quarta-feira, dezembro 18, 2013

Azul é a cor mais heteronormativa


 
“Azul é a cor mais quente” nos comove com um apelo fácil, nos tocando em dramas individuais que todos vivemos. Quem nunca sofreu por amor? Quem nunca errou e perdeu um grande amor? Quem nunca se arrependeu de algo que fez, tomou um fora? Suas cenas longas, com tomadas bonitas que focam pequenos detalhes da vida, dos corpos, dos gestos, criam uma identidade com a protagonista, com o difícil trajeto de descoberta da sua sexualidade, o enfrentamento que ela assume aos poucos contra o preconceito, tanto o que está do lado de fora em seus colegas, amigos, família, como o que a sociedade entranhou desde pequena em sua própria cabeça. Uma jovem colegial que procura se “forçar” a uma heterossexualidade antes que consiga assumir para si mesmo que não é ali que irá se realizar sentimentalmente, e o trajeto de assumir sua homossexualidade através de uma grande paixão, uma mulher mais jovem e madura que irá lhe ensinar a ser ela mesma, a não ter vergonha de si e de sua forma de amar.

                É um filme bonito, sensível, mas sua beleza acaba aí. E, no entanto, há muito mais por trás desta beleza; por trás de uma comovente história de um amor frustrado, o filme carrega o pesado ranço do patriarcado transmitindo seu modelo para uma relação amorosa, mesmo quando nela não há um homem. A heteronormatividade em nossa sociedade é um fruto direto da forma como o sistema capitalista de exploração se baseia – entre tantas outras formas de explorar – numa opressão muito mais antiga do que ele próprio, que é o machismo e o patriarcado, para fazer recair em uma metade da humanidade o fardo mais pesado da exploração. Nossa sociedade toma como célula econômica fundamental da vida a família, na qual cabe ao homem provedor o papel de garantir o sustento da mulher e dos filhos. À mulher, a quem cabe o papel de fazer todo o trabalho doméstico não remunerado pelos capitalistas, mas fundamental para a reprodução do capital, coube também progressivamente entrar no mercado de trabalho, com salários inferiores e, assim, mantendo seu papel economicamente subordinado e sofrendo a exploração da dupla jornada de trabalho – trabalho assalariado e trabalho doméstico não remunerado. Este modelo familiar, cuja estrutura é fundamental para sustentar economicamente este sistema, é o principal motivo pelo qual a heterossexualidade é uma norma tão fundamental do capitalismo, e pelo qual todas as outras formas de sexualidade podem constituir uma “ameaça” e devem ser combatidas pelas principais instituições ideológicas sociais.

                O filme, num primeiro olhar, parece combater a visão heteronormativa do mundo: ao mostrar o preconceito que é aos poucos superado por Adéle, ao criar a empatia com a personagem e seus sentimentos, ele pode também combater o preconceito existente no próprio público, criando neste a ideia de que a homossexualidade é tão “natural” como a heterossexualidade, e, portanto, não deve ser discriminada de forma alguma, mas aceita, respeitada, “normalizada” socialmente. E é verdade que este filme pode mesmo cumprir este papel. Mas, se passarmos desta “primeira camada”, veremos que há aspectos do filme que são o contrário disto, reforçando o modelo heteronormativo como regra até mesmo para os casais não-heterossexuais. O público se identifica com o “romance escondido” do casal na primeira parte de sua relação: Adéle é acuada por suas colegas e renega publicamente sua sexualidade para poder ser aceita como “normal” na escola; depois, no jantar em família na sua casa, vemos o peso do modelo familiar no diálogo que se estabelece entre os pais de Adéle e Emma. Ao comentar a dificuldade em ter a arte e o ofício de artista como uma fonte de renda em nossa sociedade, a solução que apresentam os pais de Adéle é que Emma tenha um marido com um bom emprego, que possa sustenta-la enquanto ela faz sua arte. Aí, mais uma vez, aparece a família como o núcleo econômico, com o homem no papel de provedor e de sustento econômico para a mulher. Rimos disto, nos sentindo subversivos junto ao casal que esconde seu amor, um amor que não se encaixa nos padrões prontos dos pais de Adéle. A nossa cumplicidade com as duas aumenta, quando elas abafam seus gemidos para poder transar no quarto.

                Contudo, a ironia maior está no fato de que Emma viria a cumprir precisamente o papel social de “homem”, e justamente no “casamento” que se estabelece entre ela e Adéle. Desde o primeiro contato o papel de “mulher”, ou seja, de parte mais “frágil” e subordinada do casal, vai se desenhando para Adéle. Segundo as próprias palavras de Emma ao abordá-la no bar, ela era um tipo que não se via muito por ali: menor de idade, uma “heterossexual curiosa”. O que em Adéle a identifica como uma “heterossexual curiosa” naquele meio? Seu jeito “feminino”, delicado, meigo, tímido, introvertido. Ela é, desde que coloca os pés no lugar, assediada por mulheres que cumprem o papel de “homens”: agressivamente abordando ela com cantadas, encarando-a de cima a baixo, oferecendo-lhe para pagar bebidas. Ela, tímida e recatada, é “salva” de todas estas abordagens por Emma, que chega apresentando-a como sua “prima”, como um código para dizer: esta já tem “dona”. Vai pegá-la na escola, inicia sua vida sexual e, por fim leva-a para viver em sua casa.

                O papel que cabe na relação para Adéle é o papel da mulher numa relação heterossexual de nossa sociedade: ela cuida da casa, cozinha, recebe os amigos de Emma. Para Emma, cabe explorar o mundo, emancipar-se através de sua criação – seu trabalho – e poder descobrir sua identidade. Para Adéle, cabe a profissão socialmente designada para mulheres de professora, em que seu suposto “instinto maternal” pode se desenvolver no cuidado com as crianças. Mas, para além disso, não lhe cabe explorar o mundo: a sua realização é a realização no amor, ou seja, no âmbito familiar. Isto fica explícito no diálogo que elas têm na cama, quando Emma insiste para que Adéle mostre as coisas que escreve, que as publique para que ela se realize na sua arte. Adéle afirma: sua felicidade é aquela; a sua escrita é sobre coisas íntimas, pessoais, e não para o mundo. A sua felicidade é poder estar ali com Emma. Neste mesmo dia, Adéle havia recusado o convite para sair com seus colegas de trabalho. O motivo: ir para casa cozinhar, arrumar tudo para receber todos os amigos e colegas de trabalho de Emma e celebrar sua estreia como artista. Está fundada a divisão social do trabalho e, consequentemente, de toda a vida social dentro daquele casal: Emma vive para o mundo; Adéle, para a família. Em seu discurso diante dos convidados, Emma mostra qual o papel de Adéle: musa inspiradora para sua arte – ou seja, seu papel não é de indivíduo, de sujeito diante do mundo, mas de suporte, mero apoio para que Emma possa, ela sim, descobrir sua individualidade, desenvolver-se como sujeito criador e colocar-se no mundo desta forma. E, de quebra, ainda diz de Adéle: “e foi ela que preparou todos os pratos!”. Adéle, em seu humilde discurso, apenas diz: “espero que gostem de tudo.” Pois é este o papel que lhe é reservado: agradar e servir bem, ser uma boa acompanhante para sua companheira. O diálogo na cama desenvolve isto, quando Adéle diz que todos os amigos de Emma eram “tão cultos” que ela se sentiu “deslocada”. E Emma lhe responde: “você esteve ótima”, “eles te adoraram”. Ela é um bibêlo, um penduricalho de Emma.

                Junto à heteronormatividade, cuja principal função é garantir a divisão social do trabalho entre homem e mulher, o outro principal pilar ideológico e moral da família é a monogamia. E ela cumpre um papel decisivo no filme, pois será o pivô da separação do casal. Emma tem toda uma vida para viver; Adéle não. Por isto, nada mais natural que se sinta carente, sozinha, abandonada enquanto Emma vive sua vida. Lembremo-nos que, quando Adéle finalmente aceita o convite de seus colegas para sair, é justamente quando Emma está trabalhando até tarde com sua colega (em relação à qual, aliás, Adéle já sentia ciúmes). Está triste e insegura, pois o que dá sustentação à sua vida e é seu principal motivador (Emma), não tem ela neste mesmo lugar: no papel de homem da relação que é desempenhado por Emma, o papel central é ocupado pelo trabalho, pela atividade de realização no mundo. Isto coloca Adéle num papel claramente subordinado na relação, o que a torna insegura, fragilizada.

                A carência joga Adéle nos braços de outro homem, do primeiro homem que lhe dê atenção, lhe valorize. É por conta disto que Adéle ouve de seu “marido” os xingamentos tipicamente machistas que as mulheres ouvem de seus companheiros “traídos”: puta, vagabunda, vadia. Adéle era, em primeiro lugar, “propriedade” de Emma, e ela não pode ser perdoada porque feriu o mais sagrado dos princípios desta sociedade: o da propriedade. É expulsa com uma mala de roupas de sua própria casa, pois esta é propriedade do “homem provedor”, e tudo o que ela construiu ali é acessório, detalhe. Quantas mulheres não são expulsas de casa por seus maridos com uma mão na frente e outra atrás, porque cabe ao homem o papel de proprietário? Todo o trabalho que tiveram para construir aquela casa, por ser socialmente desvalorizado, perde todo seu valor e é na separação que isto se expressa mais, quando as mulheres deixam de ter tudo aquilo que seu trabalho doméstico não remunerado ajudou a acumular.

                Contudo, a vida de Adéle era a família, a relação, e por isto sua vida para no tempo, na obsessão em ter Emma como companheira. A vida desta, que nunca teve como centro a relação amorosa, segue adiante com uma nova companheira, se desenvolvendo naquilo que de fato a realiza: o trabalho como artista. A profissão de Adéle não é socialmente valorizada: é uma profissão “de mulher”, de “mãe”, de “cuidar de crianças”. Ainda que tenha, na verdade, uma importância social imensa, de educar pessoas, transmitir valores e conhecimentos socialmente imprescindíveis, a profissão de educadora infantil nunca será socialmente valorizada porque é uma “profissão de mulher”. Isto se expressa ao longo do filme em diversos diálogos, como na casa dos pais de Emma, entre o casal na cama etc.

