudo sobre a Conlutas e a Intersindical

14/09, 11h: Mafê (Bloco Anel às Ruas): A função dos juristas do Largo São Francisco de 1967 a 1969

segunda-feira, agosto 08, 2011

A miséria da produção cultural capitalista e a miséria da crítica cultural centrista: É necessário uma resposta revolucionária!

Recentemente Camila Lisboa, destacada dirigente da juventude do PSTU, escreveu um artigo homenageando a cantora Amy Winehouse, motivada por sua súbita morte. Este artigo expressa cabalmente como aquilo que nós da Fração Trotskista – Quarta Internacional (organização internacional da qual a LER-QI é a seção brasileira) denominamos como o “grau zero da estratégia trotskista” encontra seu correlato também nas discussões sobre moral, ideologia e arte; ou seja, que as organizações que se reivindicam herdeiras do trotskismo passaram a abrir mão, no perído do pós II guerra, não apenas das bases teóricas, estratégicas e programáticas da IV Internacional, mas também deixaram de lado o que o marxismo refletiu e elaborou sobre a arte, a cultura e a moral 1. Trata-se de um artigo que expressa posicionamentos extremamente conservadores sobre estas questões, que poderia perfeitamente ter sido escrito por um colunista cultural de uma revista burguesa qualquer, - ou, pelo seu tom “descolado” que reivindica a “rebeldia” de Amy, na Folhateen 2 – que joga por terra toda a vasta e profícua elaboração da crítica artística e cultural elaborada ao longo de séculos de luta da classe trabalhadora, tomando para si o que há de mais atrasado no senso comum e crendo com isso que está “inventando a roda”.

