segunda-feira, maio 19, 2014

A Mulher, o Estado e a Revolução Permanente



O livro “Mulher, Estado e Revolução”, da historiadora americana Wendy Goldman, consegue traçar com grande precisão as características fundamentais na vida das mulheres no período pós-revolução de outubro na Rússia. Estabelecendo um panorama entre a vida concreta das mulheres, seus problemas cotidianos, e os debates que se desenvolviam entre intelectuais, juristas, membros do partido bolchevique, e delegadas(os) dos Sovietes, Goldman consegue demonstrar de forma aguda e viva as imensas dificuldades enfrentadas pelo primeiro Estado Operário na história da humanidade para traduzir em realidade concreta os princípios, a estratégia e o programa do socialismo científico em um estado transitório rumo ao socialismo.
As dificuldades – muitas vezes insuperáveis dentro daquele contexto estrito – eram provenientes do fato de que, como afirma Leon Trotski: “O poder público pode desempenhar um papel gigantesco, seja reacionário ou progressivo, segundo a classe em cujas mãos caia. Mas, apesar de tudo, o Estado será sempre uma arma de ordem superestrutural. A passagem do poder das mãos do tzarismo e da burguesia às mãos do proletariado não cancela os processos nem anula as leis da economia mundial.”[1] Ou seja, a economia (a base ou estrutura sobre a qual se ergue a superestrutura do Estado) em sua escala mundial permanece sendo um fator decisivo para considerar os avanços e retrocessos políticos da URSS.
Assim, para compreendermos profundamente a questão dos avanços e retrocessos nas relações com a família, os direitos das mulheres e o Estado na URSS, é indispensável pensarmos na teoria da revolução permanente de Trotski, que elucida as causas desses fenômenos sociais. Tomaremos aqui os três aspectos nos quais ele mesmo dividiu sua teoria.