                Pode-se argumentar que não há motivo para condenar o filme por apresentar uma relação homossexual que é guiada pelos parâmetros heteronormativos, pois afinal a sociedade é assim, grande parte dos casais gays de fato reproduz estes valores, e não é a “função” da arte dar nenhuma resposta a um problema social que exista. Independentemente da discussão sobre a suposta “função” da arte, cujo argumento de que não deve responder a problemas sociais eu acho bastante duvidoso, para dizer o mínimo, o problema central do filme está em que a heteronormatividade do casal em nenhum momento é problematizada. A tristeza de Adéle aparece ao público como um drama afetivo individual, e não há nenhum movimento que coloque esta questão em seu devido papel de problema socialmente construído. Se o filme vem sendo injustificadamente louvado aos quatro cantos pelo seu mérito de questionar tabus e desafiar preconceitos, parece justo exigir dele que questione os problemas sociais mais profundos que fazem com que a heteronormatividade e a monogamia centradas na família continuem sufocando a sexualidade da maior parte da humanidade.

segunda-feira, novembro 11, 2013

O movimento estudantil da USP e a triste esquerda que "tem pra hoje"...

Este post é um desabafo. Seu intuito não é fazer uma luta política, afirmar posições, combater equívocos. É um desabafo de alguém que fica puto, que fica cansado. De alguém que escolheu um projeto para sua vida que é uma luta coletiva, dura, contra um inimigo imenso, e que é a única perspectiva para fazer deste mundo um lugar suportável, digno de existência. Se este mundo é uma merda - foi o que decidi há tempos - a única alternativa é tentar transformá-lo. Isto me levou ao marxismo, à militância. E quis o destino que fosse logo no movimento estudantil da USP, que tem lá sua importância, mas que não vem ao caso esmiuçar agora. O que vem ao caso são as cretinices que se colocam nesta mesma USP entre o hoje e este projeto de futuro.

Lembro-me quando entrei na USP. Nunca havia visto um "socialista" de perto. De repente, estava cercado por "socialistas". Eles discutiam violentamente entre eles, e eu, não entendia nada: porque discutiam tanto se defendiam a mesma coisa? Passaram-se anos, e eu descobri uma lição valiosa que o marxismo me ensinou: a prática é o critério da verdade. E isto me ensinou que nem todos os "socialistas" são socialistas de fato. E o movimento estudantil e outras experiências foram me mostrando que a esquerda que temos hoje, como não poderia deixar de ser, herdou as derrotas da classe trabalhadora e as incorporou como um legado perverso em sua estratégia, seu programa, sua prática política e mesmo em sua moral. E fez disto o cenário da esquerda que encontrei ao entrar na universidade (que certamente é pior na universidade elitista e racista que é a USP).

Estou participando de mais uma greve entre tantas que já vivi na USP. Deveria ter me acostumado a certas coisas, que conforme vão levando nossa ingenuidade embora, vão deixando lições valiosas. Mas a verdade é que sempre pode piorar. E todo tipo de escrotice que não se espera daqueles que dizem que querem construir um mundo sem opressão e exploração aparece na sua cara. Mentias, calúnias, provocações, ameaças, agressões físicas. Táticas sujas, daquelas que nossos inimigos usam. Mas elas estão dentro do nosso movimento, sendo usada contra nós, que dedicamos nossas vidas, nosso sangue, nosso tempo a mudar o mundo. E quem está nos atacando não é, ou não deveria ser em hipótese alguma, nosso inimigo: são aqueles mesmos "companheiros socialistas" que conheci no meu primeiro ano de USP. Eles nos caluniam, nos ameaçam, e depois negam tudo publicamente, tentando nos demonizar para tornar estéreis nossas posições políticas. Eles nos chamam de seita, mas querem nos isolar forçadamente, querem nos isolar e nos insultar porque nossas ideias têm força. Eles querem que desapareçamos, porque ameaçamos seu "pequeno poder". Eles são ainda tão pequenos, tão débeis, mas estão aprendendo numa velocidade impressionante os hábitos e rotinas da burocracia sindical que deveriam estar combatendo. Me dá raiva, mas também me dá nojo, tristeza. Penso em quantas pessoas eles, que são organizações nacionais, aproximam como uma "referência" de esquerda, de projeto revolucionário. Os piores viram dirigentes, tornam-se cínicos e incorporam estes métodos sujos de "debate político". Os melhores, provavelmente, são os que se desiludem amargamente com aquilo que pensam ser a concretização mais palpável do que gostariam de poder defender, do socialismo, do comunismo. Eles deixam de militar, voltam para a pequenez de suas vidas privadas; como costumamos dizer, eles "quebram". Me encho de ódio ao pensar nestas pessoas, nestas possibilidades desperdiçadas, me revolto ao pensar em quantas pessoas não deixam de acreditar que há uma alternativa para este mundo ao tomar contato com este tipo de prática política degenerada dos nossos "socialistas", que aprenderam muito bem lições de nossos inimigos, como com o stalinismo, que transformas as discussões políticas em calúnias morais. Que impede o debate ao invés de levá-lo até o fim.

Por mais de um mês, eu e centenas de estudantes viemos dando nosso sangue para construir uma luta contra a reitoria e o governo. Alguns de nós porque acreditamos em outra sociedade, ou, no mais modesto dos casos, porque queremos uma universidade menos elitista. E hoje, assistimos relutantes, com o sangue fervendo, nossa luta ser jogada ao vento. Em parte porque nosso inimigo é poderoso. Mas isto, sinceramente, não é o que mais me incomoda. Aprendi a saber que nosso inimigo é poderoso e as batalhas serão duras. O que me irrita de maneira impressionante é o "fogo amigo" dos auto-proclamados "socialistas", que, por terem sido derrotados democraticamente em sua política mesquinha, por verem seu "pequeno poder" ameaçado, preferem lançar mão de sua campanha de provocações e mentiras, de ataques dos mais sujos e nada "socialistas". Porque preferem ver um movimento derrotado para poder tentar jogar o ônus sobre as nossas costas do que seguir firme na luta e fazer um balanço honesto. Passaram a lutar mais contra nós do que contra nosso inimigo comum; abandonaram a linha de frente da luta para "evitar conflitos" com os agressores que eles próprios haviam ameaçado ainda uma hora antes.

Fico puto. Isto que eu queria dizer. Mas, me fortaleço, e sei que meus camaradas também. No fundo, por mais que seja uma merda saber que além de nossos inimigos poderosos teremos que enfrentar nossos adversários e suas mentiras, isto nos torna mais convictos de que nossa estratégia, nossa teoria, nossa moral estão corretas e precisam ser fortalecidas. Se for esta esquerda que vai dar a "alternativa" para os trabalhadores, estaremos fadados a mais uma época de exploração e opressão. Então, precisamos dar outra alternativa, e nos forjamos no "fogo amigo" enquanto nadamos contra a corrente. Mas há outras centenas, talvez milhares, que, vendo de longe, se afastarão do movimento estudantil, talvez de qualquer perspectiva de transformação social. Uma porta de mudança social que se fecha aos olhos de alguns combatentes, que poderiam nos ajudar muito. Um passo atrás na luta. A derrota que a reitoria poderá talvez impôr à nossa luta é ruim; mas muito pior é se há uma outra derrota, fomentada por dentro, que afaste os estudantes deste ambiente fratricida de mentiras e ataques morais. Isto é o que me revolta e entristece. Nossa tradição é bela, é poderosa; quando leio textos de Trotsky, Lenin, vejo a força de nossas convicções, estratégia e teoria. Vejo ali a possibilidade do futuro, e encho-me de força para que faça minha parte para que estas ideias penetrem nas massas e se transformem em força material. Este tipo de problema que enfrentamos hoje é uma coisa mesquinha demais, mas é hoje a lama na qual nadamos na USP, e da qual temos que sair, passo a passo. Para chegar o futuro, precisamos atravessar este triste presente. Como disse Marx, os homens fazem a história, mas não como querem, e sim como lhes é permitido fazer. Façamos, então, porque infelizmente o futuro terá que nascer do material humano que temos hoje. Educá-lo, combatê-lo, aprender com ele. Seguir adiante, apesar de tudo. Nossos mestres enfrentaram coisas piores, e nós enfrentaremos também. Hoje, nos forjamos na luta mesquinha do presente. Nossos ideais nos levarão adiante.

terça-feira, outubro 29, 2013

A greve, os DCEs e suas "vitórias", e os muros da USP



Ontem ocorreu a segunda reunião do Comando de Greve da USP desde que se iniciou a nossa mobilização. Em minha avaliação, foi um momento decisivo para terminar uma sequência de erros que colocam nossa mobilização em uma posição dificílima. Ela ainda é uma greve bastante forte e enraizada nos cursos, mas encontra-se em um impasse cujas principais saídas foram todas bloqueadas, uma após a outra. E o pior de tudo: tais bloqueios vieram diretamente dos que estão dirigindo a greve.

O primeiro momento de nossa greve era de uma oportunidade ímpar: confluíram as mobilizações da USP, Unicamp e a heróica greve dos professores do Rio. Tudo confluía para nos unificarmos. Era ainda mais simples, se pensarmos que a direção do DCE da USP é do PSOL e PSTU, a do SEPE (sindicato dos professores do Rio) também, e a do DCE da Unicamp é do PSOL. Contudo, toda a iniciativa de unificação que vimos por parte destas direções foram declarações vazias de solidariedade. Nós nos matamos de tentar: eu, pessoalmente, fui quatro vezes pra Unicamp durante a greve. Propusemos e foi aprovada um indicativo de Comando de Greve unificado de USP e Unicamp nesta universidade. Aprovamos também na USP. Na primeira reunião, contudo, os dois DCEs boicotaram. Propusemos, e na medida de nossas forças, procuramos implementar a unificação das pautas: que a Unicamp assumisse as bandeiras de democratização da universidade, e a USP as contra a repressão e a polícia. Mas somos ainda poucos, e o boicote ativo dos DCEs pesaram mais.

Mas a unificação pela qual lutamos não era apenas entre as lutas em curso; esta era, inclusive, a mais tática, e que poderia servir como impulsionador para uma outra, esta sim estratégica: a unificação com os que estão excluídos do ensino superior, os que estão relegados às péssimas condições de ensino no ensino básico público, os trabalhadores da educação que sofrem com a precarização de sua profissão. Uma unificação nacional em defesa de uma pauta ampla, democrática e estrutural em nosso país: por uma educação pública, gratuita, de qualidade, para todos e a serviço dos trabalhadores e do povo pobre. Era não apenas viável que a nossa unificação das três lutas colocassem esta perspectiva de um levante nacional em defesa da educação, como inclusive era necessário. Era, aliás, a única forma de conseguir lutar efetivamente pela pauta que a USP levantou desde o começo, de democratização da estrutura de poder da universidade.

Como sempre apontamos, as diretas pra reitor não são uma bandeira que levantamos. Por sua patente impotência em mudar qualquer questão relevante dentro da universidade. Levantamos a bandeira de uma Estatuinte Livre, Soberana e Democrática, que só pode ocorrer a partir da imposição de uma mobilização massiva e destruindo a estrutura de poder que existe hoje. Isso, é claro, não pode ocorrer com uma mera greve de estudantes da USP. Nossa greve cutucou os professores e funcionários da USP. Mas o trabalho de repressão e cooptação da reitoria surtiu efeitos, e não foi possível partir para uma greve unificada. Contudo, a unificação com outras universidade poderia dar um fôlego que atacasse no âmago o corporativismo e fizesse as outras categorias se moverem ao ver que algo grande estava se gestando.