Vivemos tempos em que começam a cair por terra os principais mitos ideológicos forjados durante o período de trinta anos de restauração burguesa, de que as revoluções seriam coisa do passado, de que tudo o que podíamos fazer era nos acostumarmos ao mundo tal como ele é pois a história teria chegado ao seu fim, e até mesmo absurdos em flagrante oposição à realidade empírica, como de que não existiria mais classe operária. Neste contexto de transformação, certamente assistiremos a grandes reviravoltas também no terreno das artes, da cultura e da moral. Embrionariamente, estes fenômenos começam a se expressar aqui no Brasil, como, por exemplo, nas Marchas da Maconha e Marchas da Liberdade, na organização dos artistas que ocuparam a Funarte e na sua própria produção, que começa a se questionar cada vez mais abertamente sobre seu papel na luta de classes e de que lado deve se posicionar (o próprio movimento se reivindica de “trabalhadores da cultura” 3, mostrando nitidamente uma mudança de subjetividade ao marcar seu desejo de identidade com a classe trabalhadora), bem como nos movimentos artísticos que se organizam na periferia das grandes metrópoles e começar a dar voz à expressão da classe trabalhadora, o que, com todas as contradições que apresente (como as tentativas muitas vezes bem sucedidas de assimilação e cooptação por parte da indústria cultural e do estado burguês 4, além de uma evidente dificuldade em superar os modelos estéticos hegemônicos impostos pela burguesia), é por si só um fato notável, considerando que todos os meios de expressão artística foram historicamente (durante o capitalismo) de posse exclusiva da burguesia e da pequena burguesia mais abastada.
Neste sentido, são importantíssimas as questões neste âmbito suscitadas no artigo de Camila Lisboa, pois os revolucionários devem se colocar a tarefa de discutir não apenas programa e estratégia para a construção do partido revolucionário que possa ser o elemento decisivo para a tomada do poder quando os trabalhadores se coloquem à frente para travar os grandes combates da luta de classes, mas, entendendo também que o papel de um partido revolucionário é ser um embrião da nova sociedade que almejamos forjar, devem abrir espaço para que em seu interior ocorra o questionamento da sexualidade, da moral burguesa, da cultura e da arte, enfim, de todos os aspectos de nossa vida, hoje balizados pelos ditames da apodrecida classe dominante. O partido e sua militância devem fertilizar amplamente o terreno que será cultivado pela classe trabalhadora para forjar uma nova vida quando passemos a romper definitivamente os grilhões que nos aprisionam.
Historicamente foi assim: como exemplos emblemáticos de que nos períodos de revolução se abre o caminho para a renovação da arte podemos citar o russo Vladímir Maiakóvksi e o alemão Bertolt Brecht, ambos comprometidos da cabeça aos pés em fazer uma arte umbilicalmente atrelada ao projeto de revolução social sob a hegemonia da classe trabalhadora.
O artigo de Camila Lisboa, do começo ao fim, está na contramão de lutar por uma nova forma de encarar a arte, a cultura, a sexualidade, as drogas; enfim, a vida. Retoma a prática de seu partido, o PSTU, de separar suas discussões propagandistas sobre o socialismo de sua prática cotidiana, frequentemente adaptada à miséria do possível e aos estreitos horizontes da democracia burguesa. No âmbito da cultura e da moral, demonstram através de uma importante dirigente da juventude (setor que deveria ser a vanguarda destas discussões), como se encontra até o âmago adaptado à miséria da sociedade burguesa. Se a questiona, é apenas na aparência, para assim aceitá-la de maneira supostamente mais “rebelde”, para usar as palavras da autora.
Vejamos então como isso se dá.
Camila inicia discutindo o “lixo cultural” produzido pelo capitalismo sob o rótulo de arte da seguinte forma: “algo produzido às pressas, sem personalidade, sob o ritmo louco do mercado, sem critério de criação, sem expressão real de nenhum sentimento, pensamento ou qualquer coisa. Sob essa lógica, buscam-se padrões estéticos, sem muitas exigências artísticas. 25 a 30 shows por mês, ‘Domingão do Faustão’ e pronto. Fez-se um ‘artista’, ou um ‘fenômeno’”.
Concordarmos prontamente – como qualquer pequeno burguês “rebelde” poderia fazer – que a indústria cultural impõe uma produção estética que segue determinadas fórmulas comerciais estipuladas por um nicho mercadológico e todos os ramos de reprodução de capital criados como suas patas: gravadoras; programas, sites e revistas de “entretenimento”, todos os produtos ligados ao “marketing cultural”, como chaveiros, bonés, camisetas, posteres, calcinhas, e todo e qualquer tipo de porcaria que possa ser vendida em grande quantidade. Alguns dos elementos apontados por Lisboa respondem a esta lógica do produtivismo em moldes pré-estabelecidos e comercialmente testados: a produção às pressas, a grande quantidade de shows, etc, tudo sob a lógica de gerar mais lucro. Contudo, é gritante o vazio dos conceitos utilizados no artigo para caracterizar e criticar a indústria cultural, que podem querer dizer praticamente qualquer coisa. O que significa “algo sem personalidade”, “sem critério de criação”, “sem expressão real de nenhum sentimento, pensamento ou qualquer coisa”(?!?), “padrões estéticos, sem muitas exigências artísticas”? Deste tipo de caracterização da industria cultural pode-se deduzir que, para a crítica do PSTU, qualquer coisa com “personalidade”, “critério de criação” e que “expresse qualquer coisa” é arte.
De fato, a produção da indústria cultural responde a todos os critérios colocados acima. A “personalidade” que se apresenta é aquela criada e imposta pelos nichos de mercado, ou assimilada e pasteurizada a partir de movimentos culturais espontâneos da juventude, pronta a encaixar adolescentes em estereótipos que garantam a formação de um grupo identitário para consumir os produtos a ele dirigidos: emos, góticos, clubbers, patricinhas, punks, nerds, agroboys, gays, pit boys, torcedores de futebol e até onde mais a lógica do lucro possa imaginar. Seu “critério de criação” responde a estes parâmetros, que na verdade são bastante rígidos e conscientes. Gastam-se fortunas com os melhores equipamentos, músicos e produtores muitíssimo bem treinados; imagens, letras e melodias cuidadosamente elaboradas para terem a “personalidade” adequada. O melhor exemplo são as megalomaníacas produções de Hollywood. Será que filmes que gastam milhões de dólares e arrecadam muitas vezes mais em bilheteria são realmente produzidos sem nenhum “critério de criação”? Pode ser que os produtos da indústria cultural não expressem os sentimentos e pensamentos “rebeldes” que Lisboa gostaria, mas certamente há a expressão de muitos sentimentos e pensamentos, que dirá a expressão de “qualquer coisa”! Mas, certamente, a maior expressão de “qualquer coisa” é esta definição da indústria cultural!