Da democracia ao socialismo

O primeiro aspecto da teoria da revolução permanente diz respeito a como se dá a passagem da revolução democrática à revolução socialista. Por “revolução democrática”, poderíamos – grosso modo – entender as transformações estruturais da sociedade que foram feitas, em países como a França, Inglaterra ou EUA, pela burguesia em combate aberto contra a velha classe dominante: a nobreza monárquica. Questões como a reforma agrária, a independência nacional e o direito ao voto são demandas que poderíamos chamar de “democrático-burguesas”, pois são típicas de um regime democrático – em oposição ao monárquico – que foi realizado sob a direção da burguesia, e no qual ela se estabeleceu como a classe dominante socialmente, através dos estados nacionais modernos que existem até hoje.
Originalmente, Marx e Engels, ao preverem a dinâmica da passagem do capitalismo ao socialismo, julgaram que a revolução aconteceria primeiro em países de desenvolvimento capitalista avançado, ou seja, em que a revolução democrático-burguesa já tivesse ocorrido e, a partir disso, a classe trabalhadora tivesse se tornado numericamente maior, e as forças produtivas estivessem mais avançadas. Esta visão partia de entender que a burguesia, no começo, era uma classe revolucionária em oposição à nobreza, e que sua dominação política permitia o desenvolvimento social e técnico da sociedade, essencial para criar as bases materiais para o socialismo. Mas com o tempo o papel social da burguesia mudou drasticamente, e já nas revoluções de 1848, que se tornaram conhecidas como a “primavera dos povos”, Marx e Engels viram que já havia passado o momento histórico em que a burguesia poderia cumprir um papel revolucionário: chegava um momento em que, com medo de que sua aliança com os trabalhadores contra a nobreza saísse do controle e eles mesmos fossem “atropelados” pela organização dos trabalhadores, a burguesia preferia se aliar com a nobreza para conter o movimento revolucionário.
Foi exatamente isso que aconteceu, por exemplo, na revolução russa de 1905. A burguesia cumpriu um papel diretamente contra-revolucionário, com medo dos trabalhadores e de sua crescente organização, que já contava então com um forte partido, o POSDR (Partido Operário Social-Democrata Russo, que se dividiu em dois: bolcheviques e mencheviques), e que organizou conselhos que reuniam os trabalhadores para se organizar politicamente, os Sovietes. Nessa revolução, que foi derrotada, Trotski atuou ativamente, sendo eleito presidente do Soviete de Petrogrado. Trotski viu que mesmo que a Rússia não tivesse passado por uma revolução democrático-burguesa, era impossível que a burguesia se colocasse como cabeça de uma revolução para derrubar a nobreza e o tzarismo. Ela preferia se aliar a estas classes reacionárias contra os trabalhadores, por medo. Por isso, disse que a revolução democrático-burguesa na Rússia só poderia ser feita pelos trabalhadores, de forma independente da burguesia. Nisso, ele e Lenin concordavam, diferente dos Mencheviques, que ainda achavam que na Rússia era preciso ter um período de democracia burguesa antes que o país estivesse preparado para uma revolução operária e socialista.
Mas Trotski entendeu que, uma vez que o poder fosse tomado pelos trabalhadores, eles não se contentariam em fazer apenas reformas democráticas. Afinal, numa sociedade “democrática” permanecia a propriedade privada, e eles continuavam sendo explorados. Por isso, o caráter “permanente” da revolução consistia em que os trabalhadores avançariam de medidas democráticas a socialistas. Nas palavras de Trotski: “Se a opinião tradicional sustentava que o caminho da ditadura do proletariado passava por um prolongado período de democracia, a teoria da revolução permanente vinha proclamar que, nos países atrasados, o caminho da democracia passava pela ditadura do proletariado. Com isso, a democracia deixava de ser um regime de valor intrínseco para várias décadas e se convertia no prelúdio imediato da revolução socialista, unidas ambas por um nexo contínuo. Entre a revolução democrática e a transformação socialista da sociedade se estabelecia, portanto, um ritmo revolucionário permanente.”[2]
No livro de Goldman isso surge claramente nos debates a respeito da família e de seu papel social. Em primeiro lugar, o Código Familiar de 1918 estabelecia reformas que estavam ainda nos marcos democráticos, mas que mesmo assim eram mais radicais do que nos países capitalistas mais avançados: a facilidade para se obter o divórcio, os direitos políticos plenos das mulheres trabalhadoras e camponesas nos sovietes, a licença a maternidade, o direito à pensão – todas essas eram medidas democráticas, mas que já colocavam a nascente república operária como a mais avançada democracia do mundo. No entanto, as discussões sobre o definhamento da família e a necessidade do Estado assumir o papel econômico que esta desempenha apontam para um horizonte que está além da sociedade capitalista burguesa. Como aponta Goldman, os legisladores e juristas mais avançados, como Goikhbarg, Krilenko, Pashukanis, todos tinham a concepção de que o Estado e as leis deveriam definhar, pois esses eram necessários para regulamentar fundamentalmente os conflitos econômicos e sociais que desapareceriam em uma sociedade socialista. Durante o comunismo de guerra, os refeitórios coletivos, por exemplo, foram um passo no sentido de absorver as tarefas econômicas da família. Mas havia um obstáculo para que isso se desenvolvesse até o fim...