Então veio o primeiro golpe decisivo. Ele não foi desferido pelas reitorias, nem pelos governos, mas pelo PSOL na direção do DCE da Unicamp. A correlação de forças ali, desde o começo, era impressionantemente favorável para o movimento. Basta compararmos a mobilização da USP em 2011 com a de Unicamp em 2013 para termos uma dimensão: o assassinato de Felipe, na USP em 2011, fez a situação política na universidade dar um giro à direita, com mobilizações de estudantes da Faculdade de Economia e Administração (FEA) pedindo a entrada da polícia no campus. Era a deixa que o reitor Rodas esperava, e ele assinou um convênio com a PM em agosto. Desde este momento, nós, da LER-QI e da Juventude às Ruas, nos pusemos a denunciar o acordo e dizer que era necessária uma mobilização contra a PM no campus; PSOL e PSTU, como de costume, disseram que os estudantes "não estão preparados" para a pauta do Fora PM. Em lugar disto, defenderam o programa de "por mais segurança" no campus, com seu "plano alternativo de segurança". Claro, isto dialoga mais com a consciência da maioria dos estudantes da USP, verdadeiros privilegiados que vivem dentro de uma bolha e, justamente por isto, estão sujeitos a serem atacados pelos que não tem os mesmos direitos que eles. A questão é que o papel dos revolucionários não pode nunca ser defender o que é mais fácil, mas sim o que é correto, sempre. E, claro, procurando dialogar da melhor forma possível. Esta é uma divergência de fundo que temos com estas correntes. A questão é que naquele momento os estudantes não se mobilizaram nem pelo "fora PM", nem "por mais segurança". Até o dia 27 de outubro. Uma greve imensa decorre disto - mais uma vez apesar da política nefasta de PSOL e PSTU - mas não conseguimos reverter o ataque da reitoria. A PM permanece.

Na Unicamp, junho havia mudado tudo: logo após o assassinado de Denis a reitoria assina o convênio com a PM e a resposta dos estudantes é imediata, realizando grandes assembleias de curso. A reitoria é ocupada e a greve cresce. Em pouquíssimo tempo o reitor, Tadeu, eleito com um programa "democrático" e com o apoio de diversos setores de estudantes, professores e funcionários iludidos por sua demagogia, foi obrigado a retroceder e dizer que não assinaria mais convênio algum. O movimento estava forte, na ofensiva, e com a possibilidade de, com esta importante conquista em mãos, ir por mais, unificando-se com a USP e indo ao fundo da questão: a expulsão permanente da polícia só pode se dar com a mudança radical da estrutura de poder.



Mas pro PSOL aquilo já era uma grande vitória. E para eles, o que se trata é de conseguir vitórias, isto é o que importa em qualquer mobilização. Seu programa é sempre o que eles julgam que irá mobilizar mais os estudantes - mesmo que não seja lá muito correto - e sua meta é sempre sair da luta com algo que possam chamar de "vitória" - mesmo que não seja lá grande coisa ou até que não seja coisa alguma mas que possa receber de alguma forma o rótulo da "vitória" para eles "moralizarem" os estudantes. É que em sua lógica, é a conquista de "vitórias" que leva os estudantes a saberem que é possível lutar e ganhar, e aí vão lutar mais e conseguir mais "vitórias"... e de vitória em vitória, um dia, quem sabe, mudamos o mundo... ou não. O PSTU, em linhas gerais, atua mais ou menos com a mesma lógica. É por isto que defendem como pauta, na USP, as diretas pra reitor: porque acham que é o que mais mobiliza, e porque achavam que dava pra conquistar. Achavam porque agora estão na luta - ou, mais precisamente, na negociação - por muito menos, por qualquer migalha que possam colocar o rótulo de "vitória" em cima. Em seu afâ por literalmente inventar vitórias, chegaram a cantar como vitória o fato de que a reitoria sentou pra negociar (!) e que a USP não vai anular o semestre letivo da universidade inteira (!!).

Enfim, foi esta lógica absurda que levou a que o PSOL defendesse, em uma assembleia com quase 500 estudantes mesmo em um dia de chuva (o que para os parâmetros da Unicamp é algo sem precedentes), que os estudantes desocupassem a reitoria ao invés de seguir construindo a greve e a ocupação. Pela pouca experiência dos estudantes com a direção do PSOL - há anos não acontecia uma mobilização expressiva na Unicamp - e por sua confiança ainda inabalada, eles convenceram uma maioria cambaleante: a votação foi de 159 pela manutenção da ocupação, 231 pela desocupação e 80 abstenções. Foi o golpe fatal na greve. Voltei, na semana seguinte, para a assembleia. Menos de cem pessoas presentes. No dia seguinte à desocupação, o vice-reitor foi à imprensa desdenhando do movimento: disse que a polícia não estava descartada na Unicamp. Mas quem terminou a desmoralização de uma luta massiva foi o DCE, ao aprovar na assembleia a proposta de que o movimento estudantil faça uma campanha financeira para arcar com os custos dos estragos causados pela ocupação. o reitor Tadeu, com sua adega recheada de vinhos finos e um gordo salário, deve estar feliz de ver como foi fácil mudar o jogo, e colocar na defensiva um movimento que estava tão forte.




Em seguida, PSOL e PSTU deram mais um golpe na greve, quando acabaram com a forte greve dos professores no Rio. Aí, encerrou-se o momento de conseguir unificar as lutas, coisa que nunca tiveram como meta, pois o que se trata é de cada um conseguir a "sua vitória". Para que não digam que estou inventando, ouvi mais de uma vez dos diretores do DCE da Unicamp que "a melhor maneira de apoiar os estudantes da Unicamp é sairmos da reitoria com esta vitória, e eles verem que é possível vencer". A lógica deles é aritmética, e sua lógica é a formal: vitória da unicamp, mais vitória da USP, igual a duas vitórias para o movimento. A questão é que uma vitória unificada de USP e Unicamp tem uma qualidade muito superior a duas "vitórias" isoladas, que podem rapidamente se transformar em derrotas quando o movimento bate em retirada em plena ofensiva, como vemos na Unicamp, onde a polícia civil está chamando estudantes para depôr e preparando as punições.

Diante disto, o movimento chegou a uma situação difícil: na USP, a reitoria continuava enrolando nas negociações, sendo intransigente e arrastando a greve. Em alguns cursos, o DCE começou a tentar aplicar uma "estratégia" de conseguir vitórias locais, já que estava se tornando evidente que a greve não teria correlação de forças para conseguir sua "vitória" das diretas pra reitor. Reivindicam como exemplo em suas falas nas assembleias o curso de Educação Física, que conseguiu demandas extremamente insignificantes e corporativas, e os estudantes saíram da greve. É a mesma lógica que aplicaram na Unicamp: o melhor é sair da luta com a sua "pequena vitória" ao invés de se manter unificado ao resto dos estudantes, lutando pelas pautas que podem fazer a diferença. É a miséria do possível em sua expressão mais patética.

Nós, que não fazemos avaliações farsescas para tentar agradar ou moralizar ninguém, vimos que a única possibilidade de fazer o movimento avançar após tantas traições e erros, era radicalizar seus métodos e sua pauta, numa tentativa de trazer de volta à ativa milhares de estudantes que hoje estão em casa, fazendo com que nossa greve se enfraqueça, e ao mesmo tempo tentar dialogar com a população. Por isto propusemos uma ação de, em um ato político, quebrarmos os muros que dividem a USP da favela que está ao seu lado, a São Remo. Como já disse aqui antes, a história da São Remo confunde-se com a própria história da USP. A universidade, por sua vez, na tentativa de garantir "mais segurança" para a sua ilha da fantasia, ergueu muros no campus nos anos 1990, passou a restringir o acesso, vetou o projeto da linha amarela do metrô que previa duas estações dentro da Cidade Universitária, e colocou a polícia para patrulhar o campus. A mídia, para acabar com nossas greves, sempre as vendeu como mobilizações de privilegiados em defesa de seus privilégios. O DCE ajuda a fortalecer esta visão ao levantar como pauta central as diretas pra reitor. A nossa ideia era justamente mostrar que nossa mobilização é para democratizar radicalmente a universidade, de colocar para dentro os que estão excluídos pelo filtro social do vestibular, que só podem entrar na universidade para ocupar os postos de trabalho mais precarizados, colocando a universidade para funcionar a troco de superexploração. Mais uma vez, o DCE foi contra. Em sua concepção, este tipo de medida não dialoga. Em oposição propuseram um trancaço nos portões da USP no dia da negociação, para tentar desesperadamente arrancar alguma migalha e poder defender o fim da greve com alguma "vitória". Na tentativa de inventar vitórias, soltaram este comunicado em que enrolam muito para tentar vender suas supostas vitórias.

Agora, resta saber como vamos seguir nossa luta e derrubar os muros da USP de fato. Será que de vitória em vitória vamos chegar lá...?

quarta-feira, outubro 02, 2013

O dia D de "Dissolução do CO"!

Cartaz da Juventude às Ruas no ato do "Dia D" com programa que seria aprovado quase integralmente na assembleia à noite

(...) a consciência de classe não é uma coisa feita dos mesmos materiais
que as fábricas, as minas e os caminhos de ferro, mas de um material bem mais maleável; 
pode modificar-se rapidamente sob os golpes da crise,
sob o peso de milhões de desempregados.

- Trotsky, discussão sobre o programa com membros do SWP

A atual gestão do DCE (PSOL e PSTU) desde sua eleição estava com um plano bonitinho: os estudantes da USP vão se mobilizar em 2013 para votar pra reitor. Cada vez mais eu me convenço que este pessoal vê "os estudantes" como um tipo de gente à parte deles, gente que não deve entender as coisas e em cuja cabeça deve caber uma ou duas ideias por vez. Isto porque o programa deles para DCE falava somente duas coisas: cotas e diretas. E com isto e um programa bem colorido, desenhado e com mais de sei-lá-quantas-centenas-de-nomes em sei-lá-quantos-campi eles conseguiram se eleger, com uns consideráveis milhares de votos. E ficaram felizes, porque de novo tinham mais um ano de um grande aparato na sua mão para poder fazer esta política mesquinha. E dentro da gestão, o MES-PSOL por cima da carne seca e o PSTU...bem, o PSTU pode não mandar em muita coisa, mas pelo menos estão no aparato...e parece que cada vez mais para eles isto é o mais importante de tudo, porque NUNCA fizeram nenhuma crítica pública ao MES ou ao PSOL na gestão do DCE em dois anos de gestão em comum. Nem mesmo quando o DCE soltou a humilhante nota pública contra a "ocupação" da câmara feita "pela ANEL" (na verdade apenas pelo PSTU...).