Se queremos ter uma crítica minimamente séria, seguindo o método marxista, ou seja, materialista e dialético, não podemos dispensar uma das principais camisas de força ideológicas da burguesia, que cumpre o papel primordial de alienar e pacificar milhões e bilhões de pessoas em todo o mundo, com meia dúzia de frases feitas que não querem dizer absolutamente nada. Precisamos entender profundamente o que torna a indústria cultural tão poderosa para que possamos desmascará-la diante das massas e combatê-la, para que possamos nos apropriar de muitos de seus elementos mais avançados e eficazes para um uso revolucionário. Os melhores marxistas no campo da crítica cultural sempre procederam desta forma, como podemos ver na obra de Walter Benjamin. Este via, para ficarmos apenas em um exemplo, de maneira dialética a possibilidade da reprodução em grande escala de obras de arte (um elemento imprescindível para a formação da indústria cultural moderna), como uma possibilidade de acabar com o “fetiche” criado em torno da obra de arte (aquilo que ele denominou como “aura”)5.
Também a burguesia, que neste aspecto é muito mais perspicaz do que o PSTU, procede de forma semelhante ao assimilar aquilo que pode da produção artística e cultural dos revolucionários para seus próprios fins de dominação de classe. Diversas técnicas muito eficazes que hoje conhecemos através da publicidade capitalista, como o uso apurado da linguagem visual, foram assimiladas a partir das experiências desenvolvidas pela ROSTA 6 sob o comando de Maiakóvski na época da guerra civil revolucionária, ou ainda dos construtivistas russos que continuaram estas experiências. Muitas inovações do cinema hoje completamente absorvidas por Hollywood tiveram sua origem nos filmes de Serguei Eisenstein que retratavam a luta da classe trabalhadora russa pela tomada do poder. São apenas alguns entre diversos exemplos que poderíamos citar.
O mesmo se deu com todos os movimentos mais importantes de contracultura ao longo do século XX. A cultura e a arte, por mais contestadores que sejam, mostram-se completamente incapazes de fazer uma transformação radical da sociedade por si próprias (como gostariam e querem fazer crer muitos artistas oprimidos pela camisa de força estreita da industria cultural), e isto torna-se evidente na forma como o capital é capaz de se apropriar, assimilar e esterelizar ideologicamente qualquer movimento de contracultura que se geste em seu interior, tornando-o apenas mais um nicho comercial a ser explorado – em especial para vender bugigangas para os adolescentes “rebeldes”. Foi assim com toda a música criada pelos negros nos EUA – rock, blues, jazz, R&B, soul e Rap –, que foi peça fundamental na resistência cultural do povo negro, e hoje foi transformada em paródias como o Rap “gangsta”, que trás o estereótipo do negro assimilado, com sua ostentação de carrões, penduricalhos de ouro e mansões, além de um machismo gritante que coloca mulheres-objeto desfilando nos clipes no mesmo patamar que seus carrões. Foi assim com o Punk surgido das entranhas da classe operária inglesa e estadounidense, que em suas vertentes mais politizadas produziu verdadeiros hinos de guerra ao capital, como “London Calling”, e hoje foi transformado em nada mais do que “um visual e um som”. Foi assim com o movimento hippie, que se colocava pela liberdade sexual e de uso das drogas, organizando atos massivos contra a guerra do Vietnã e produzindo aquilo que houve de mais revolucionário esteticamente no rock, com figuras do porte de Jimi Hendrix e Janis Joplin, e que depois virou uma caricatura apresentada em musicais da broadway, forneceu uma geração de frustrados workaholics para o yuppismo e chegou à diluição completa com a formação de conceitos de moda como o “hippie-chique”. Esta pasteurização ideológica se deu até mesmo com figuras transformadas em “mártires revolucionários” para que seu potencial questionador fosse obliterado, como nos milhares de produtos que trazem estampada a cara de Che Guevara como se este fosse um ídolo pop adolescente tão “rebelde” quanto o último cantor Emo.
Estes movimentos de assimilação dão apenas uma ideia vaga da intrincada relação da produção artística com a indústria cultural, e faz-se necessário que a entendamos de forma dialética, e não maniqueísta, como se tudo o que produz fosse completamente descartável, ou como se aquilo em que vemos algum valor fosse uma exceção inexplicável. Da maneira como é retratada no texto, Amy parece muito mais com uma grande vítima da indústria cultural, quando na verdade trata-se de uma vítima sim, mas em igual medida uma cúmplice que construiu grande fortuna adaptando-se aos moldes exigidos por sua gravadora (exemplo marcante é seu terceiro CD, que havia sido vetado pela gravadora por ser “muito reggae”, e que agora foi desengavetado pela possibilidade de capitalizar melhor a morte da cantora). Não há quem não tenha apreço por algumas (ou muitas) das produções da indústria cultural, que hoje regula praticamente toda a produção artística à qual temos acesso, e o que explica isso não é meramente uma genialidade tão incrível que o capital não foi capaz de obliterar com a implacável lógica do lucro. Por isso, é uma postura absurda a de descartar toda a produção cultural sob o julgo do capital unanimemente, elegendo “heróis” como Amy como se eles não estivessem completamente implicados na reprodução desta lógica. Uma visão minimamente dialética compreende que a relação contraditória entre artistas e dentores dos meios de produção e circulação cultural deve ser estudada a fundo para que possamos ver o que há de progressivo e o que teremos que superar definitivamente no modo como se produz a arte na sociedade burguesa.
Mas, ao seguirmos a leitura do texto de Camila Lisboa, vai ficando cada vez mais evidente porque esta julga tão simples colocar tudo como “preto no branco”, de uma forma tão antimarxista. Diz ela: “Fazer boa música, produzir arte, compor, escrever, tocar e cantar sob o critério da arte é uma arte e tanto. E foi com isso que Amy Winehouse surpreendeu.” Aqui torna-se evidente como sua cabeça está repleta de “verdades” nada “rebeldes”. O que seria fazer “boa música”? Por este artigo podemos saber que, para Lisboa, Amy seria “boa música”. E o que mais? Para ela, não importa sequer colocar sua visão do que seria isto. O conceito de “boa música”, para a autora, não é historicamente determinado, mas fixo e imutável. É uma verdade tão dogmática quanto os dez mandamentos, e por isso não é necessário explicá-la. Coroa-se isto com a formulação “sob o critério da arte”. Para Lisboa, como para Olavo Bilac, o príncipe dos poetas parnasiano, a arte existe em seu estado puro, talvez no monte Olimpo ou na cabeça de grandes gênios como Amy Winehouse, e ela oferece seus critérios (misteriosos demais para nós mortais, mas certamente de conhecimento da autora, que, no entanto, se recusa a compartilhá-los conosco) para que estes gênios produzam sob seu auspício. Haveria algo mais radicalmente anti-histórico, antimaterialista, antidialético, ou, em outras palavras, antimarxista do que tal visão da arte? Voltaremos a isto mais a frente.