O caráter internacional da revolução

O terceiro aspecto da teoria da revolução permanente trata justamente desse obstáculo, que, como apontamos antes em uma citação de Trotski, se refere aos limites entre poder estatal e economia. Marx e Engels previam que a revolução aconteceria primeiro em um país capitalista avançado, justamente porque nesses países as bases materiais para a socialização da produção e a distribuição da riqueza estariam muito mais desenvolvidas. Mas, como o próprio Marx aponta, a sociedade capitalista, ao se estabelecer em todo o globo a partir da conquista imperialista de territórios e mercados, cria um mundo “à sua imagem e semelhança”, com uma divisão internacional do trabalho em que cada país tem um papel determinado, de acordo com os interesses da burguesia. Se no começo a burguesia importava aos países industrializados matéria prima e exportava produtos industrializados, com o tempo esse mecanismo ficou mais complexo. Lenin, em seu livro “Imperialismo: fase superior do capitalismo”, mostra como a burguesia passa a exportar não apenas produtos, mas também capital. Na Rússia, por exemplo, a indústria se desenvolveu muito rapidamente principalmente com o capital importado da burguesia francesa e gerido pelo tzarismo em parceria com a burguesia nacional. Por isso, a classe trabalhadora cresceu muito em pouco tempo; mas a burguesia nem tanto, já que o capital vinha de fora. Isso fez com que o país tivesse condições políticas excepcionalmente favoráveis para a revolução. Mas isso não mudava o fato de que, comparada à Alemanha ou Inglaterra, por exemplo, a indústria russa fosse extremamente atrasada, com cerca de 90% do país vivendo no campo.
Deste aspecto, somado aos longos anos da Primeira Guerra Mundial, aos anos da Guerra Civil contra os contrarrevolucionários, e ao rigoroso inverno de 1921, vieram as imensas dificuldades materiais em avançar na distribuição da riqueza. A imensa miséria descrita por Goldman, que levava às crianças de rua (besprizornost); ao desemprego feminino; às dificuldades do Estado em criar creches, lares infantis, restaurantes e lavanderias; às imensas dificuldades para o pagamento de pensão e a independência econômica das mulheres; às dificuldades implicadas no divórcio dos camponeses pobres que levavam à divisão da terra (dvor).
Trotski, assim como Lenin e todo o Partido Bolchevique até 1924, sempre ressaltaram a impossibilidade de que a revolução russa prosperasse se não fosse seguida de outras revoluções – particularmente em países mais desenvolvidos como a Alemanha, que teve grandes oportunidades revolucionárias perdidas em 1919, 1921, 1923... Para avançar rumo ao socialismo, é necessário desenvolver as forças produtivas. Dessa dependência da economia mundial, no entanto, como afirma Trotski “(...) não se deduz, nem muito menos que isso, a conclusão de que a Revolução de Outubro tenha sido historicamente ‘ilegítima’, conclusão que é de um filisteísmo vergonhoso. A conquista do poder pelo proletariado internacional não podia nem pode ser um ato simultâneo em todos os países. A superestrutura – e a revolução entra na categoria das ‘superestruturas’ – tem sua dialética própria, a qual penetra autoritariamente no processo econômico mundial, mas de forma alguma suprime, suas leis mais profundas. A Revolução de Outubro foi ‘legítima’, quando considerada como primeira etapa da revolução mundial, que necessariamente deve ser obra de várias décadas.”
Trotski afirma essa concepção em contraposição à visão stalinista de que na Rússia já existia o socialismo, e sua teoria do “socialismo em um só país”. O que havia na Rússia, como o livro de Goldman demonstra de maneira irrefutável, estava muito longe de ser o socialismo: era um Estado operário tentando, com seus parcos recursos materiais, avançar rumo a medidas de caráter socialista, mas, em primeiro lugar, para conseguir atingir os níveis de vida dos países capitalistas avançados. A profunda contradição entre os recursos econômicos precários e as tarefas socialistas é o que salta aos olhos em todo o livro de Goldman.