Bom, tudo estava tranquilo com o DCE comandando a passividade na USP...mas aí veio junho, e tudo mudou. Tudo, menos a ideia do PSOL e PSTU que os estudantes sempre se mobilizam pelo que é mais evidente e "simples de entender", e não pelo que é mais correto e necessário. Façamos aqui uma distinção necessária: o PSOL é um partido essencialmente reformista, o que significa que sua estratégia para atingir o socialismo é conseguir pequenas reformas graduais por dentro do sistema capitalista até (supostamente) atingir o socialismo por vias pacíficas. O PSTU é um partido centrista, ou seja, que oscila entre posições reformistas como as do PSOL e posições revolucionárias - que têm como estratégia atingir o socialismo através de uma revolução, ou seja, da derrubada do Estado burguês e do sistema capitalista. Assim, as justificativas que cada um tem para suas "diretas pra reitor" são diferentes: o PSOL quer é "uma boquinha" no regime universitário, sonham em eleger seu mais novo filiado, o "pop star" da Filosofia, Vladimir Safatle, como reitor da USP. Assim como fizeram na Unifesp, onde a reitora já é do PSOL. O PSTU não: eles acham que garantir a votação pra reitor hoje realmente não vai democratizar de fato a USP, mas é "uma vitória", e quando os estudantes conseguem uma vitória eles se mobilizam por mais e..."de grão em grão o socialismo enche o papo".

Nós que militamos na Juventude às Ruas e na LER-QI achamos isto uma baboseira. As pessoas se mexem quando elas sentem que vale à pena se mexer, e o avanço de consciência não é feito por "etapas" ou "degraus". Elas foram às ruas em junho por isto: porque não aguentavam mais e acharam que valia a pena lutar. Quando algum reformista ou centrista me faz a já gasta comparação entre os vinte centavos (uma migalha!) e as diretas pra reitor, eu só posso ver nesta equivalência uma enorme lógica formal, um pensamento quadrado, estanque e nada dialético. Lênin dizia que os revolucionários devem estar na linha de frente da luta por cada demanda específica e econômica dos trabalhadores para elevá-las ao patamar de uma luta política contra o regime. Foi assim que atuamos em junho: estávamos na linha de frente pela redução da tarifa, mas em nenhum momento deixamos de apontar que a única forma de garantir um transporte público, gratuito e de qualidade para todos é a estatização do sistema de transporte sem indenização sob controle dos trabalhadores e usuários. PSOL e PSTU fazem o contrário: eles se diluem e se adaptam à consciência mais atrasada, para assim "dialogar" melhor. Deixam de cumprir o papel de qualquer organização revolucionária que mereça este título, e ao invés de tentar se fundir com as massas elevando o nível de seu programa, estratégia e organização, se diluem rebaixando seu próprio nível e passam de vanguarda à retaguarda que é arrastada pelas massas.

O irônico é que estas organizações se acostumaram a tal ponto a abrir mão de um programa correto em nome de "dialogar com as massas", que quando as massas vão à esquerda e assumem demandas mais progressistas, elas acabam passando por cima destas organizações com seus programas "dialogados". Trotsky dizia que muitas vezes os revolucionários estarão contra a corrente. Isto não quer dizer que não tenhamos que fazer pontes entre a consciência de nossa época e a necessidade do socialismo. Mas quer dizer que não abrimos mão de defender o que defendemos, pois se não perdemos o sentido de existir!

E ontem o DCE foi, feliz da vida, para o ato com centenas de estudantes, cujo mérito de ter construído e mobilizado a partir dos cursos foi centralmente deles, pois afinal são as maiores correntes do movimento e estão em muito mais lugares do que grupos minoritários como a Juventude às Ruas. E no ato, levaram com eles a "solução" para todos os problemas: desde a contaminação no campus da EACH, passando pelo currículo da Direito, pelas catracas da FEA, pela falta de professores da Letras, pela reforma da FAU, pelos espaços estudantis da ECA...tudo se resolveria... votando pra reitor!!! E eles convenceram centenas de estudantes disto, porque, afinal fazia sentido! Se eu voto pra reitor, posso exigir uma representação adequada! O curioso aqui é como se deu esta mobilização: o DCE colocou seus esforços, e colocou mesmo para discutir as diretas pra reitor nestes cursos, e fez uma coisa correta ao dizer que os problemas específicos estão ligados a como se governa a universidade em seu conjunto; mas ao fazer isto deu esta resposta capenga, que não responde em nada! No fim das contas, estão dizendo: o problema não é esta burocracia parasita e nojenta que governa a universidade, o problema é que eu não posso votar em um dos burocratas! E eles convenceram os estudantes achando que esta pauta era a mais mobilizadora. E os mobilizaram para o seu "Dia D" de "Diretas pra reitor". Só que este D foi de outra coisa...

Algo saiu do script do DCE, logo quando eles tinham centenas querendo votar pra reitor mobilizados. A primeira coisa é que fazia tanto tempo que eles não ocupavam uma reitoria, que já não sabiam mais como se fazia: os últimos militantes destes partidos que participaram de uma ação assim se formaram há tempos. E lá se foram eles, querendo derrubar portas de aço blindadas com chutes e pedaços de pau! Mas tudo bem, este problema foi contornado: conseguimos enfim, sob a liderança um pouco atrapalhada do DCE, entrar pela porta lateral. Tinha outro problema por vir, no entanto, e este era um pouco mais grave. O problema é que pra lá dos milhares de votos despolitizados nas eleições, das reuniõezinhas de cúpulas às sextas-feiras na salinha do DCE, dos conchavos de gabinete com mil e um burocratas, para lá de tudo isto existe um pessoal que teima em existir e atrapalhar os planos do DCE; este pessoal são aquelas "seitas ultra-esquerdistas" que "não dialogam com as massas". Entre estas "seitas ultra-esquerdistas" (qualquer semelhança com o discurso dos burocratas da CUT do Sindicato de Bancários sobre os quais escrevi outro dia não é, infelizmente, mera coincidência) está a Juventude às Ruas.

E nós estávamos no ato e na assembleia de ontem, com cerca de 800 estudantes. Contudo, o DCE não prima pela democracia nestas assembleias. Imagino que, na visão deles, dar espaço democrático para estas "seitas" falarem e colocarem suas propostas não ajuda a democracia de fato, que vai se realizar plenamente no diálogo entre seu programa rebaixado e os "estudantes normais". Assim, ontem, eles ligaram o trator e passaram por cima de nossa proposta de discutir cada ponto de nossos eixos de greve; isto levou a que rapidamente aprovassem um "blocão" de propostas com a solução para todos os problemas que já haviam apresentado para os estudantes ali presentes: "eu quero votar pra reitor!"

Foto do meu celular sem flash da assembleia geral em frente à reitoria

Mas, ao contrário do que o DCE pensa, os estudantes são bastante espertos, e sua consciência pode avançar aos saltos quando a situação histórica permite. E, depois de junho, a situação histórica neste país permite. O balanço que o DCE faz de junho é: conseguimos os vinte centavos, e agora os estudantes estão muito mais fortes para conseguir as diretas pra reitor. Nós, por outro lado, achamos o seguinte: em junho as pessoas disseram basta, e começaram por vinte centavos mas terminaram questionando os governantes e seus esquemas. Se o próprio regime eleitoral decrépito da burguesia está sendo questionado, porque os estudantes aqui dentro vão querer entrar em greve para votar pra reitor? Se votar pra presidente, governador, prefeito e parlamentares não mudou nada, o que vai adiantar votar pra reitor? As pessoas se mobilizam por mudanças efetivas. E elas estavam lá com a pauta de diretas ontem porque era a mudança mais efetiva que viam. No entanto, ao longo da assembleia ouviram pela primeira vez outras propostas: ficaram sabendo que quem dirige de fato a universidade é o Conselho Universitário (CO, de acordo com a sigla imbecil criada pela reitoria), que é composto por um punhado de professores parasitas que lucram com a terceirização e as fundações privadas; que para mudar a USP precisamos acabar com este CO e fazer um novo Estatuto; que a forma mais democrática de governar a USP é com um governo composto por professores, funcionários e estudantes, com membros revogáveis. Todas estas propostas foram aprovadas ontem na assembleia, para o desgosto do DCE que apenas "quer votar pra reitor".

Contudo, as resoluções da assembleia ainda expressam a confusão entre o programa velho (diretas pra reitor) e o novo, que responde em sua raiz aos problemas da democratização da USP. Agora, trata-se de ir pra cada curso desta universidade discutir com os estudantes este programa. Enquanto isto, o DCE da USP deve estar quebrando a cabeça com a seguinte questão: ora, mas estes não são uma seita parasita com um programa que não dialoga com os estudantes? Mas a assembleia não era composta por estudantes que aprovaram o programa deles? O programa que não dialoga com os estudantes? Então, podemos concluir que os estudantes não dialogam com os estudantes... que esquisito né? Como será que o DCE vai resolver este enigma?
Outro craft da Juventude às Ruas e do Pão e Rosas com outra parte fundamental de programa (a ser aprovado em breve...?)
Por fim, espero poder desenvolver este tema em outros textos, se a falta de tempo durante a greve permitir! Mas acho fundamental antecipar e deixar registrado que a nossa greve só pode ser vitoriosa se conseguirmos extrapolar as demandas da USP e nos aliarmos aos trabalhadores levantando alto as demandas de efetivação dos terceirizados sem concurso público e por cotas raciais proporcionais e pelo fim do vestibular. Por uma USP radicalmente democrática!!!

sexta-feira, setembro 27, 2013

Piquete do Brás: o dia em que os terceirizados disciplinaram a burocracia sindical

Companheira do call center em apoio à greve dos bancários

São seis horas da manhã quando vou chegando ao piquete do Brás; um grande prédio no qual funciona uma agência mas cuja principal função é administrativa e de sede de um grande call center da Caixa Econômica. Já sabia que seria um piquete diferente do último que participei, o piquete da Sete de Abril no primeiro dia de greve. Algumas mudanças importantes haviam ocorrido desde aquele dia. O piquete da Sete, modesto em suas proporções, havia aberto uma via há muito fechada nas greves dos bancários de São Paulo: a da ação independente e auto-organizada dos trabalhadores a partir das bases. O significado simbólico disto e, principalmente, o potencial latente na hipótese de que este pequeno exemplo se generalize e se torne uma ação comum em toda a categoria ou em parte significativa dela foi algo que caiu como uma bomba no água parada da passividade construída cuidadosamente por décadas da burocracia da CUT. A pequena pedra atingiu esta água e formou ondulações que foram se espalhando por toda a categoria, agitando estas águas calmas. Agora, estas ondinhas chegavam no Brás, já maiores do que no lugar onde a pedra atingiu a superfície da água.

