sábado, março 05, 2016

Quem mandou você ser homem?

Viver é estar imerso em contradição e conflito. Os conflitos que nossa sociedade capitalista pode nos trazer são bastante desagradáveis. E eles começam antes, bem antes da gente nascer. Quando vimos ao mundo, já temos um lugar assentado nele, um lugar no desejo de um outro: de nossos pais, do estado, das instituições e estatísticas. Já decidem por nós muitas coisas sobre as quais não temos direito de opinar, e pelas quais teremos que lutar para poder fazer delas escolhas nossas.

Uma delas é que quando chegamos já temos um lugar na divisão sexual do mundo: nossa história social determinou que as pessoas fossem divididas em dois gêneros – homem ou mulher. E, assim, encaixaram você em um deles. Como tudo que é ideológico nesse mundo, essa divisão se coloca sob uma cobertura de “eterno, natural, permanente, imutável”: uma coisa que nasceu assim, permanecerá assim e continuará assim depois que você morrer. E, bem, olhando pro mundo, cheio de homens e mulheres, parece bem difícil dizer que não seja assim.


A divisão biológica entre machos e fêmeas


Para se apresentar como algo “natural”, e não como o que é: uma construção cultural e histórica, a divisão entre gêneros (que se coloca como divisão entre “sexos”, e vamos discutir essa diferença) tem que se colocar como pautada por questões que transcendem nossa vontade e nossa intervenção: ela se dá no corpo, está marcada por forças além de nosso controle já no nascimento. Vamos ver como, em 1933, Sigmund Freud, pai da psicanálise, discute essa determinação corporal em uma palestra intitulada “feminilidade”:

Ao deparar com um outro ser humano, a primeira distinção que fazem é “macho ou fêmea”, e estão habituados a fazer essa distinção com tranquila certeza. A ciência da anatomia partilha a sua certeza até determinado ponto e não muito além dele. Macho é o produto sexual masculino, o espermatozoide, e seu portador; fêmea é o óvulo e o organismo que o abriga. Nos dois sexos formaram-se órgãos que servem exclusivamente às funções sexuais, que provavelmente se desenvolveram em suas configurações diversas a partir da mesma disposição inata. Além disso, em ambos os sexos os demais órgãos, as formas do corpo e os tecidos, mostram influência pelo sexo, mas esta é inconstante e de medida variável, os chamados caracteres sexuais secundários. E a ciência também lhes diz algo que vai de encontro à suas expectativas, e que talvez se preste a confundir seus sentimentos. Ela lhes chama a atenção para o fato de que algumas partes do aparelho sexual masculino se acham igualmente no corpo da fêmea, ainda que em estado atrofiado, e o mesmo acontece no macho. Nisso ela vê sinais de bissexualidade, como se o indivíduo não fosse homem ou mulher, mas sempre as duas coisas, apenas um tanto mais de uma que da outra. Vocês são convidados a familiarizar-se com a ideia de que a proporção em que masculino e feminino se misturam, no ser individual, está sujeita a consideráveis variações. Mas como, excetuando casos raríssimos, apenas um tipo de produto sexual – óvulo ou sêmen – se acha presente numa pessoa, vocês devem ter dúvidas quanto ao significado decisivo desses elementos e concluir que o que constitui a masculinidade ou feminilidade é uma característica desconhecida, que a anatomia não pode apreender.