A mudança permanente dentro da revolução

                O que Trotski coloca como o segundo aspecto da teoria da revolução permanente é aquilo que mais se destaca na obra de Goldman: “Ao longo de um período de duração indefinida e de uma luta interna constante, vão se transformando todas as relações sociais. A sociedade sofre um processo de metamorfose. E nesse processo de transformação cada nova etapa é consequência direta da anterior. Esse processo conserva forçosamente um caráter político, ou, o que é o mesmo, se desenvolve através do choque entre os distintos grupos da sociedade em transformação. (...) As revoluções na economia, da técnica, da ciência, da família, dos costumes se desenvolvem em uma complexa ação recíproca que não permite à sociedade alcançar o equilíbrio.”
                Esta colocação de Trotski sintetiza com perfeição a dinâmica apontada por Goldman em seu livro. Os choques que ocorrem nos debates a respeito, por exemplo, do Código da Família de 1926, são fruto direto dos distintos interesses e contradições existentes no seio da sociedade russa. Enquanto as mulheres camponesas propunham medidas punitivas para o comportamento sexual promíscuo dos homens, como forma de preservar seus interesses econômicos, alguns defendiam a liberdade cada vez maior nas relações. O fato de que os juristas propunham medidas educativas para tentar combater o besprizornost como resultado de sua compreensão marxista de que sua causa era fundamentada em uma condição de pobreza, se chocava com a própria escassez de recursos do Estado para poder fazer com que essas leis tivessem validade material. O resultado que o stalinismo deu a esse conflito foi o fim das Komones, que aplicavam medidas pedagógicas, e o envio das crianças infratoras às prisões, restaurando a lógica punitiva que oculta as causas sociais da criminalidade, exatamente como nos países capitalistas.
O conflito entre os distintos grupos sociais foi incessante, sem que se alcançasse um equilíbrio, como aponta Trotski, desde a implementação do Código Familiar de 1918 até o retrocesso stalinista do Código de 1936. Nesse aspecto encontramos um choque frontal com a concepção stalinista, para a qual a conquista do poder representa 90% da construção socialista. Na concepção de Trotski, que se demonstra correta a partir da pesquisa de Goldman, “a conquista do poder pelo proletariado não significa o coroamento da revolução, mas simplesmente seu início.”, pois o Estado, como ele disse, é apenas um instrumento “superestrutural”. Para construir uma sociedade socialista é necessário criar bases materiais, econômicas, e inclusive ideológicas, propagando a educação por toda a população. Isso, claramente, não pode ser feito senão em algumas décadas.
                Nesse sentido, a própria Wendy Goldman aponta, na sua conclusão, que “As raízes da reversão do direito familiar datam dos anos 1920. O legado do subdesenvolvimento russo, a falta de recursos estatais, o peso da economia, da sociedade e das tradições camponesas atrasadas, a devastação da base industrial durante o período de guerra, o desemprego, a fome e a pobreza foram fatores que minaram gravemente a primeira visão socialista. Os besprizorniki cumpriram um papel crucial em obrigar o Estado, de decreto em decreto, a abandonar a criação coletiva das crianças. Muitas das sugestões oferecidas pelas mulheres e camponesas na década de 1920 – limitar o divórcio, garantir o cumprimento da responsabilidade pela pensão alimentícia, deter a promiscuidade masculina – foram finalmente adotadas pela lei e política familiar stalinistas. A dura retórica da responsabilidade familiar encontrou sem dúvida um público agradecido.”
                Assim, podemos ver que existe uma base material que fundamenta o retrocesso legal e ideológico capitaneado pelo stalinismo. Em momentos anteriores, como na implementação da NEP, por exemplo, o Estado soviético foi obrigado a dar passos atrás politicamente devido à escassez de bases materiais para avançar politicamente. Contudo, a diferença fundamental é que nesses momentos esses passos atrás se apresentavam tal como eram: recuos táticos impostos pelas condições materiais, e eram apresentados assim. Já na era stalinista, a burocracia soviética implementou recuos decisivos, mas sempre os apresentando como passos adiante, como a “consolidação do socialismo”, formando uma ideologia oficial do Estado que era proibido contestar. Isso é nítido, por exemplo, na proibição do aborto e na proclamação de que todos tinham condições de criar seus filhos “de forma socialista”. Para poder assegurar seus recuos, Stalin sempre procurou se apoiar nos setores mais conservadores socialmente, como nos camponeses ricos ou nos privilegiados membros da burocracia estatal.
                Por estes motivos, parece equivocada a análise de Goldman quando aponta que “Finalmente, ainda que as condições materiais tenham cumprido um papel fundamental em minar a visão dos anos 1920, não foram em última instância responsáveis pela sua desaparição. (...) A reversão ideológica na década de 1930 foi essencialmente política não de natureza econômica ou material, e levava a marca da política stalinista em outras áreas.”
                Se é um fato que o retrocesso ideológico foi conduzido diretamente pelo burocracia stalinista encrustrada no Estado, a própria análise de Goldman ao longo de todo o livro demonstra que os obstáculos materiais que a revolução enfrentou – e que foram imensamente agravados pelo fato da revolução não ter triunfado em outros países mais desenvolvidos – serviram como pretexto e justificativa para inúmeros retrocessos. Seria impossível para a burocracia stalinista consolidar os retrocessos políticos se não estivesse assentada sobre essa sólida base material. Além disso, como afirma Trotski em suas “teses sobre revolução e contra-revolução”: “As conquistas obtidas na luta não se correspondem, e na natureza das coisas não podem diretamente se corresponder, às expectativas das massas atrasadas que têm acordado para a vida política pela primeira vez em grande número no curso da revolução. A desilusão destas massas, seu retorno à rotina e a futilidade, é parte integrante do período pós-revolucionário tanto como a passagem ao campo da ‘lei e da ordem’ daquelas classes ou setores de classe ‘satisfeitos’, que haviam participado na revolução.” Esse fator, como aponta Goldman no trecho citado acima, foi um ponto de apoio fundamental para fazer de muitas mulheres um “público agradecido” em relação aos retrocessos.