No segundo dia da greve, quando o piquete do Avante Bancários fechou o prédio da Sé, os resultados das perturbações na água parada da burocracia cutista já se notavam. Uma gerente disse: "fiquei sabendo do que vocês fizeram ontem na Sete e não acreditei que era verdade. Agora estou vendo que é." Sim, é verdade. É uma oposição pequena, minúscula. A direção majoritária do PT adora "se gabar" deste fato; nisto, não estão sozinhos: a "oposição majoritária" do Movimento Nacional de Oposição Bancária (MNOB), dirigida pelo PSTU, também se arroga o direito de desprezar aquilo que costumam qualificar como "seita": as agrupações menores de oposição, em sua visão sempre ultra-esquerdistas (ainda que raramente se dediquem a decifrar o conteúdo desta sua crítica). Esta oposição era a pedrinha caindo na água. As pequenas expressões da passividade já mostravam a novidade de tudo aquilo: enquanto estávamos no piquete da Sete no primeiro dia, o camarada Edu ligou pro seu sindicato pedindo um advogado para nos ajudar com a polícia. A secretaria do sindicato tenta entender o que está acontecendo: "Vocês estão no piquete?", pergunta. "Isso", responde Edu. "Mas você trabalha na Caixa?", supreende-se a secretária pela primeira vez, já que os piquetes dos bancários são há décadas feito pelos "terceirizados", gente contratada pelo sindicato para "fazer um bico" piquetando as agências enquanto os bancários vão pras colônias de férias com desconto da APCEF. Edu confirma: ele trabalha na Caixa. "Mas você trabalha nesta agência mesmo?", pergunta a inconformada secretária. Onde já se viu isto? Um bancário fazer um piquete em seu local de trabalho? Ora, mas isto sem dúvida não era coisa do sindicato... é, não era mesmo. Ainda assim, a desconfiada secretária mandou um advogado para averiguar aquela estranha situação de trabalhadores protagonizando a sua própria greve.

Pasmem, ó "históricos" dirigentes do movimento de bancários! Pasme, ó "histórica" oposição bancária: estas pequenas "seitas ultra-esquerdistas", reunidas no Avante Bancários, mudaram alguma coisa na "greve de calendário", com direito a promoção na colônia de férias, piqueteiros "terceirizados", censura a falas na assembleia e o todo o tipo de burocrateadas bárbaras que se possa imaginar na rotina de um punhado de ratos velhos que mama nas tetas do imposto sindical, deitados em berço esplêndido. O piquete da Sé, logo após o da Sete de Abril, mostrou que não se tratava de um importuno episódio: a oposição pela base estava nascendo pra valer. Era necessário mexer o traseiro acomodado da cadeira de burocrata para conter esta semente da discórdia, pronta a brotar no seio do movimento operário e sindical dos bancários. Dito e feito, porque macaco velho da burocracia não vai abandonar "a luta" (leia-se, seus cargos bem remunerados do sindicato) pra um punhado de moleques aparecerem como um setor combativo na "sua" greve: no piquete da Avenida Paulista, o terceiro da greve, lá estava o sindicato e, seguindo-o como "uma sombra à esquerda", o MNOB. Sobre este piquete, não posso dizer muito além disso, porque não estava lá.

Mas era este o cenário político da greve quando me dirigi, na manhã de ontem, para o prédio do Brás. No metrô, já vi algo que podia indicar uma mudança: um militante do PSTU, estudante da USP, sentado no mesmo vagão que eu. "Vai pro piquete, o PSTU está colocando seus estudantes para apoiar", pensei, entusiasmado, sentindo a mudança no ar. Mas quando o trem passou pela Sé, meu engano se desfez quando ele desceu; devia estar indo pro trabalho. Por isto, não pensei que seria nada diferente quando desci no Brás e avistei, do outro lado da rua, Altino, presidente do Sindicato dos Metroviários e militante do PSTU. "Deve estar indo pra outro lugar...". Desta vez, subestimei-os: Altino estava indo para o piquete. E quando cheguei lá, muitos rostos desconhecidos estavam já em frente aos quatro acessos ao prédio.

Altino, presidente do Sindicato dos Metroviários, no piquete do Brás

Aos poucos, com a ajuda de meus camaradas, fui conhecendo suas filiações partidárias, sindicais, ideológicas: diretores do sindicato do PT e da CUT, oposicionistas do PSTU, militantes da ASS, MR e outras agrupações que compõem conosco o Avante Bancários. No total, mesmo com esta "disposição para a luta" demonstrada pela direção e oposição, nossa "pequena seita ultra-esquerdista" ainda era maioria no piquete, e a única organização que havia mobilizado a juventude e os estudantes para apoiar ativamente a luta. Segundo me informaram, poucos efetivos trabalhavam no prédio; mas cerca de mil terceirizados do Call Center se dividiam pelos turnos. E logo começaram a chegar. A imensa maioria eram mulheres, jovens e negras: os rostos de sempre quando falamos dos trabalhos mais precarizados. E é disto que se trata no call center de um banco: setecentos e poucos reais por mês, cinco e cinquenta de vale alimentação, sem direito a faltas, sem direito a pausas para ir no banheiro, tempo contado em vinte minutos para o almoço (com 500 funcionários e 3 microondas para esquentar a comida!), assédio moral generalizado, metas de vendas sem comissão (mas com "brindes", como ingressos pro cinemark!), vale creche de 130 reais (que era necessário comprovar a necessidade todo mês com firma reconhecida em cartório!)... enfim, mesmo a lista apenas das coisas que ouvi hoje já é grande demais para colocar aqui, mas acho que deu pra entender o espírito da coisa. Tudo isto para vender a pessoas coisas que elas não querem e não precisam, tentando bater mil metas que não interessam a nenhum ser humano exceto os banqueiros e seus comparsas.

As primeiras trabalhadoras se surpreenderam pelo fato de que não as deixaríamos entrar: afinal, a greve era dos bancários, e elas eram do call center. Enquanto conversávamos tranquilamente com elas, tentando dizer porque deveria ser uma luta de todos e a necessidade de unificação, os burocratas do sindicato chegaram junto querendo "mostrar serviço" no piquete, tratando-as da mesma forma que tratariam um efetivo fura-greve, sem agressões mas de forma impositiva, simplesmente informando que não iriam entrar... Contudo, bem distinto foi a postura que vi estes senhores terem alguns minutos depois, quando apareceu o gerente geral do prédio, ou ainda com o gerente de pessoal que já estava dentro do prédio antes das quinze pras seis, quando o piquete começou: muitas piadinhas amigáveis, risadas, uma relação curiosamente fraternal para quem está do outro lado da greve. E era assim: os militantes do MNOB extremamente cordiais com aqueles mesmos burocratas que vetam a palavra aos bancários nas assembleias utilizando bate-paus contratados do sindicato; os diretores do sindicato, por sua vez, extremamente amáveis com a chefia que impõe metas, assédio moral, super-exploração sobre os funcionários. Vendo aquilo, parecia até que a greve e o piquete eram uma encenação para eles, uma obrigação a cumprir no dia, depois da qual todos poderiam perfeitamente se sentar numa mesma mesa de bar para uma boa conversa. Se é isto que é luta de classes, eu acho que toda minha "inexperiência" me ensinou coisas bem malucas e esquisitas nas greves da USP ou nas leituras da história do movimento revolucionário que talvez tenham que ser rebatizadas com algum outro nome!

Terceirizadas do call center do turno da manhã começam a se juntar na praça em frente ao prédio
As trabalhadoras terceirizadas foram para o outro lado da rua e começaram a se juntar por lá, primeiro cinco, depois quinze...logo eram centenas. São umas sete da manhã quando a burocracia liga o "seu" som. Se no primeiro dia de greve tivemos que recorrer ao Centro Acadêmico de Letras da USP para poder ter uma mera caixa de som no piquete da Sete, ontem o cenário era um bocado diferente. Uma tenda montada em frente ao prédio com duas belas caixas de som apoiadas em pedestais; microfone, mesa de som, um operador para o equipamento; além disso, ganhamos lanchinhos (suquinho de caixinha, sanduíche de peito de peru com queijo e maçã, tudo embaladinho num saquinho), café e água à vontade.
Lanchinho também "terceirizado" do sindicato para o piquete

É triste como todo o aparato do sindicato é na realidade de seus diretores (leia-se burocratas), estando à disposição quando eles querem. Comendo aquele lanchinho me lembrei do simples "x-greve" do sintusp: um pão com manteiga, ou mortadela, ou queijo ou um patê. Nos dias "de luxo", era com salsicha. Comíamos todos juntos, trabalhadores e estudantes, terceirizados e efetivos, e até mesmo os poucos professores que apareciam por lá. Na greve dos bancários, contudo, os terceirizados do outro lado da rua não receberam uma sacolinha com lanchinho... até nas pequenas coisas o sindicato naturaliza a divisão da classe.

Abre-se o microfone e o primeiro a falar é um burocrata jovem, em formação ainda. Sua fala, bastante ruim em geral, me chamou a atenção pelo conteúdo de sua denúncia à terceirização: centrava-se no questionamento à Lei Mabel (PL 4330), cujo objetivo é o de ampliar a terceirização para as chamadas "atividades fim", ou seja, tirá-la do âmbito das funções que a justiça burguesa resolveu classificar como "menos importantes", como a limpeza, segurança, call center e passar para bancários diretamente, no caso desta categoria, impondo uma nova divisão que passa da já aplicada hoje no seio da categoria para uma nova que divide até mesmo os que dentro de uma categoria exercem uma mesma função. É evidente que o combate à Lei Mabel é uma tarefa fundamental de qualquer trabalhador, mas o relevante neste caso é o corporativismo do burocrata da CUT, que pensa apenas na sua "base eleitoral" que pode perder o emprego por causa da nova lei. E as centenas ali do outro lado da rua, para quem a Lei Mabel não muda nada e que hoje já sofrem os efeitos da terceirização? Para eles algumas palavras ao vento sobre como é duro seu trabalho...

Edison, delegado sindical da Caixa e militante da LER-QI e da agrupação Uma Classe, pega o microfone em seguida para se dirigir justamente às terceirizadas, falando da necessidade de unificar a luta e que o sindicato passe a lutar pela efetivação sem concurso público, garantindo os mesmos direitos e salários para as trabalhadoras do call center. A fala é aplaudida por elas, mas moderadamente. Acho que pensaram que se tratava de mais um demagogo sindical ou algo assim. Contudo, depois que passamos conversando pessoalmente com elas nos pequenos grupos, alguma coisa parece mudar.