Assim, Freud institui na psicanálise, a partir das descobertas da fisiologia, uma dúvida sobre esse elemento dado como certo: mesmo no plano do somático, do corpo físico, a fronteira entre macho e fêmea não é tão nítida quanto faz crer nossa cultura. Nas décadas posteriores a esse escrito freudiano a ciência avançou a ponto de mostrar que tal território entre a polaridade macho/fêmea era muito maior ainda do que podia se supor naquela época. O critério genético de distinção sexual, determinado pelo par de cromossomos XY para homens ou XX para mulheres foi colocado à prova pelas chamadas síndromes que traziam diferentes combinações cromossômicas, como a de Klinefelter (XXY), Turner (XO), Triplo X (XXX), La Chapele (XX macho), Swyer (XY fêmea) entre outras (XXYY, XXXY, XXXXY, XYY), demonstrando que tal critério carrega em si uma boa dose de normatividade arbitrária, ainda que tais condições genéticas sejam relativamente incomuns. Além destas condições genéticas, a medicina foi avançando em sua compreensão de outras condições fisiológicas que colocam em xeque os padrões considerados “normais” para delimitar homens e mulheres, como hiperplasia adrenal congênita, síndrome de insensibilidade aos andrógenos, deficiência de 5 alfa redutase, entre muitas outras (chegando a mais de 30) que podem dar características distintas à genitália, gônadas (glândulas produtoras de gametas – testículos ou ovários) ou a caracteres sexuais secundários, como voz, massa muscular, produção de pelos etc.

Antigamente, com um conhecimento médico ainda restrito, a condição de uma genitália ambígua era referida como hermafroditismo, termo ainda utilizado popularmente. Contudo, tal termo traz em si uma forte conotação pejorativa e uma carga de preconceitos e concepções equivocadas, e foi substituído tanto no jargão médico como entre as próprias pessoas pertencentes a esse segmento pelo termo intersexo ou DSD (Diferenças do Desenvolvimento Sexual). Entre as pessoas intersexo há quem hoje procure retomar o termo hermafrodita e ressignificá-lo, dando a ele um caráter distinto e mesmo como uma forma de combater o preconceito contra as pessoas intersexo, talvez de forma similar ao que se procura fazer com termos como "bicha", "viado" ou "sapatão". É difícil hoje estimar exatamente a frequência de pessoas intersexo na população, mesmo porque não há um consenso sobre quais condições fisiológicas são consideradas intersexo, já que muitas diferenças genéticas não apresentam diferenças no fenótipo (aparência externa) ou muitas condições de DSD se manifestam apenas na puberdade. Contudo, os dados que apontam para pessoas nascidas com uma genitália distinta da divisão padrão entre homem e mulher atestam um a cada 1500 ou 2000 nascimentos, o que mostra que não é uma condição tão rara quanto se costuma pensar. (Quem quiser saber um pouco mais pode ler aqui).

A primeira conclusão a que isso nos leva é que a divisão anatômica/fisiológica (ou seja, de “sexo”, tomando essa palavra como a parte biológica da divisão de gênero) para definir a binariedade homem/mulher é um mito. Pode-se dizer que a frequência de pessoas intersexo é muito baixa para ser considerada mais do que uma exceção, mas a realidade não é essa. Uma pessoa em cada 1500 não se encaixa sequer nos critérios biológicos de homem/mulher, e ignorar esse fato é uma violência contra essas pessoas. O que nos leva à segunda questão: a binariedade leva a mutilações físicas e danos psicológicos profundos cometidos contra as pessoas intersexo. Ainda hoje, o procedimento médico padrão é o de uma intervenção cirúrgica e hormonal em estágio extremamente precoce e de forma totalmente não consentida sobre essas pessoas (pois, afinal, como um bebê vai ter qualquer consentimento), nos quais médicos e pais “decidem” o sexo, e portanto o gênero, no qual essa criança será forçosamente recebida e enquadrada no mundo. A questão é que justamente por não haver nenhuma opção reconhecida em nossa sociedade por fora da binariedade homem/mulher, se afirma que o “menos traumático” para a criança intersexo é de ser sociabilizada de acordo com um gênero decidido à sua revelia, e que pode não ser condizente com a identidade de gênero que essa criança irá assumir posteriormente. E se cria um espectro de medo e vergonha para essa criança em relação à sua condição intersexo, que, se revelada aos amigos, professores, etc. poderia levar ao preconceito e estigmatização. Se ignora que a violência cometida por esses pais e médicos é a de impôr um corpo e um padrão a essa criança, e isso é induzido pela ideologia da binariedade de gênero.