Amy Winehouse pode ter surpreendido Lisboa por ter produzido sob o “critério da arte”, mas certamente o leitor de seu texto se surpreende mais pelo descalabro a seguir, quando a autora afirma que “Amy Winehouse foi rebelde porque fazia arte verdadeira, com entrega. O amor não lhe era um sentimento bonito, como nos contos de fada, mas um sentimento de dor, de massacre, de automutilação. É muito rebelde falar do amor assim. (?!?) Para Amy, o amor é dor porque se humilha e “chora no chão da cozinha”, sem se importar em expressar mais amor do que o correspondido.” Seria este então o misterioso “critério da arte” de Lisboa? Aquilo que ela chama de “arte verdadeira” é a que se faz com “rebeldia” e “entrega”? Supõe-se então que a “arte verdadeira” só pode ser fruto de um arrebatamento, um estado catártico, um transe que acomete os “gênios criadores” que colocam seus sentimentos profundos nas obras. Mais a frente, retomaremos isto para mostrar como a ideologia burguesa de arte está impregnada até a medula de Lisboa.
Por ora, vamos a sua colocação sobre às relações de sexualidade, quando explica generosamente ao seu leitor que “é muito rebelde” falar do amor como humilhação, massacre, automutilação. Se a visão do amor de contos de fadas do “foram felizes para sempre” expressa uma deturpação ideológica que procura vender a família e o casamento como instituições sagradas e dignas de louvor, colocando em um pedestal de adoração aquilo que é uma forma de escravidão e opressão, a visão de amor como humilhação, por sua vez, não tem absolutamente nada de progressivo, e é na verdade uma complementaridade necessária àquela primeira visão, imprescindível para manter as mulheres submissas, como reféns de sua opressão, aceitando-a não apenas por uma imposição externa, mas por terem internalizado a ideologia brutal que a justifica como parte de seu próprio modo de sentir e pensar.
É verdadeiramente escandaloso que uma mulher, militante de um partido operário que discute a opressão das mulheres sob o capitalismo e a necessidade de sua auto-organização, reivindique que é “rebelde” falar do amor como massacre, dor e automutilação. Milhões, se não bilhões, de mulheres são vítimas desta visão tão “rebelde” de amor. Casos de femícidio, tratados pela mídia e pela justiça burguesa como “crimes passionais” são frequentemente justificados por tal visão “rebelde” de amor 7. Não se coloca a realidade concreta: que o homem vê sua companheira como uma posse e que, ao perder sua propriedade, resolve assassiná-la, por sentir-se detentor de todo a sua subjetividade e de seu corpo. Trata-se a questão sob o prisma deste “amor” tão “rebelde”, como um grande sentimento de “dor” causado pelo abandono, às vezes elevando-se um assassinato seguido de suicídio ao status de uma verdadeira “declaração de amor”, algo belo, como “Romeu e Julieta”: “Se não posso viver com você, não mais viverei!” (E nem você, com mais ninguém, e nem sozinha). É uma expressão acabada da ideologia burguesa sobre as relações amorosas.
Por outro lado, as mulheres sofrem uma pressão social colossal para colocarem seus relacionamentos amorosos no centro de suas vidas, como a maior prioridade e como determinante de sua própria personalidade, subjetividade e aspirações de vida. Em muitos casais formalmente “emancipados” à primeira vista, com relacionamentos abertos (sem monogamia) e sem os aspectos centrais dos moldes tradicionais de família (compartilhar uma casa, com a mulher cumprindo o papel de reprodutora da força de trabalho e educadora das crianças e o homem como provedor), podemos encontrar ainda esta subjetividade nas mulheres como uma das marcas mais persistentes e difíceis de superar da opressão que se abate sobre elas no âmbito dos relacionamentos – principalmente porque as coloca diretamente como agentes de sua própria opressão ao reproduzirem estes sentimentos, o que coloca o combate à opressão como um combate à sua própria subjetividade. Enxergar o amor como sofrimento é parte intrínseca disto. É parte de que a mulher coloque sua relação amorosa não como parte de sua liberdade, como reivindicam os revolucionários, mas como parte de sua escravidão. Faz com que coloque todos os projetos de sua vida subordinados, em última instância, a este “amor rebelde” sem o qual não se pode viver, sem o qual é preferível se automutilar, sofrer, “chorar no chão da cozinha”. De que para mantê-lo a mulher deve se sujeitar a agressões, humilhações e tudo mais que seu companheiro imponha. É o apagamento completo da mulher como sujeito de sua própria vida, de submissão afetiva, psíquica e moral a seu companheiro. É isso que acontecia, inclusive com a própria Amy Winehouse, que era vítima de agressões físicas por parte do seu marido. A “rebeldia” reivindicada por Lisboa é, na verdade, puro reacionarismo.
É exatamente disto que fala Wilhelm Reich ao discutir o problema da sexualidade entre os revolucionários já nos anos trinta: “Além disso, as coisas apresentam ainda muitas dificuldades porque as moças são muito mais dependentes sexualmente dos rapazes do que eles delas, por causa da educação sexual que elas recebem, mesmo nas famílias proletárias. E uma relação amorosa significa em geral para a moça proletária muito mais do que para o rapaz, não só corporalmente, mas também psiquicamente.”8 Se Amy apenas expressava isto como sua subjetividade nas letras de suas músicas, sem no entanto reivindicar como um exemplo a ser seguido, mostra-nos apenas como esta ferida é profunda em nossa sociedade e como deve ser tarefa central dos revolucionários combatê-la a ferro e fogo. Já Lisboa, ao invés de combater este atrasadíssimo aspecto da nossa sociedade, glorifica-o, diz que “é muito rebelde”. É o grau zero da moral revolucionária!
A próxima preocupação de Lisboa será a de dar uma espécie de verniz acadêmico às abobrinhas que faz desfilar diante do leitor, e para isso invoca a identificação de Amy Winehouse com os poetas ultraromânticos do século XIX. Se é verdade que não há nada de esclarecedor nesta relação para explicar o que há de valoroso na produção musical de Amy, como parece querer crer a autora, há no entanto uma boa dose de explicação para a origem das concepções nada revolucionárias de arte e amor da própria Camila Lisboa.
O Romantismo foi um dos movimentos artísticos e culturais de maior influência na modernidade, justamente porque está intimamente relacionado ao ascenso da burguesia como classe politicamente hegemônica. É o Romantismo, de fato, que apresenta – ainda que de maneira conflituosa e contraditória – uma grande parte das concepções ideológicas da burguesia. Foi fundamental, por exemplo, para consolidar o conceito de “nacionalidade” no imaginário da classe trabalhadora, um conceito fundamental para apaziguar as contradições de classe, procurando estabelecer uma relação de identidade entre a burguesia e o proletariado que se colocasse acima dos interesses contraditórios entre trabalhadores e capital 9. No Brasil, foi uma espécie de precursor do mito da democracia racial, apresentando de forma idílica e idealizada a relação entre índíos e brancos (e em alguns casos, negros também, ainda que as classes dominantes fossem tão reacionárias que o mais comum fosse ignorar simplesmente sua existência para não “sujar” sua produção artística com este tema tão pouco “nobre”), como na reacionária obra de José de Alencar. O papel essencial que cumpriu a literatura como cimento ideológico e apaziguador das contradições sociais inerentes ao capitalismo é sintetizado por Terry Eagleton na seguinte frase: “If the masses are not thrown a few novels, they may react by throwing up a few barricades.” (Se não forem atirados às massas alguns romances, elas podem reagir erguendo algumas barricadas).