Taís, delegada sindical da Sé e militante do Uma Classe, conversa com as terceirizadas
A próxima fala é bastante aplaudida quando se refere às condições de trabalho dos terceirizados. As trabalhadoras do outro lado da rua começam a ver que aquele evento pode não se tratar apenas de uma paralisação dos bancários que as deixe do lado de fora, mas pode ser uma oportunidade para que, sob a cobertura democrática da greve de uma categoria mais forte e estável, elas possam começar a colocar suas demandas e construir uma unidade. Mas não é apenas nelas que se opera uma mudança: mais uma vez os macacos velhos da burocracia veem que é o momento de relocalizar seu discurso velho e gasto. Como uma ameba fagocitando ao seu redor, os burocratas sentem a ameaça de centenas de trabalhadoras simpatizando com a "seita ultra-esquerdista" e o perigoso potencial desta união, e começam a incorporar no seu discurso a luta pelos direitos dos terceirizados.

O piquete vai se mostrando como uma frente-única com um delicado balanço de forças, na qual existe um constante tensionamento entre as forças políticas que a compõem para disputar seus rumos; nós conseguimos ir empurrando o sindicato à esquerda em seu discurso, mas sem esquecer em nenhum momento que se tratam de agentes da burguesia no movimento operário; nos aproveitamos das brechas: nossa camarada Virgínia é vetada de fazer uma fala pelo Pão e Rosas; Edison pega o microfone para falar e passa para nossa camarada. O burocrata não pode - pelo menos naquele espaço - arrancar o microfone à força de sua mão. Um sorrisinho irônico e um tapinha nas costas de Edison são a sua resposta, como quem diz: "aproveita aqui que você pode fazer isto, e espera até a assembleia pra ver quem que manda". Meu camarada permanece impassível, sem responder nada à provocação. São sutilezas que denotam um abismo entre as concepções de nossa organização e a de outras; a convivência pacífica do PSTU com a burocracia sindical denota isto: tapinhas nas costas de um lado a outro, acordos feitos por cima. Edison se aproveita da correlação de forças favorável que é garantida não por nossa pequena corrente, mas pelas centenas de trabalhadoras do outro lado da rua. É assim que os revolucionários "negociam": apoiando-se na força que os próprios trabalhadores tem para garantir espaços em que se manifestem suas demandas; o PSTU, pelo contrário, conta com a força dos aparatos e negocia o que estes lhe permitem. Por isto é capaz de dirigir oposições tão imensas quanto inofensivas, não só em bancários mas em outras categorias fundamentais como a de professores. Por isto sobem em palanques e carros de som abraçando nossos inimigos de classe, como o Paulinho da Força. Não compreendem que temos, sim, que fazer frentes-únicas com estes burocratas, mas que seu principal objetivo é desmascará-los, e que justamente por isto estas frentes-únicas não podem se formar a partir de acordos "por cima", baseados em quem tem mais ou menos aparatos sindicais, mas devem ser formadas a partir das bases, a partir da força que tem os trabalhadores para impor que os burocratas tenham que "fazer uma pose" mais de esquerda em nome de manter seus cargos.



Era exatamente isto o que acontecia no piquete do Brás: uma correlação de forças inusitada era garantida para nossa pequena agrupação na frente-única graças às centenas de terceirizadas que se aglomeravam na praça; elas garantiam que pudéssemos falar e o que podíamos falar. Edison, por exemplo, não chega em sua fala a expor os podres da burocracia sindical abertamente, mas na verdade o faz em forma de exigência: "Trabalhou em banco, bancário é, diz o lema", ele se apóia aqui nas palavras ao vento do próprio sindicato, "é preciso colocar em prática, e para isto temos que lutar pela efetivação dos terceirizados sem concurso público". Ele não deixa de falar que o sindicato é formado por burocratas parasitas porque está capitulando, mas porque a correlação de forças não permite que o faça, e isto porque as trabalhadoras do outro lado da rua - ao menos em sua maioria - não sabem ainda que o sindicato dos bancários é formado por parasitas; falta-lhes a experiência para que saibam disto. Neste caso, a atuação de um revolucionário é para acelerar esta experiência, mostrando nos fatos que a burocracia não quer efetivamente defender os terceirizados. Dissesse o Edison: "Este sindicato dos bancários é composto por uma burocracia governista e pelega, que não move uma palha sequer para defender efetivamente os interesses dos terceirizados!", esta fala jogaria em favor dos burocratas e serviria para não mais do que o consumo próprio da consciência de seu falante, que poderia se consolar dizendo "puxa, como sou de esquerda!". As trabalhadoras não iriam achar o sindicato mais pelego por causa disso, mesmo porque em seguida os burocratas fariam falas inflamadas em defesa de seus direitos (como de fato o fizeram) e a maioria das trabalhadoras pensaria: "nossa, aquele cara que falou antes era meio louco, né?" E seria muito mais fácil para o sindicato simplesmente não dar mais o microfone para o Edison, porque as trabalhadoras se sentiriam bem pouco propensas a defender seu direito de falar.

Quando Edison se apóia no lema do próprio sindicato e, se possível, nas palavras dos próprios burocratas, e aponta que para ser consequente com isto o sindicato deve defender a efetivação, então ele coloca os burocratas contra a parede: eles podem defender a efetivação no microfone, e isto é uma nova arma para exigir deles a prática e denunciá-la se não for feita; ou eles podem manter suas palavras ao vento sem a efetivação, e aí torna-se mais fácil mostrar para os trabalhadores que são palavras ao vento. E quem disciplina o sindicato é a unidade entre as trabalhadoras terceirizadas do outro lado da rua, e a expressão consciente de suas demandas através de um programa, feita nas falas de Edison, Taís, Virgínia e outros camaradas que, neste caso, estão em uma situação em que o sindicato dificilmente poderá chamá-los de "seita ultra-esquerdista", mas, pelo contrário, tem é que assimilar muito de seu discurso para ficar "bem na fita" com as centenas de trabalhadoras do outro lado da rua.

E é por isto mesmo que chegam ao ponto, em outra circunstância impensável, de abrir o microfone para que uma das próprias trabalhadoras se manifeste. E que manifestação! Quando a trabalhadora toma o microfone em suas mãos, palavras há muito guardadas para serem ditas aos quatro ventos saem com uma fluência extraordinária. As condições de trabalho absurdas a que são submetidas estas mulheres subitamente se espalham pelos quatro cantos da praça através da caixa de som do sindicato. As mulheres do call center, acostumadas a terem sua voz calada e seus direitos esmagados sob o peso da patronal, vibravam ao ouvir seu suplício diário ecoar na voz da sua companheira. Os burocratas do sindicato, calados, acompanhavam as trabalhadoras para não serem atropelados por elas...



Depois, o gerente do call center aparece na porta de entrada das trabalhadoras (sim, até uma porta diferente de entrada elas têm!) e tenta avaliar a "razoabilidade" dos grevistas: "Olha, eu tenho uma empresa que presta serviço aí e as trabalhadoras precisam entrar". "Então, não vai dar, estamos em greve." respondemos tranquilamente. "Sim, mas a greve é dos bancários, elas são de outra empresa." Edison dá uma de "joão-sem-braço" e explica ao senhor gerente o be-á-bá do seu trabalho de explorador, deixando didaticamente claro que se o fulano ajoelhasse e implorasse não faria a menor diferença: "Só que esta coisa de ter outra empresa é o que o banco faz pra dividir e enfraquecer a nossa luta, então não vai poder entrar." O gerente entendeu o recado, e sem nenhuma sombra de diplomacia dá às costas aos seus inimigos e vai procurar outros meios de resolver os problemas. Afinal, ele não se tornou gerente por insistir em métodos ineficazes de resolução dos problemas.

Gerente do call center tenta usar seu telefone para fazer um milagre e explorar as trabalhadoras mesmo com o prédio fechado...ele não conseguiu, tadinho, e teve que dispensar elas.
Assim, o dia transcorre, e os burocratas do sindicato, tomado de uma incrível consciência de classe, cercam as terceirizadas de solidariedade, de atenção, como se desde sempre tivessem se importado com seus problemas. Vejo-os anotando seus problemas, garantindo assistência... sinto-me na necessidade de alertá-las sobre o que há de fundo em "tanta amizade". Contudo, a conversa que tenho com as que conheci mostra que elas já estão é bem calejadas com a burocracia. Falam de experiências com seu próprio sindicato e quando explico porque está tendo piquete ali, por causa da pressão do Avante Bancários, ela dizem: "É, dá pra ver mesmo porque nenhum outro dia de greve teve piquete aqui." Me perguntam se no dia seguinte o piquete vai continuar e, por mais que eu queira dizer que sim, nossas forças ainda não podem garantir isto. Continuaremos no piquete rotativo, pelo menos por enquanto...

Sindicato dá lanche para as trabalhadoras terceirizadas que ficaram por ali, como parte da "súbita consciência de classe" dos burocratas da CUT.
Quando estamos ali em frente ao prédio, de repente recebemos um bilhete jogado pela janela: é um pedido de socorro. Em algum momento que não se sabe onde, e por alguma porta que não se sabe qual, os patrões conseguiram colocar as trabalhadoras terceirizadas da Brasanitas, empresa de limpeza e manutenção que atua no prédio, para dentro. E, claro, exercendo seu direito de patrão não iriam deixá-las ir embora pelo mero fato que que todo o prédio estava fechado e não havia mais ninguém lá dentro, tornando o trabalho delas absolutamente dispensável. Ora, se o patrão pagou, ele quer o trabalho feito, mesmo que não haja trabalho para fazer! Infelizmente, não tínhamos como resgatar os poucos trabalhadores que lá dentro eram obrigados a cumprir seu turno... eles saíram apenas algumas horas depois.

Bilhete dos trabalhadores da Brasanitas que foram forçados a permanecer dentro do prédio pela patronal
No turno da tarde, o mesmo se repete. Centenas de trabalhadoras se juntam, a gerente se descabela tentando fazer todo mundo entrar, e no fim são todas dispensadas. Eu, neste momento, acompanho tudo por informes, porque estou na entrada lateral, onde não acontece muita coisa fora uma ou outra pessoa que tenta entrar de carro e é dispensada por nós. Converso com companheiros sobre a greve, sobre a revolução russa, sobre o movimento estudantil e vejo o dia passar no nosso posto de guarda.