O gênero para além do biológico


Ao falar das pessoas intersexo discutimos como o dado fisiológico é insuficiente para determinar o que são homens e mulheres, mas também pudemos ver que há algo que está além do biológico e que é tão imperativo em nossa sociedade que faz com que médicos e pais façam intervenções cirúrgicas e hormonais nas crianças para se adequar a esses padrões. Ou seja, em nossa sociedade somos obrigados a ser homens ou mulheres. Há apenas duas opções, e é a isso que chamamos binariedade. O que queremos apontar é que se chamamos de sexo essa característica fisiológica, o gênero (homem ou mulher, masculino ou feminino) está além disso, e envolve um lugar social em que a pessoa deve se inserir. Para iniciar essa discussão, voltemos à palestra de Freud, em 1933, quando ele passa do biológico ao psicológico na tentativa de questionar a feminilidade:

Estamos habituados a empregar “masculino” e “feminino” também como atributos psíquicos, e, da mesma forma, transpusemos a noção de bissexualidade para a vida psíquica. Dizemos, então, que uma pessoa, seja homem ou mulher, comporta-se de maneira masculina num ponto, e feminina em outro. Mas logo vocês verão que isso apenas significa ceder à anatomia e à convenção. Não podem dar nenhum conteúdo novo aos conceitos “masculino” e “feminino”. A distinção não é psicológica; quando falam em “masculino”, normalmente querem dizer “ativo”, e quando falam em “feminino”, “passivo”. É certo que existe essa relação. [em seguida Freud fala de analogias ao papel “ativo/passivo” de espermatozoides e óvulos, do ato sexual ou de espécies animais, analogias que constesta e que nos parecem tão inférteis que não as transcreveremos] Mesmo no âmbito da vida sexual humana vocês logo percebem como é insatisfatório identificar a conduta masculina com a atividade e a feminina com a passividade. Em todo sentido a mãe é ativa em relação ao filho, mesmo do ato de mamar podemos dizer tanto que ela dá de mamar à criança como que deixa a criança mamar. Quanto mais nos afastarmos do estrito âmbito sexual, mais nítido ficará esse “erro de superposição”

Assim, Freud conclui que é arbitrário atribuir às mulheres características como passividade e docilidade e atividade e agressividade aos homens como um dado inerente de sua psicologia. Também a filósofa Simone de Beauvoir, em seu profundo tratado “O Segundo Sexo”, se pergunta sobre o que determina o feminino e como foi que, em algum momento da história, o homem se impôs como dominador e instituiu o patriarcado. Procurando seus fundamentos na filosofia existencialista, ela vê em tempos primordiais a divisão do trabalho entre a manutenção da prole e a coleta para mulheres, e a caça para os homens; sendo esta mais exigente em termos de transcendência, já que o homem precisa de instrumentos, ferramentas, inventividade para poder sobrepujar obstáculos naturais, ela vê nisso um sentido onde a Existência transcende a Vida, e nisso um significado que o homem pode atribuir a si mesmo e a mulher não, já que sua função entregue à espécie a prendia excessivamente à prole. Ainda que excessivamente idealista, a meu ver, a explicação de Simone conflui com o questionamento de Freud no fundamental, e também com a concepção materialista e dialética: não há uma essência masculina ou feminina, seja essa fisiológica ou psíquica – as diferenças que instituímos aos papéis de gênero são criações culturais e históricas, fruto das circunstâncias.