Além disso, a burocracia barganhava com o desespero das mulheres que não conseguiam atender suas necessidades materiais, como afirma Goldman: “A lei de 1936 oferecia às mulheres uma barganha implícita: ela ampliava tanto a responsabilidade do Estado como a do homem pela família, mas em troca ela exigia que as mulheres assumissem o duplo fardo do trabalho e da maternidade. A ideia de que o Estado assumiria as funções da família foi abandonada”. Assim, a relativa separação que Goldman faz entre as causas materiais e as movimentações políticas da burocracia não se sustenta, pois é do isolamento da revolução e da miséria material que floresceu a burocracia, que arrancou com mãos de ferro o poder político das mãos dos trabalhadores e esmagou os sovietes, enviando os oposicionistas aos milhares para os gulags e fuzilando-os nos processos de Moscou.

Esta perspectiva é fundamental para combater o senso comum da ideologia burguesa que prega que o socialismo é uma “utopia irrealizável”, e que o stalinismo é a consequência inevitável e natural da revolução. É imprescindível aprendermos com a história da revolução russa para que possamos fazer novas revoluções triunfantes, que possam superar as dificuldades enfrentadas pelo primeiro Estado Operário da história e que, assim, finalmente, possamos emancipar todas as mulheres e a humanidade.




[1] TROTSKI, Leon. “La teoria de la revolucion permanente”. Buenos Aires: CEIP, p. 407. Tradução minha.
[2] Idem, p. 418. Tradução minha.

sábado, maio 17, 2014

Em memória de Nelson: mais um irmão de classe a vingar

Não conheci Nelson. Era operário metalúrgico e, como a maioria dos trabalhadores, deixou seus anos e sua saúde na linha de produção, na labuta de cada dia, aumentando a fortuna de um patrão qualquer. Aposentado por invalidez, praticamente surdo e cego, Nelson foi reposto sem mais considerações, como mais uma peça gasta da máquina que faz o capital girar. Outro operário entrou em seu lugar para suportar o pesado fardo da exploração.

Nelson passou seus últimos anos em casa, e enfrentou as consequências tardias da brutalidade com que o ritmo da fábrica extraiu dia-a-dia sua energia num trabalho febril. Contraiu câncer, doença que certamente também era consequência de seu trabalho. Se fosse rico, ele teria acesso ao mais avançado da nossa técnica semi-bárbara das terapias químicas e radiológicas em pouco tempo. Uma medicina tão fundada no lucro e numa visão selvagem de saúde e doença que muitas vezes tem um tratamento mais doloroso e letal do que a própria patologia, mesmo para os que podem pagar seus exorbitantes preços. Mas Nelson não era rico: era um trabalhador aposentado, um peão de fábrica sujeito ao que tivesse a saúde pública a lhe oferecer. E o que ela lhe ofereceu foi espera, uma espera que permitiu à doença se alastrar irrestritamente por seu corpo, debilitar sua saúde cada vez mais.

Longos meses depois, Nelson iniciou seu tratamento. Quando foi internado, para fazer uma cirurgia relativamente simples e sem grandes riscos, continuou seu calvário pela sistema de "saúde" pública contraindo infecções hospitalares e sofrendo todo tipo de negligências por parte do hospital, dos médicos, e mesmo aqueles que provavelmente gostariam de lhe oferecer o melhor tratamento possível não podiam, pois eram eles mesmos, como trabalhadores da saúde, peças sendo gastas pela exploração cotidiana, como fora seu paciente antes de adoecer. Muitos endureceram e se insensibilizaram diante do sofrimento dos pacientes como a única forma de sobreviver psiquicamente em meio a tanta dor e impotência.