Muitos dos preconceitos ideológicos burgueses de que Lisboa se vale para reivindicar a produção de Amy Winehouse foram forjados nesta época, como o de que a “arte verdadeira” seria aquela que expressa a “subjetividade singular” do autor (definidos como a “personalidade” e o “sentimento” no início de seu texto), que é feita com “paixão” e “entrega”. Esta concepção surge justamente do papel absolutamente marginal que ocupam os artistas na sociedade burguesa, que progressivamente passa a mercantilizar todas as relações entre os seres humanos. Se antes a arte possuia seus mecenas e nobres que a patrocinavam e valorizavam, garantindo para ela um status social elevado, a partir da dominação burguesa ela passa a ser uma mera mercadoria, como qualquer outra. Aliás, pior do que outras, do ponto de vista da burguesia, porque não possui uma função pragmática. O artista passa a enfrentar a realidade de que ele é obrigado a vender sua força de trabalho como qualquer outro, ou adequar sua arte ao pragmatismo burguês para poder vendê-la (os primórdios da indústria cultural), e que nesta sociedade a arte não passa de “perfumaria”.
Para se refugiarem desta realidade e tentarem valorizar através de um escapismo idealista seu próprio papel, começa a surgir entre os artistas a concepção comumente conhecida como “arte pela arte”, que reivindica uma autonomia da arte em relação às coisas materiais e mundanas. Como se o artista fosse uma categoria especial de ser humano, um gênio que expressa sua individualidade e sua subjetividade através da sua obra, em contraposição à reificação de todas as relações. Passam a se valorizar, na arte, atributos que anteriormente não tinham a menor importância, como a originalidade e a expressão “autêntica” dos sentimentos. O amor passa a cumprir um papel destacado porque, como a própria arte, foi visto pelos românticos como um valor maior, acima das coisas materiais e da visão mundana da burguesia, algo que estaria acima da mera mercantilização, que significaria a antítese dos valores que procuravam rejeitar na na sociedade do capital.
Se é verdade que há algo de progressista no sentido de rejeição da mercantilização imposta pela burguesia a todas as relações, e até mesmo de revolucionário, no mesmo sentido em que a própria burguesia o era em contraposição ao Antigo Regime, há um conservadorismo profundo na ideia de que a resposta para a miséria “espiritual” da reificação das relações é se isolar das coisas materiais e, assim, da luta da classe trabalhadora contra o capital. Claro que dentro da imensa produção artística romântica houve aqueles que, vendo a miséria da sociedade capitalista, tomaram uma postura mais progressista e procuraram retratar os explorados. É o caso de Victor Hugo, por exemplo. No Brasil, poderíamos citar Castro Alves, que colocou sua arte a serviço da luta pela abolição. Contudo, a chamada segunda geração romântica, os adeptos do ultra-romantismo, reivindicados de maneira acrítica por Camila Lisboa, foram justamente aqueles que mais se isolaram dentro de sua subjetividade, que mais pregaram o valor da “arte pela arte”, que mais procuraram se colocar como gênios criadores distantes do mundo.
Aqui no Brasil o núcleo duro dos poetas ultra-românticos foram os filhos da classe dominante concentrados na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, tendo seu maior expoente na figura de Álvares de Azevedo. Apresentam o amor da maneira “rebelde” que reivindica Lisboa, como sofrimento, idealização. Utilizavam-no como mais um refúgio idílico de sua subjetividade e de seu gênio criador em oposição à mesquinhez do mundo real. É uma fuga das coisas “mundanas”: a escravidão, por exemplo, passou longe de suas obras. O que importava, acima de tudo, era o coito amoroso do gênio criador.10
A influência do Romantismo e sua relação umbilical com o ascenso do capitalismo são aspectos tão marcantes, que até hoje – mesmo com tantas superações e questionamentos de seus valores – a sua moral se expressa em relevantes manifestações da sociedade burguesa atual, da qual a subjetividade de Camila Lisboa é apenas mais um triste exemplo. As novelas, o ideal do “amor romântico” (seja em sua versão “felizes para sempre” ou em sua versão “humilhação e sofrimento”, duas faces da mesma moeda), a ideia de que existe uma abstração como a “arte verdadeira” ou o “amor verdadeiro” são algumas das formas de sua manifestação.
Lisboa diz em seu texto, ao finalizar a comparação da cantora com os poetas românticos, como que para colocar uma cereja no bolo da suposta genialidade artística de Amy Winehouse: “Mas Amy era de hoje.” Só podemos supor o que a autora quis dizer com isso, mas parece que em sua visão Amy seria ainda mais genial por expressar ainda hoje uma subjetividade forjada há séculos atrás. Qualquer um pode perceber o contrário, que é extremamente conservador manter hoje as concepções artísticas dos artistas do século XIX. Contudo, não coloquemos sobre Amy Winehouse o ônus das comparações esdrúxulas de Camila Lisboa, já que para além de uma subjetividade em relação ao amor bastante difundida em nossa sociedade, ela muito pouco tem de semelhante com os poetas daquela época. Para Camila Lisboa sim, poderíamos dizer: em sua época e seu contexto, da burguesia em ascensão, os poetas ultraromânticos puderam apresentar algo de progressivo ao rejeitar a mercantilização das relações afetivas e da arte. “Mas Camila é de hoje”. E hoje, na época do capitalismo em franca decadência, não há mais nada de progressivo em ter uma subjetividade assim, muito menos em reivindicá-la como algo “rebelde”.
Há muito mais o que refutar no artigo de Camila, mas não podemos aqui nos dar esta tarefa, pois parece que cada linha apresenta uma nova tarefa neste sentido. Em relação à questão das drogas, colocações como “Amy Winehouse expressava rebeldia em suas letras não porque se recusasse a ir para reabilitação” e principalmente “Não sabemos precisamente o nível de vício da cantora e acreditamos que o vício em drogas poderia, eventualmente, atrapalhar seu desenvolvimento artístico.” – que, aparte os eufemismos (“eventualmente”, “poderia”), caberia perfeitamente na boca de um âncora de jornal burguês com sua moral reacionária antidrogas, como Boris Casoy ou Datena – expressam um conservadorismo tão grande quanto em relação à questão sexual; dificilmente se poderia dizer que vieram de uma militante do mesmo partido de Henrique Carneiro, que além de ter uma vasta produção acadêmica sobre o assunto, apresenta uma posição verdadeiramente revolucionária sobre a questão, defendendo a descriminalização de todas as drogas, o monopólio estatal de sua produção, controle e distribuição, a educação a respeito do consumo de drogas, etc. Sobre esta questão, que não desenvolveremos, recomendamos o excelente artigo de Bernardo Andrade 11 para uma posição diametralmente oposta ao moralismo pequeno burguês de Camila Lisboa.
