quinta-feira, janeiro 27, 2022

 "Às vezes, pra ter nascido preto e pobre nesse país era melhor nem ter nascido."

Essa sua frase me assombra. Foi a única vez que conversamos de verdade sobre como esse mundo pesou sobre você, que sei que foi muito mais dor do que posso medir. E acho que talvez você nunca tenha dito pra ninguém desse jeito. Esse mundo é um lixo, e você sabia que eu também sabia disso, mesmo sem ser preto e pobre. Eu odiava ele com todas as minhas forças por estar fazendo aquilo com você, e você sabia. Não tudo, não até o fim, porque a gente é proibido até de dizer. Eu engulo minhas dores hoje como sei que você engoliu tanto, como aguentou calada para sobreviver. 

Eu segurei sua mão e a gente chorou. Que calvário esses assassinos fizeram você passar. Por mais alguns milhares de dólares de lucro. É isso que sua morte foi para eles. 

Você não queria morrer. Eu vi seu medo. Sua dor. Você não queria morrer... queria outra vida. Como Lima Barreto.

Já faz um mês e as palavras ainda me entalam nos dedos, na garganta. Como as lágrimas nos olhos. É um ódio e uma tristeza incomensuráveis, que tenho medo de sentir porque acho que vou explodir ou desmontar.

Toda a minha impotência se fez sentir enquanto eu assisti você definhar, e ser assassinada. Como eu disse um dia, o que eles fazem é levar a tanto sofrimento que a morte vem com cara de alívio. Foi o que outros sentiram. Eu não. Não estou aliviado. Estou puto. Destruído.

Não pude te ver. Me corrói pensar em você lá sozinha, internada como disse tantas vezes que não queria mais. Forçada a "sobreviver", com aqueles cínicos te largando naquele antro, te injetando com lixo. Mais um leito a desocupar em breve. Um número. Sem ninguém poder entrar pra te ver. As "medidas sanitárias" que também tiveram seu quinhão. Mais veneno nas suas veias, para sua própria proteção. E eu vendo, como um pateta. Sem agir, sem falar, sem nada. 

As histórias de horror que você contou do hospital, e que só eu ouvi. Você viu as pessoas sendo torturadas, fugindo, morrendo. O ódio que você aprendeu a ter daquele lugar, a descrença nas promessas de merda que te fizeram. A rejeição ao assassinato que queriam te acelerar com a maldita intubação. 

"Ninguém se cura com esse tratamento". Sim, eu só podia concordar. Porque você já sabia que eu sabia disso. Você estava já ciente, mas não conformada. Aqueles vermes que te comiam viva em busca do último centavo. "Não gasta dinheiro com isso", que dor de ouvir suas palavras resignadas frente a meu ridículo esforço, patético, tentando parar a máquina de morte que já tinha feito seu trabalho.

Eu queria ter lutado mais. Me desculpe... Minhas mãos são tão pequenas. Queria te abraçar e te levar pra longe dali, como quis desde o começo. Que ódio de pensar no que te fizeram. Que ódio de pensar no lugar que esse mundo porco te reservou.  

Eu vivo aqui, mas me sinto mais morto aí. Acho que você tem razão: era melhor nem ter nascido.

Não há descanso em paz.