A natureza, a técnica, o gênero


Há na relação entre cultura, história e natureza uma questão fundamental que o marxismo propõe: a forma como o ser humano produz e reproduz sua vida é essencial para sua própria percepção do mundo. Desde as concepções anímicas, que atribuíam a deuses representados pelas forças da natureza os eventos naturais, e que foram deixando de prevalecer conforma se aprofundava nossa compreensão de como operam as forças naturais para criar tais eventos, nós mudamos muito nossa concepção de mundo. É verdade que em determinado momento histórico a divisão sexual do trabalho correspondeu a uma necessidade: a maior força física que em geral os homens possuíam os tornavam mais aptos à caça e a proteção; a capacidade de gestar e amamentar das mulheres as tornavam mais aptas a cuidar da prole e das tarefas correlatas. Mas hoje não caçamos, nem dependemos da força física para sobreviver. Não é necessário, do ponto de vista físico, um desgaste tão grande do corpo feminino para o parto ou o cuidado com as crianças; claro que ainda existe essa questão, mas o nível de socialização que podemos ter para todo tipo de tarefas que ainda hoje são atribuídas socialmente às mulheres supera em muito a visão ideológica estreita que perdura para os papéis de gênero.

Assim, conforme avança nosso domínio sobre as forças naturais e nossas técnicas de produção e reprodução da vida, torna-se cada vez mais nítido que a manutenção de papéis estritos para homens e mulheres, para o patriarcado, as diferenças salariais, os papéis no casamento, na aproximação sexual, no trabalho, no cuidado com os filhos, na vida afetiva, enfim, em tudo, é muito mais uma questão fundamental para a manutenção de nossa sociedade de exploração e miséria do que uma necessidade material em que é fundamental uma divisão do trabalho entre os sexos.

O mesmo podemos pensar em relação às características de nosso corpo. O desenvolvimento da medicina e da biologia tornam nosso controle sobre o próprio corpo muito mais preciso. Hoje é possível para uma pessoa trans - pelo menos do ponto de vista da técnica, pois o acesso a isso é uma questão política ainda muito mais atrasada - realizar intervenções em seu corpo para que esteja de acordo com sua identidade de gênero: cirurgias e TH (Terapia Hormonal) são apenas as mais conhecidas dessas intervenções. Hoje em dia estamos próximos inclusive da possibilidade da implantação de ovários e útero em mulheres trans.


A luta por liberdade dessas amarras


Não se reconhecer no gênero que lhe foi atribuído no seu nascimento, ou seja, ser uma pessoa trans, se configura como uma afronta às necessidades do status quo de manutenção dessa divisão estrita entre os papéis de gênero. Sexualidade (ser hetero, homo, bi, pan ou assexual) e gênero, ainda que sejam questões com muitas particularidades e distinções fundamentais, se permeiam enormemente nesse momento, pois o ódio e intolerância que ambas suscitam é justamente o de subverter essas regras estabelecidas a ferro e a fogo em nossa sociedade sobre como entendemos nossa identidade e nosso comportamento. As resistências para questionarmos os papéis de sexualidade e gênero são imensas: não à toa que o mesmo Freud que fez os questionamentos que colocamos acima estabelecia o feminino como “o continente obscuro” da psicanálise e permanecia, tanto em sua vida privada como na maior parte de suas concepções teóricas, como um perfeito patriarca misógino representante de seu gênero e sua classe social. Mesmo Simone de Bauvoir, que como mulher tinha muito menos interesses na manutenção desses papéis e chegou mesmo a desafiar padrões tão arraigados como o casamento monogâmico, não pôde escapar de reproduzir em suas relações amorosas muitos desses padrões sociais. Isso, longe de evidenciar uma mera “hipocrisia” de questionadores como Freud ou Beauvoir, explicita um fato fundamental que nunca podemos perder de vista: ninguém pode ser livre sozinho. A ideia da liberdade individual é uma das mais “marteladas” em nossa cabeça nessa sociedade capitalista e liberal, e ela é um engodo feito para melhor nos dominar.