Foram três infecções hospitalares que contraiu, agravando progressivamente seu estado de saúde de maneira avassaladora e irreversível. Sua família, impotente, assistia o sistema de saúde assassinar lentamente aquele que para eles não era uma peça gasta, mas uma pessoa que amavam. Nas estatísticas, M. era um número. Para nós, era um irmão de classe. Ele ontem não resistiu mais ao lento e doloroso processo de destruição a que lhe submeteram, e seu corpo cedeu. Sua morte entrou para a história como mais um dos incontáveis crimes do capitalismo contra os explorados e oprimidos do mundo. Para minha camarada e amiga, sua filha, este crime entrará em sua consciência e sua história como uma marca a ferro e fogo da crueldade desse mundo podre. O assassinato de seu pai será uma dor eterna, mas também a cicatriz de uma luta que levamos todos os dias. Uma luta ao lado de cada Nelson que foi assassinado, de cada explorado, oprimido, mutilado, assassinado por este mundo cão. Uma luta contra cada patrão miserável que impõe a dor às famílias, a cada trabalhador, em nome de suas festas luxuosas, suas mansões, helicópteros e iates.

Para a burguesia, a morte de Nelson é mais um número em uma estatística sem importância. Para nós é a morte de um irmão de classe, de um de nossas fileiras, e não passará impune. Por ele e por todos os outros, marchamos a cada dia. Junto a minha camarada e amiga, sigo em luta e tento dividir com ela como puder a tristeza de perder um pai de uma forma tão brutal. Seu ódio é nosso, e nosso ódio é o combustível que vai nos colocar de pé a cada dia para combater, para fugir a cada hesitação e vacilo, para enfrentar cada dificuldade que se coloque no caminho com coragem, paciência e perseverança, pois sabemos que qualquer luta e qualquer sacrifício vale a pena para não viver em mundo podre como esse de cabeça baixa, aceitando passivamente que a cada dia este tipo de sofrimento se repita infinitamente em cada lar operário, em cada família na periferia, em cada um que perde sua vida e que poderia ainda estar aqui. Para nós, marxistas, a paz não está na vida após a morte - Nelson se foi, não existe mais e não tem alma imortal. A herança e o legado de sua vida - além da marca que deixou em cada um que o conheceu - é a luta para que não deixemos sua morte em vão, e saber que sua vida foi a dura história de mais um membro da classe que irá dar o passo definitivo para emancipar a humanidade, para que nunca mais alguém passe por isso novamente. É, sem dúvida, uma forma gloriosa de permanecer na história.

sexta-feira, maio 16, 2014

A eleição da Apeoesp e "um jeitinho petista de ver a vida"

Semana passada fui atuar como fiscal na eleição da Apeoesp, o sindicato dos professores da rede estadual de São Paulo. A intenção era ajudar nossos camaradas dos Professores pela Base a garantir que a rotineira prática da fraude eleitoral, que a chapa 1 (PT e PCdoB) utiliza para se manter na direção há décadas, fosse, no mínimo, mais difícil para eles.

Bebel e seus amigos.

Maria Isabel Noronha, a "Bebel", apesar desse "meigo" apelido, é uma burocrata de carteirinha que está confortavelmente acomodada na direção do sindicato há muitos anos, e a mais de uma década não pisa numa sala de aula, vivendo do salário dos professores que a sustentam através do imposto sindical. Ano passado, Bebel e sua gangue colocoram a polícia para reprimir os professores e escoltar seu carro de som para fora da assembleia, depois de manobrar descaradamente quando mais de 60% dos professores presentes recusaram a proposta do sindicato de acabar com a greve sem nada nas mãos.

A PM, amiga da Bebel, ajuda o carro de som dos burocratas a sair da Paulista.
 
E eis que eu e mais algumas dezenas de camaradas fomos obrigados a dividir um dia de eleição ao lado dos "companheiros" que integram a chapa 1 da Bebel, como mesários e fiscais. Um dia que prometia ser longo...