Não poderíamos concluir este texto, contudo, sem esboçar uma perspectiva que se contraponha à colcha de retalhos de preconceito e senso comum pequeno burguês que teceu Camila Lisboa. A questão de fundo – no que se refere à arte – está na maneira profundamente antimarxista como ela encara a arte, ou seja, como esta figura no texto como algo dado, imutável, a-histórico. Quando tenta explicar o que entende por arte, a coisa fica muito pior, pois expressa um amontoado de características que parecem tiradas de uma apostila de banca de jornal, e que, como demonstramos, nada mais são do que um arremedo do que a ideologia forjada pela sociedade burguesa nos brindou ao longo de séculos. Marx e Engles já apontavam, em seus esparsos escritos sobre arte e literatura, como estas são mais uma das superestruturas que representam um reflexo, em última instância, das relações de produção da sociedade. Portanto, a própria definição do que é arte é algo absolutamente histórico, determinado pelas formas de produção e sua relação dialética com a política, a cultura, etc. e que corresponde inexoravelmente aos interesses da classe dominante, pois, como já foi dito no Manifesto Comunista: “as ideias dominantes de uma época sempre foram as ideias da classe dominante”.
Assim, anteriormente convinha à classe dominante manter o conceito de “arte” restrito às produções de uma elite intelectual que pudesse consolidar um corpo ideológico que desse respaldo à sua dominação, colocando de fora do campo da arte tudo aquilo que não atendesse a este critério e mantendo uma fachada de critérios estéticos para dar um ar meritocrático a esta diferenciação – e aí entra o fundamental papel dos críticos de arte, dos próprios artistas e o papel político importante do conceito de “arte pela arte”, que procura ocultar os inevitáveis laços da arte com a política em qualquer época e contexto e desmerecer as produções artísticas que explicitem estas relações como “panfletárias”. Com a consolidação da indústria cultural, contudo, há um cenário novo, em que se cria um mercado de massas para o consumo da produção cultural, outrora reservada apenas para uma restrita elite, com uma possibilidade muito restrita de geração de lucro. Isto trás a necessidade de um novo conceito de arte para a classe dominante, e assim encontramos todo tipo de produção cultural que atende aos parâmetros desta nova indústria, padronizada para um consumo de massas, sendo definida também como arte. Chega-se ao extremo de rotular apresentadores de programas de auditório, como Hebe Camargo ou Silvio Santos, como “artistas”, nas definições da revista Caras e afins. Monta-se o espetáculo da vida alheia, em que não mais se consomem apenas os produtos da indústria, como a própria vida glamourosa e perdulária dos novos “artistas”. Se o capitalismo não pode lhe fornecer uma vida minimamente interessante, com algum significado e possibilidade de realização, então ele pode lhe fornecer uma vida fantástica e inventada, ela própria um produto da indústria cultural pronta a ser consumida.
Esta nova concepção de arte, de maneira apenas aparentemente paradoxal, convive lado a lado com a antiga, elitista, que não é de forma alguma deixada de lado, pois ainda cumpre um papel fundamental. A academia, junto a um reduto da burguesia e pequena burguesia “ilustrada”, ainda legitimam e consomem o conceito de arte mais próximo ao cunhado pelos românticos, da arte como algo muito mais “sofisticado”, que, como apresentou Camila Lisboa, apresente “personalidade”, “sentimento”. Fecham-se em uma torre de marfim e comemoram entre si sua erudição tirando sarro de grandes ícones do mercado literário, como Paulo Coelho, para esconder atrás de uma fachada de arrogância, como os românticos faziam, sua própria situação de marginalidade. A convivência dos dois critérios de arte é evidenciada no artigo da dirigente do PSTU quando ela sente a necessidade de apontar a produção de Amy Winehouse como “arte verdadeira” (ou seja, há a necessidade de diferenciação de uma “arte falsa”, que é a produção estereotipada para consumo da classe trabalhadora e das massas).
A partir da convivência destes dois critérios do que seria a arte, ambos legitimados pela burguesia a partir de diferentes instituições e para diferentes públicos, mas ambos cumprindo papéis importantes para esta classe, há muitos que consideram que a postura progressista que devemos adotar é justamente a de um conservadorismo, de nos apegarmos à definição elitista de arte e de tentar fazer girar a roda da história para trás no que concerne ao conceito de arte. Ainda que de maneira caricata, é isso o que Camila Lisboa procura fazer. Levando esta concepção às suas últimas consequências, se acreditaria que a superação da degradação do conceito de arte imposta pela própria burguesia seria a de voltarmos a fazer uma arte “sofisticada”. Esta concepção de arte visa também deslegitimar qualquer produção cultural que surja das próprias massas e dos trabalhadores, como o hip hop, o graffite, o cordel. No máximo se aceitam, numa visão populista, como “manifestações da cultura popular”, e não como “arte verdadeira”. Não pode ser este papel reacionário que cumpram os revolucionários, com um apoio envergonhado e confuso a esta retrógrada concepção de arte. Precisamos ter uma visão marxista, radical, de questionar até o fim e não nos adaptarmos ao conceito de arte que nos quer impor a burguesia, seja em sua variante “popular e de massas”, seja em sua variante “acadêmica e erudita”.
É neste ponto fundamental que avançaram teóricos marxistas que se debruçaram especificamente sobre a questão da arte – e particularmente a literatura – como Raymond Willians e Terry Eagleton. A tarefa que nos cabe hoje, no campo da arte, é primordialmente não capitular à definição burguesa de arte, o que não significa rejeitar unilateralmente toda a produção da indústria cultural, mas sim questionar o que isto quer dizer. Não é à toa que há tantas discussões acadêmicas que chegam à metafísica para procurar a definição do que é arte, dando voltas em torno de si mesma. Como disse Trotsky, em outro contexto, “para sua guerra de palavras a pequena burguesia procura a quarta dimensão”. Não podemos cair nesta armadilha.
Acima de tudo, precisamos construir um partido revolucionário que possa dar ao proletariado a direção necessária para que este tome o poder e, a partir daí, cumpra a tarefa imprescindível no campo da cultura, que é a única capaz de fazer a humanidade dar um verdadeiro salto no terreno da educação, da arte, da ciência, e que foi apontada por Trotsky e André Bretón no Manifesto por uma Arte Revolucionária Independente: “A arte verdadeira, a que não se contenta com variações sobre modelos prontos, mas se esforça por dar uma expressão às necessidades interiores do homem e da humanidade de hoje, tem que ser revolucionária, tem que aspirar a uma reconstrução completa e radical da sociedade, mesmo que fosse apenas para libertar a criação intelectual das cadeias que a bloqueiam e permitir a toda a humanidade elevar-se a alturas que só os gênios isolados atingiram no passado.”12 Ou seja, nossa tarefa essencial é lutar para que todos possam ter acesso e produzir “arte”, para que esta deixe de ser uma tarefa especial, para eleitos e privilegiados, e, enfim, se torne obsoleto o próprio conceito de arte. Se não cabe ao partido ditar regras fixas para a arte, mas sim permitir a liberdade total no terreno da criação, será tarefa primordial da ditadura do proletariado iniciar um processo de transição para que possamos colocar por terra a antiga e insuperada divisão entre o trabalho intelectual e o trabalho braçal com esta perspectiva.