Turno da tarde do call center se junta em frente ao prédio.
No fim da tarde vamos embora. Como no piquete da Sete, este não foi mais um mero dia de paralisação de um prédio. Para além dos milhões em prejuízo que demos ao banco, algo mais importante aconteceu ali: uma aliança pequena, pontual, entre estudantes, trabalhadores efetivos e terceirizados; uma aliança entre revolucionários e trabalhadores precarizados; uma aliança que, em seu pequeno momento, disciplinou uma poderosa burocracia no controle de um imenso aparato, a defender os interesses dos terceirizados para não perder o bonde. É pequena, mas é um exemplo. Um exemplo de que quando colocamos o marxismo em prática, na luta de classes, com uma atuação e uma estratégia para vencer, mesmo um grupo tão pequeno que é abertamente chamado de "seita ultra-esquerdista" pode fazer a diferença. E, sem dúvida, esta pequena diferença foi só o começo. E uma boa parte das trabalhadoras que ali estiveram mudaram sua cabeça e irão por mais. Nós estaremos ao seu lado, ombro a ombro, em cada pequeno combate, construindo a ferramenta que vai poder levar esta luta à vitória: o partido revolucionário.

Juventude às Ruas guardando a porta lateral do prédio da Caixa.

sexta-feira, setembro 20, 2013

Uma greve, uma reação



Sete horas da manhã na porta da Agência Sete de Abril, no centro de São Paulo. Primeiro dia de greve dos bancários em todo o país, uma chuva cobre a cidade desde a madrugada, e minha casa amanheceu sem luz. Em uma manhã tão boa para ficar embaixo dos cobertores, eu e mais alguns camaradas da Juventude às Ruas da USP e Metroviários pela Base fomos apoiar os trabalhadores da Sete, que desde 2011 passaram a combater a passividade construída por décadas de uma direção sindical parasitária e acomodada, que está lado a lado com o governo que há mais de dez anos garante lucros recordes para os banqueiros brasileiros.

A burocracia sindical da CUT está há décadas encastelada no sindicato graças à estrutura sindical que existe no Brasil desde a época de Getúlio Vargas e suas reformas sindicais que atrelaram os sindicatos ao Estado, e também aos parasitas que hegemonizaram o PT, transformando um dos maiores partidos de trabalhadores criado no país em um mero aplicador das políticas da burguesia. Parasitas bem remunerados, que há anos não trabalham e vivem do imposto sindical e de fazer acordos com a patronal, fazendo de tudo para impedir a organização política independente dos bancários. Suas greves de calendário são uma triste rotina do movimento sindical brasileiro. Nelas, o sindicato contrata funcionários para fazer sua "greve terceirizada": eles passam nas agências, colam adesivos de greve e faixas, às vezes colocam um "piqueteiro terceirizado" para ficar na frente da agência por 50 reais! E só para ilustrar a seriedade com a qual estes dirigentes encaram a mobilização dos bancários, por uma "coincidência" incrível a APCEF (Associação de Pessoal da Caixa Econômica Federal) está fazendo uma "promoção relâmpago" das suas colônias de férias na semana em que se inicia a greve!!! Por isto, quando dizemos que é uma passividade construída, não estamos dizendo à toa: o interesse material dos parasitas do sindicato é que os trabalhadores continuem reféns de suas negociações com a patronal sem nenhuma interferência da base, e colocarão todos os seus recursos a serviço de atingir este fim. Mais uma mostra disso é a "democracia" que garantem nas assembleias dos bancários, contratando bate-paus para impedirem os trabalhadores de falarem e, quando a correlação de forças não permite que impeçam a oposição de se manifestar, eles colocam seus "funcionários" para vaiar, como na assembleia do dia 12/09.

A Sete de Abril quer ser tudo o que a burocracia petista não quer: uma agência que se organize desde a base para colocar os trabalhadores como sujeitos de sua greve; uma agência que faça de seus bancários verdadeiros tribunos do povo, lutando contra a precarização do atendimento aos clientes e unificando a luta salarial pela luta política contra os banqueiros seus governos que defendem seus lucros a ferro e fogo; uma agência em que os efetivos lutem pela unificação com os terceirizados, por sua efetivação e contra a super-exploração dos trabalhadores das lotéricas que tem que cumprir função de bancários por um terço dos salários; uma agência que combata a burocracia sindical e a polícia, resgatando os métodos históricos de luta dos trabalhadores; uma agência, enfim, que ultrapasse as greves fajutas das data-base e alce a luta pontual dos bancários a um verdadeiro embate entre classes: bancários e clientes contra banqueiros e governos. Foi com esta moral e este método que paramos a sétima agência mais lucrativa da Caixa em todo o país, para desgosto dos capitalistas, dos burocratas, dos policiais, dos reacionários.

É por isso que participar do Piquete da Sete é uma experiência tão recompensadora e desafiadora. E não tardou para que a combatividade dos trabalhadores da Sete e do Avante Bancários provocasse a reação dos que veem na luta dos trabalhadores uma ameaça. Aproxima-se do piquete uma senhora, que manifesta seu desejo de entrar. Nós, como fizemos em todos os casos anteriores, explicamos que a agência está fechada, e ainda indicamos que na da República está funcionando o auto-atendimento. Quase todos que passaram por lá agradeceram a informação e andaram um quarteirão para utilizar a outra agência (entupindo os fura-greves de trabalho extra). Mas não esta senhora. Para ela, é uma questão de princípios, de direito, de dignidade. Se as máquinas estão ligadas, ela tem o direito de entrar. Nós explicamos, calma e pacientemente, que não: os funcionários estão em greve. Mas é o caixa-automático, explica ela. Mas ele é operado por pessoas, explicamos nós.

O diálogo chegou ao seu limite, ela não vai arredar pé de seu "direito", e anuncia que respeita o direito de greve dos trabalhadores e que eles devem respeitar o dela. Como ela própria afirmou posteriormente, sua posição cabe no chavão: o meu direito acaba onde começa o direito do outro. É assim que a burguesia liberal cunhou sua noção de liberdade, pois os direitos dos trabalhadores de uma vida digna acabam onde começa o direito à propriedade privada. Para os comunistas é o inverso: o meu direito começa onde começa a liberdade e o direito do outro. A liberdade entre os indivíduos não é fruto de uma competição, mas de uma cooperação, onde a sua liberdade me torna mais livre e vice-versa. Um pensamento tão simples e verdadeiro, que contudo nunca caberia na cabeça daquela mulher, moldada por um mundo com muitos direitos para poucos e poucos direitos para muitos.

Ela pega seu telefone. Adivinhando sua intenção, eu lhe informo: "tem uma viatura ali do outro lado da rua". É exatamente para lá que ela vai. Nos divertimos vendo a cara de desgosto do policial que tem sua ociosidade interrompida pela mulher que se recusa a andar mais um quarteirão para usar o caixa eletrônico (é uma questão de direitos!). Depois de um tempo e muita encheção de saco, ela convence o policial a "servir e proteger"...o direito de afrontar uma greve. Chegam mais viaturas, os policiais se aproximam, pedem pelo líder. Nosso camarada Edison, militante da LER-QI e do Uma Classe, delegado sindical da Sete, se apresenta.


Ouvimos a boa e velha ladainha que todos os coxinhas devem aprender no seu manual de adestramento de cães de guarda: a greve é um direito que ele não contesta; mas ele está lá para fazer cumprir a lei, e a mulher tem o direito de entrar. Ele, inclusive, também garante o direito dos bancários fazerem greve (será que ele realmente espera que alguém acredite nisso?). Escolhemos um argumento bastante simples e compreensível: não adianta ela usar o caixa, os operadores deles não vão trabalhar. O policial retruca: "Mas o caixa é automático". Sim, mas alguém opera ele! "Ah, você quer dizer que quando alguém pede dinheiro fica uma pessoa ali pra dar o dinheiro?" Provavelmente o policial, em toda a exuberância do funcionamento de seu cérebro de assassino fardado, imaginava um homem - talvez um anão - dentro da máquina enfiando cédulas. O coitado não consegue imaginar a diferença entre "automático" e "mágico"; não entende que a máquina não fabrica dinheiro, não processa os depósitos, e não prescinde do trabalho de um ser humano que a opere. Este argumento custou a entrar em sua cabeça. Minha vontade - evidentemente e infelizmente não realizada - foi de lhe dizer: "bom, chamam sua pistola de automática, mas mesmo assim precisam de um imbecil como você operando ela para que possa matar. É a mesma coisa com o caixa: ele chama automático mas são pessoas que operam ele. A diferença é que ele não mata e é operado por trabalhadores, não por assassinos". Acho que seria didático e ele entenderia na hora, mas me custaria mais problemas do que tentar fazê-lo entender por outras formas mais sutis.

Por trás desta pequena "ingenuidade" do soldado servidor da lei está, no entanto, algo muito mais significativo do que a sua mesquinha estupidez: está o processo ideológico que desde sempre se utilizou para esconder a verdade elementar de que a produção de tudo o que existe depende exclusivamente do trabalho de mulheres e homens explorados cotidianamente. Começa com o fetiche da mercadoria, em que o trabalho humano aplicado na produção de todas as coisas está distante de nossos olhos e de nossa mente: as coisas parecem surgir como um passe de mágica (como o dinheiro no caixa-eletrônico!); nos últimos trinta anos, o discurso permanece o mesmo mas ganha nova roupagem: as máquinas fazem tudo, não há mais trabalhadores. Procura-se dizer que a classe trabalhadora não existe mais. A academia vomita este senso comum burguês como uma verdade inabalável. A polícia o mastiga de forma rudimentar no piquete da Sete, enquanto ameaça levar todo mundo pra delegacia. Mas quando os trabalhadores decidem se organizar e passam a confiar nas suas próprias forças, já não é mais tão fácil convencê-los de que eles não podem. Eles descobrem que podem muito mais do que sempre lhes disseram.

Em meio ao discurso da mulher, que agora se revelou uma advogada (tá explicada a fixação pelos "direitos"!), repassa seus argumentos. Exclama, entusiasmada: "vocês não sabem a força que têm, deveriam estar em outro lugar." Mas acho que quem não sabia a força do piquete da sete era ela... "Eu nem discuto o direito de greve de vocês, mas tem que respeitar o meu direito. Se o caixa está ligado, eu tenho direito de usar". Ou seja: respeito o direito de greve, contanto que ele não paralise a produção; em outras palavras, respeito seu direito contanto que ele não sirva para nada. Ela não discutiu mesmo o direito de greve: para fazer isto ela contou com a polícia; eles teriam argumentos mais persuasivos...