Eu e mais um companheiro do Professores pela Base ficamos junto com três apoiadores da chapa 1. Eram bastante simpáticos e amenos conosco. Ao longo do dia, pude conversar bastante com eles. Eram dois mais jovens, e uma outra de bastante tempo na categoria. E pude aprender um pouco sobre como pensam os "petistas da base". Eram todos da CNB/Articulação, a corrente majoritária do PT, aquela mesma do Lula, Dilma e mensaleiros de alto escalão. Mas, sendo esta corrente aglutinada muito mais ao redor de interesses materiais do que ideológicos, eles faziam parte de um grupo dissidente aos burocratas de sua mesma corrente que dirigem a subsede Norte da Apeoesp, ligados à Nilcéia, uma "Bebel de segundo escalão", que há anos está lá parasitando a subsede. Ela, que atua como uma burocrata "cachorro louco", foi responsável pelas fraudes e seu "braço direito" tentou agredir uma camarada nossa e furou o pneu de um de nossos carros. O bê-á-bá dos burocratas sindicais.

Professor conta a Nilcéia sua opinião sobre ela, logo após a votação fraudada de fim de greve em 2013.

Já os petistas que me acompanharam na urna estavam em outro estado de espírito. Tendo sido passados pra trás pelo grupo da Nilcéia, eles haviam retirado seus candidatos à subsede para pressionar a burocrata local. Portanto, para eles era ótimo que fossemos bem na eleição, pois assim mostrariam para Nilcéia como o apoio deles é importante para ganhar votos e poderiam exigir uma "fatia maior do bolo". E é exatamente assim que a política funciona entre eles: acordos de interesses para conseguir um pouco mais de poder e privilégios. Nada que tenha a ver com o interesse dos trabalhadores, claro. Isso tudo, obviamente, com o devido verniz "democrático e popular" para agradar a base. Tudo em nome da boa "governabilidade". O mesário que tinha uma origem mais claramente pequeno-burguesa - vamos chamá-lo de Roberto para não expor o petista que tão amavelmente se abriu comigo - colocava as coisas assim, bem honestamente: ele tinha um cargo de diretor de recursos humanos em uma Diretoria de Ensino municipal - uma boa boquinha no governo petista do Haddad. Tinha uma vida tranquila com seu companheiro, guiava sua vida pelos ideais de uma religião não-monoteísta e muito progressista, desfrutava os pequenos prazeres da vida, como sua coleção de perfumes (um autêntico apreciador, um bon vivant). Havia sido bem votado na última eleição. Disse nos respeitar, porque, segundo ele, estávamos "todos lutando pela mesma causa", mas "com táticas diferentes". Ao longo do dia disse como estava ali militando, pois a remuneração que receberia como mesário era muito menor do que a de seu dia perdido na DER.

A realidade dele era um bocado diferente da do fiscal, vamos chama-lo de Wellington, que, também militante do PT, tinha uma origem de classe nitidamente mais proletária do que a de seus dois colegas. Ele contou-me brevemente sua história militante: começou a militar no PCdoB, fazendo campanha para João Felício, um burocrata da Apeoesp que havia galgado os degraus a um cargo no parlamento. Disse que lhe prometeram pagar pela campanha, mas que no final não recebeu um centavo. E, ainda, que os seus "chefes" conseguiram cargos de assessores, mas o pessoal que estava no dia-a-dia da campanha não conseguiu nada. Ficou abandonado por seus dirigentes... depois disso ele passou a militar no PT, mas disse que na outra campanha não atuou e o burocrata não conseguiu se eleger. Falou ainda que depois ingressou sem ajuda nenhuma em uma universidade privada, onde cursou história, e que durante esse tempo não recebeu nenhum auxílio do partido. E agora estava ali, fazendo a campanha pra chapa 1.