1 - O processo de deriva estratégica que assolou os jovens quadros dirigentes da IV Internacional após a morte de Trotsky e também com as enormes dificuldades apresentadas pelos contraditórios resultados da II Guerra Mundial (este processo inclui Nahuel Moreno, teórico reivindicado pela LIT-QI, corrente internacional do PSTU) é explicado em maiores detalhes no artigo “En los límites de la ‘restauración burguesa’”, disponível em http://bit.ly/f62Whx e a ser publicado em português em breve na revista Estratégia Internacional Brasil 5.

2- A Folhateen é um caderno semanal do jornal Folha de S. Paulo dedicado espeficiamente ao público adolescente. É um exemplo contundente de como a burguesia procura pasteurizar a juventude e assimilar sua característica de ser frequentemente linha de frente nas mobilizações para criar uma paródia disso em mais um “grupinho identitário” a ser transformado em um nicho de mercado ou uma imagem de jovens “rebeldes” a ser reproduzida sem nenhum conteúdo político perigoso para a burguesia. Seria mera coincidência que este caderno e outro denominado Fovest (dedicado ao vestibular) já tenham colocado em suas páginas entrevistas e matérias sobre mais de um dirigente de juventude do PSTU, como Gabriel Casoni (então diretor do DCE da USP) ou Clara Saraiva? http://bit.ly/oDqYcD E por que a juventude do PSTU se presta a ser matéria prima para matérias que procuram desmoralizar o movimento estudantil, como a que diz “Líderes estudantis atrasam a formatura em nome da militância”? http://bit.ly/oepOLe Provavelmente porque consideram que assim, nas páginas da Folhateen, poderão “dialogar” melhor com a juventude.