Assim como a ideia de liberdade individual, as amarras da sexualidade heteronormativa, do patriarcado, da binariedade de gênero, são enfiadas goela abaixo das crianças desde a gestação. A família, a escola, a igreja e o estado são fábricas de neurose, porque enterram nossos desejos subjetivos sob uma espessa camada de proibições e normas sociais. As teorias procuram justificá-las de formas absurdas, como quando Freud assenta sua teoria (para justificar seus próprios privilégios, ainda que de forma inconsciente) sobre a ideia de que a repressão sexual é a base da cultura e da civilização. A ciência e o conhecimento, que também para atingir melhor seus fins ideológicos querem se apresentar como "supraideológicos" ou "neutros" (coisa que não existe), sempre se prestaram ao papel de legitimar os papéis sociais, e isso não é uma exclusividade de Freud. O conceito de loucura, por exemplo, sempre serviu em maior ou menor grau como uma forma de controle social e político - em alguns momentos de forma muitíssimo explícita como na URSS stalinista ou nos EUA dos anos 1960. A própria psicanálise, ao lado da psiquiatria, tristemente continuam a cumprir papel semelhante em relação à transexualidade, classificando-a como uma doença, seja sob o rótulo de transexualismo, disforia de gênero, psicose ou qualquer outro termo ou conceito que seja, assim como haviam feito antes em relação à homossexualidade. Claro que, sejamos justos, nem todos os profissionais dessas áreas cumprem esse papel, e, aliás, são aliados de suma importância aqueles que combatem essa visão hegemônica. Também cabe a nós não sermos maniqueístas em nossas avaliações, e sabermos por onde reivindicar e onde combater cada discussão e concepção que se apresente, como é o caso de Freud, que em tantos aspectos ajudou a discussão sobre a sexualidade a dar passos colossais em relação ao pensamento hegemônico de sua época, apesar de suas noções conservadoras em outros aspectos.

Conforme vislumbramos que as coisas não foram sempre assim, nem precisam ser, a luta por liberdade se torna mais acirrada, mais sangrenta e mais explícita. Sempre existiram pessoas intersexo, homossexuais, lésbicas, trans, bissexuais. Mas às vezes as grades eram tão firmes e bem construídas que eles sequer as viam, ou se viam não conseguiam enfrentar seu poder de contenção. Era uma luta surda que se desenvolvia de forma solitária e quase sempre invisível socialmente. Mas nem por isso menos mortal. Quantos morreram com sua sexualidade guardada, ou se manifestando de forma clandestina? Quantos assassinatos e suicídios estão nessa conta? Quantos procuraram em vão entender o que acontecia consigo, mas sem poder se enxergar em qualquer lugar de suas sociedades apenas amargaram uma dor impossível de se manifestar como luta social. Quando olhamos para o lado e enxergamos semelhantes, isso nos fortalece. Mas conforme saímos dos armários, a violenta reação neurótica de uma sociedade explode contra nós. 

Um exemplo disso é a triste estatística de que o Brasil é o país que mais mata transexuais no mundo; e a estatística complementar feita pelo site pornográfico RedTube de que é o país que mais procura por vídeos pornográficos de travestis. A contradição aqui é apenas aparente: o desejo sexual reprimido sob a forma da binariedade e da heteronormatividade alimenta uma neurose que explode como violência, um sintoma social: matar o outro é uma forma de tentar matar em si mesmo o desejo proibido. Esse desejo pode se expressar apenas na clandestinidade da pornografia, na solidão jamais confessa de assistir os outros fazendo aquilo que você gostaria mais não pode. A liberdade de uma travesti que anda na rua expressando aquilo que é e deseja ser, pisoteando a clausura apertada da binariedade, é o que provoca a ira de um transfóbico. A fobia é o medo, e o medo se expressa como ódio. Ódio de quem é aquilo que você não ousa ser; medo de quem desafia os padrões aos quais você se apega com tanto afinco. Padrões que são muito mais frágeis do que parecem, e por isso mesmo precisam ser defendidos com tanto ódio e violência, pois podem cair por terra a qualquer momento. As histórias que mostram esse desejo recalcado estão a todo momento aparecendo diante de nós: ex-pastores que pregavam a “cura gay” de repente casam-se com um homem; ou dois presos americanos, condenados por assassinatos homofóbicos, e que recentemente tornaram-se o primeiro casal a oficializar um matrimônio gay no sistema penitenciário americano.