Achei muito interessante a história desses "companheiros", porque estou acostumado a pensar em dois tipos de petistas: os grandes burocratas e traidores de classe, como os dirigentes da CUT ou o Lula; e os pequeno-burgueses acomodados "progressistas", cuja mentalidade política é perfeitamente expressa pelo petismo, mas que não tem nenhum "interesse material" no triunfo do PT, como meu pai. Ali, pude conviver com um tipo diferente, os "aspirantes a burocratas": uma geração que não é aquela que construiu o PT como um partido de trabalhadores pela base e se desiludiu; nem mesmo os que se tornaram os serviçais diretos da burguesia. É, na verdade, uma geração que começou a militar no PT já completamente degenerado, e que foi educada na política como sendo um lugar onde tentar garantir seus interesses privados; cuja militância se iniciou e se formou em campanhas eleitorais, que não associa em nenhum momento a política à luta de classes, mas sim a acordos aqui e ali. É o autêntico corpo e alma do PT de hoje: um deles é um "pequeno burocrata" com um carguinho; o outro, um peão que entra ali querendo ver se consegue ganhar alguma coisa, uma migalha que caia da mesa dos de cima. Ambos se confortam na ideia de que "militam pela esquerda", "contra os tucanos" ou coisas assim.

O significado do termo "militância" para essa gente nada tem a ver com o que é para nós, que viemos da tradição revolucionária, dos bolcheviques. Lembro-me sempre de uma passagem de "Minha Vida", a autobiografia de Trotsky, em que ele fala sobre quando conheceu os membros do Partido Socialista americano, que classificava como "cavalheiros que dividem seu tempo livre entre a ópera e o Partido". A luta que Lenin deu para a conformação de um partido revolucionário, a que levou à divisão entre "bolcheviques" e "mencheviques" tinha a ver com isso: gente que via a luta revolucionária como o motivo central de sua vida, e gente que a achava "bonita" e tinha "um certo interessse" em leva-la a frente, quando não tivesse algo "mais importante" para fazer. É por isso que cada militante bolchevique vale dez reformistas ou centristas: é alguém que está convicto de levar sua luta adiante, custe o que custar.

Professores pela Base: os que levaram a luta anti-burocrática na eleição da Apeoesp.

Outro dia, quando escrevi um texto que falava um pouco sobre minha trajetória militante, um amigo "marxista de academia", um cara honesto, comentou que meu texto "poderia ter sido escrito pelo Dalai Lama", se trocasse o Partido pela religião. Interessante, lembrei-me de quando militava no Movimento Passe Livre e alguém levantou a ideia de cotizações (contribuições financeiras regulares dos militantes para a organização), e um anarquista disse que isso era "o dízimo", "coisa de Igreja" etc. Dessas analogias formais vive a ideia destes autonimistas, que, no fundo, têm algo em comum com os petistas: a militância é para eles "um passatempo". Eles cuidam de seus empregos, de suas carreiras acadêmicas, de seus casamentos... e, quando dá tempo, militam. E acham (ou não pensam muito nisso) que assim vão mudar o mundo.

É curioso como estas tendências não se desenvolvem e criam raízes no movimento operário, senão pela via da cooptação de dirigentes e quadros. Para os trabalhadores, a militância só pode ter o significado de um compromisso de vida: eles não tem "tempo de lazer" para gastar com uma militância de aparências. Cada segundo gasto em uma atividade partidária é um sacrifício pessoal em uma vida dura. E só a ideia de uma mudança de fato da sociedade pode ganhar estes setores. Para um pequeno-burguês, não é necessário se comprometer de corpo e alma com a ideia da revolução, pois, em última instância, sua vida não está mal hoje... é só sua consciência que "sofre" com a miséria alheia. Por isso, inclusive, é tão fácil para ele encher a boca para reivindicar o "avanço" dos governos do PT, já que não é o dele que está na reta. Em épocas de relativa "paz social", estas ideias de "avanços graduais" florescem inclusive no seio da classe trabalhadora. Mas, então, ela não precisa militar mesmo. E o campo político fica sendo o destes pequenos e grandes arrivistas, e dos políticos burgueses profissionais. Mas quando a luta de classes se acirra, a coisa muda radicalmente: este "jeitinho petista de ver a vida" se encontra cada vez mais espremido pelos dois campos opostos que se fortalecem: a linha dura da burguesia de aumentar mais e mais a miséria dos trabalhadores; ou uma política revolucionária que consiga mudar as coisas de fato.

E aí, muito pouco vai sobrar para aqueles que fazem a sua política procurando uma "boquinha" no banquete da burocracia sindical...