3- Site do Movimento de Trabalhadores da Cultura: http://www.culturaja.com/

4- Exemplo marcante foi a contratação de Ferréz, um dos mais conhecidos escritores da literatura marginal, como roteirista do seriado protofascista “9mm” da Fox, propriedade do reacionário Rupert Murdoch. http://bit.ly/pOgkHR

5- “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, disponível em http://bit.ly/mZk8Xu

6- Российское телеграфное агентство (Agência Telegráfica Russa), dirigida por poetas e artistas plásticos, de 1919 a 1921 foi responsável pelas famosas vitrines satíricas, que tinham o objetivo de fazer propaganda revolucionária e agitação contra os brancos entre as massas. Combinavam frases curtas com imagens.

7- Não por coincidência, enquanto este artigo era escrito surgiu nos noticiários mais um caso destes, uma triste rotina em nossa sociedade: http://bit.ly/npZUtw. Junto ao corpo do assassino, que se suicidou, foi encontrada uma carta ressaltando o “amor” que sentia pela vítima. Sem dúvida, era para ele um sentimento de dor e automutilação, tão grande que o levou a assassinar a ex-companheira e cometer suicídio. Será isto um ato de “rebeldia” ou mais uma expressão do profundo machismo de nossa sociedade?

8- Citado do livro organizado por Gilson Dantas com excertos de “O combate sexual da juventude”, de Wilhelm Reich. Centelha Cultura, Brasília, 2011. p. 41.

9- Para uma discussão mais profunda sobre o importante papel ideológico que a literatura cumpriu frente à decadência da religião e o ascenso da burguesia, ver “Introdução à crítica literária”, de Terry Eagleton.

10- Ainda que estes próprios poetas, em seus melhores momentos, expressassem em suas obras a situação contraditória de sua própria condição de artista. Para um exemplo disto, ver “A representação do dinheiro na ironia de Álvares de Azevedo” http://bit.ly/nEAgrD

11- “Amy Winehouse, a indústria cultural e a questão das drogas” http://bit.ly/qy1T3t

12- http://bit.ly/ngo4B1