Queimando o armário



Escrever esse texto é, para mim, parte de entender essas prisões e lutar contra elas. Mas não como espectador, e sim como alguém que está se debatendo e tentando se livrar de grilhões. Como disse em outro texto, desde pequeno não me identifiquei jamais com o papel de gênero que me foi atribuído. Não me sinto homem, pelo menos em uns 70% do que esperam de mim como homem. Contudo, em uma sociedade como a nossa, não é somente a esse tipo de comportamento que não me adequo. Não desejo nenhum desses comportamentos. Nem me sinto como uma mulher, apesar de sempre ter, de forma mais ou menos explícita, me identificado mais com diversas questões do papel feminino do que do masculino. Mas esse último período me fez refletir sobre uma concepção de transgeneridade que estava muito arraigada em mim: a de que ela surge como algo “natural”, no sentido de que é um afeto, um desejo, um impulso incontrolável, e não algo que é também parte de uma construção consciente. Alguém designado como homem socialmente simplesmente sente que não é, e torna isso uma afirmação diante do mundo; e vice-versa. E na verdade muitas vezes as coisas acontecem assim, basta olharmos para as crianças trans, que antes de conseguirem escrever ou compreender ideias abstratas já têm perfeita compreensão de seu gênero, contrário àquele que lhe foi atribuído no nascimento. Mas isso não quer dizer que as coisas ocorrem sempre assim: as subjetividades caminham por formas muito diversas.

A pergunta que muitos têm me feito nesse período de investigação, eu também me fiz diversas vezes: não é muito “racional” esse seu questionamento? Sim, ele é. Mas nem por isso eu me sinto menos bonitx ou confortável quanto estou de vestido, maquiagem, unhas pintadas. Nem por isso me sinto menos à vontade ou identificado perto de mulheres do que de homens, e há muitos anos todas minhas amigas íntimas são mulheres. Me sinto preso, desconfortável, insultado até em situações masculinas, e me desinteresso profundamente por assuntos e comportamentos masculinos (como também por muitos femininos). O meu questionamento não poderia deixar de ser racional, como todos são. Temos ainda um vício, profundamente cartesiano e positivista, de separar as coisas em racionais e emocionais. Isso é uma merda. 

Eu sempre me senti desconfortável e com ódio desse mundo; foi só um questionamento racional, uma investigação teórica além de um comprometimento militante e afetivo, que me fez entender que esse ódio tinha muito mais vigor, sentido, profundidade quando recebeu o nome e a forma de comunismo, de marxismo. Penso em meu desconforto com meu papel de gênero de maneira análoga: sempre me incomodou profundamente; e pela primeira vez sinto encontrar algo que se encaixa como uma luva nesse desconforto, que dá nome e sentido a isso. É esse o lugar da transexualidade não-binária em minha subjetividade: estou me encontrando ao não me identificar como homem, nem como mulher. Sei que há algo de abstrato nisso, na medida em que as pessoas – pelo menos do jeito que minha aparência física é hoje – continuarão a me identificar como homem. Ler esse texto me ajudou bastante a pensar sobre isso, assim como conversar com pessoas maravilhosas não-binárias que conheci. E sei que serei, como já fui, hostilizado até mesmo por pessoas LGBT que, apesar de lutarem por liberdade, muitas vezes continuam, como todos nós, apegadas às suas caixinhas, às prisões nas quais encontram segurança para afirmar sua identidade. Bom, mas é isso que quis dizer quando afirmei que ninguém se torna livre sozinho; as jaulas do gênero vão continuar me perseguindo, como continuam com cada pessoa trans e mesmo com as cis desse mundo (esse texto fala bem sobre isso). Procuro o caminho para a liberdade em uma luta contínua, que é subjetiva, e política, e ao lado de pessoas que aprendo cada dia mais a amar, respeitar e admirar profundamente. Ser tratado como louco é algo a que já me habituei; e todos aqueles que buscam por liberdade em um mundo feito de jaulas devem aprender que não há outro caminho.