Mas o verdadeiro conteúdo social de sua revolta se expressou mesmo na seguinte colocação: "Se estivesse fechado o banco, aí seria outra coisa. Mas vocês que estão impedindo a passagem!" Ah! Agora eu entendi! Se fosse a patronal fechando o banco e impedindo os clientes de usar o serviço, não tem problema. O problema mesmo é que os trabalhadores estavam se organizando para parar o banco; o problema mesmo é que os trabalhadores tiveram a petulância de afirmar que são eles os produtores, e por isto podem controlar a produção. Por isto ela não podia andar um quarteirão a mais para usar o caixa eletrônico! Porque a realidade é que é uma questão de classe, e não de quarteirões ou "direitos" em abstrato. Com sua licença, chamo aqui o camarada Lenin e um trecho de seu texto "Sobre as Greves" para explicar melhor:

"Mas as greves, por emanarem da própria natureza da sociedade capitalista, significam o começo da luta da classe operária contra esta estrutura da sociedade. Quando operários despojados que agem individualmente enfrentam os potentados capitalistas, isso equivale à completa escravização dos operários. Quando, porém, estes operários desapossados se unem, a coisa muda. Não há riquezas que os capitalistas possam aproveitar se estes não encontram operários dispostos a trabalhar com os instrumentos e materiais dos capitalistas e a produzir novas riquezas. Quando os operários enfrentam sozinhos os patrões continuam sendo verdadeiros escravos, que trabalham eternamente para um estranho, por um pedaço de pão, como assalariados eternamente submissos e silenciosos. Mas quando os operários levantam juntos suas reivindicações e se negam a submeter-se a quem tem a bolsa de ouro, deixam então de ser escravos, convertem-se em homens e começam a exigir que seu trabalho não sirva somente para enriquecer a um punhado de parasitas, mas que permita aos trabalhadores viver como pessoas. Os escravos começam a apresentar a reivindicação de se transformar em donos: trabalhar e viver não como queiram os latifundiários e capitalistas, mas como queiram os próprios trabalhadores. As greves infundem sempre tal espanto aos capitalistas porque começam a fazer vacilar seu domínio. “Todas as rodas detêm-se, se assim o quer teu braço vigoroso”, diz sobre a classe operária uma canção dos operários alemães. Com efeito, as fábricas, as propriedades dos latifundiários, as máquinas, as ferrovias, etc, etc, são, por assim dizer, rodas de uma enorme engrenagem: esta engrenagem fornece diferentes produtos, transforma-os, distribui-os onde necessário. Toda esta engrenagem é movida pelo operário, que cultiva a terra, extrai o mineral, elabora as mercadorias nas fábricas, constrói casas, oficinas e ferrovias. Quando os operários se negam a trabalhar, todo esse mecanismo ameaça paralisar-se. Cada greve lembra aos capitalistas que os verdadeiros donos não são eles, e sim os operários, que proclamam seus direitos com força crescente. Cada greve lembra aos operários que sua situação não é desesperada e que não estão sós."
E é por isso que o pequenino exemplo do Piquete da Sete tem que ser combatido tão decididamente, e logo eram quatro a cinco viaturas em cima de nós. Tomam o RG de Edison bem como o meu, pedido pelo coxa porque eu estava filmando ele "sem autorização". Ameaças, intimidações: "Quantos são? Ah, quatro viaturas dá pra levar todo mundo." Os bancários da Sete conseguem convencer a gerente geral a trancar a porta da agência, e nós liberamos a entrada para que a mulher passe. Triunfalmente, a advogada avança rumo à porta e aperta o botão para abrí-la: nada acontece. "Não é justo! Vocês pediram para eles trancarem!" Pobre reacionária...vai para casa com uma lição: a unidade dos trabalhadores tem força política concreta, que nem sempre a força das armas pode derrotar. A verdade é que a gerente da agência foi obrigada a fechar a porta porque dependia dos trabalhadores para tudo, e não lhe restava opção neste caso a não ser ceder. Não só é justo, como é necessário que os trabalhadores imponham sua força sobre quem os explora.

Mas não acaba por aí. Era uma questão de direitos, e por isso a advogada irá levar sua cruzada anti-greve até o fim: exige dos policiais que levem o delegado sindical para a delegacia para prestar esclarecimentos. Isto nos é informado, justamente quando Edison fazia uma fala no microfone aberto que nos acompanhou no piquete. A denúncia é imediata (em breve postaremos vídeos das falas) sobre a tentativa de cercear o direito de greve, e no microfone ela toma a Sete de Abril e intriga os passantes, que a esta altura se perguntavam o que era a confusão. Não é difícil para nenhum trabalhador honesto entender, e não foi difícil para Edison explicar aos que passavam ali no horário de almoço, que a greve dos bancários - se consegue passar por cima da burocracia sindical, da polícia e dos patrões - só pode beneficiar o conjunto da população pobre e dos trabalhadores. A denúncia da tentativa de prisão teve repercussão imediata, e o tenente-qualquer-coisa imediatamente aborda outro camarada nosso: "Não! Veja bem, não se trata de desrespeitar o direito de greve". Bom, é isso que está parecendo... Rapidamente os policiais retrocederam, entregaram contrariados nossos documentos e ouviram calados as denúncias do ataque ao direito de greve, à violência policial contra o povo negro muito bem colocada pela Marcela... Eles também aprenderam uma lição sobre correlação de forças...

Hoje, a greve e o Piquete da Sete deixam uma conquista que vai muito além de um dia de caixa eletrônico fechado; este dia é uma vitória moral destes trabalhadores e da juventude que esteve ao seu lado, saímos do piquete com disposição redobrada de continuar nos organizando a partir de cada local de trabalho e estudo, de transformar nossos pequenos triunfos em grandes exemplos, de lutar contra a polícia, os patrões, os governos e a burocracia sindical!

Todo apoio à greve dos bancários!

Pelo salário mínimo do DIEESE (cerca de R$ 2.700)!

Contratação imediata de funcionários para acabar com as incontáveis doenças causadas nos bancários pela superexploração e acabar com as intermináveis filas que enfrentam os trabalhadores nas agências!

Fim da terceirização nas agências e nas casas lotéricas, onde os trabalhadores são forçados a fazer o mesmo trabalho por um terço do salário! Efetivação de todos os terceirizados sem concurso!

Pelo fim do lucro dos banqueiros à custa de nosso suor! Estatização dos bancos sob controle dos trabalhadores! Crédito barato para todos os trabalhadores e o povo pobre! Fim das taxas absurdas!

Pelo direito de greve! Não à repressão da polícia aos piquetes! Fora burocracia dos sindicatos!

quinta-feira, agosto 29, 2013

Medicina, racismo e elitismo no Brasil: uma combinação de classe feita para matar



Me perdoem se for preconceito, mas essas médicas cubanas têm uma cara de empregada doméstica. Será que são médicas mesmo? Afe, que terrível. Médico, geralmente, tem postura, tem cara de médico, se impõem a partir da aparência... coitada da nossa população. Será que eles entendem de dengue? E febre amarela? Deus proteja o nosso povo.

- Michele Borges, jornalista em seu Facebook.

Eu estive lá, eu vi de perto quem são e como se formam as pessoas que se juntaram por um instinto de auto-defesa corporativa para chamar os médicos cubanos de “escravos”. Passei mais de um ano estudando medicina com estas pessoas, e posso afirmar que foi uma experiência que marcou minha vida. Me ensinou muito concretamente algo que eu viria a aprender teoricamente apenas alguns anos depois: que a sociedade em que vivemos é dividida em classes, com interesses antagônicos e irreconciliáveis.

Quando estive em uma faculdade privada de medicina, a Unisa, nos anos de 2003 e 2004 eu não era comunista. Estava muito longe disso. Era petista, acreditava que a única possibilidade que restava à humanidade era fazer do capitalismo o menos pior que ele pudesse ser. A verdade é que eu pensava assim porque havia crescido e passado toda a minha adolescência na bolha da pequena-burguesia, e isto me impedia de ver o mundo tal como ele é; contudo, todo tipo de alienação e limitação em minha visão política que eu pudesse ter por conta de minha condição de classe era algo que se relativizou muito quando entrei na medicina: para os parâmetros de lá, eu era um subversivo total. Eu não sabia disto até o primeiro dia de aula...

Meu primeiro “ato subversivo” na faculdade foi ter cabelo comprido. Segundo fui informado aos berros por um estudante do sexto ano, que insistia também que eu “não tinha direito” de olhar para seu rosto enquanto ele falava comigo porque eu era um “bixo”, o fato de eu ter cabelo comprido não apenas não era uma “postura adequada” para um profissional médico, como também um ato de arrogância, afinal “quem eu pensava que era” para não cortar o cabelo como todo mundo havia feito. Estas duas “acusações” me foram repetidas algumas dezenas de vezes nos meus primeiros dias na faculdade, quando eu era literalmente escoltado por dois seguranças privados entre os três que haviam sido contratados pela faculdade para “impedir trotes” depois que a Unisa foi processada pelos pais de uma caloura, e que outro calouro teve queimaduras na virilha após terem jogado querosene nele porque ele era um “bixo rebelde”. Quando me acusavam de “arrogante” porque eu supostamente “me achava melhor do que os que haviam cortado o cabelo”, a minha resposta era bastante simples: “mas eu acho que ninguém deve ser obrigado a cortar o cabelo”. Meus “superiores” da faculdade ficavam estupefatos...acho que nunca tinham pensado em uma possibilidade tão subversiva! Como assim? É a tradição! Você entra, toma trotes e depois os aplica. Assim você aprende quem manda e quem obedece. E você obedece para depois mandar. É a hierarquia.

O racismo nojento que se expressou nos gritos de “escravos” contra os médicos cubanos tampouco é incomum e para mim não foi novidade. Basta dizer que os trotes contra os calouros são aplicados até o dia 13 de maio, pois é o dia da “libertação dos escravos”. Na visão dos estudantes de medicina, é claro, apenas uma “piadinha inocente” com a carnificina secular à qual submeteram o povo negro.

Vou poupá-los de um tanto de histórias semelhantes que seriam suficientes para um livro e contar apenas mais dois episódios: um deles se deu quando eu cometi o erro de ir a uma “confraternização” da faculdade, fora do campus, onde eu estava totalmente à mercê dos imbecis, cuja opinião sobre mim àquela altura (minha fama de “pau no cu”, como eles diziam para se referir a quem não se adequasse às suas regras e hierarquias, já havia corrido os quatro cantos da faculdade) não devia ser nada melhor do que a que têm sobre os médicos cubanos. Depois de ser submetido a algumas rodadas de cerveja na cabeça, de ser obrigado a beber cerveja com meu próprio cabelo cortado dentro dela, de ouvir todo tipo de insulto gritado e cuspido em minhas orelhas, meus “superiores” me obrigaram a subir em uma mesa para entoar o glorioso hino da faculdade tantas vezes quantas fosse necessário até que todos os presentes se dispusessem a me acompanhar. Faço questão de dividir a letra com vocês:

Pessoal!
Xá! (o coro responde: Vasca!)
Xá! Vasca!
Xavasqui! Xavascá! Xavasqui e acolá!
Enfia o dedo nela que ela vai arreganhar!
O que? Arre-ga-nhar!
Na rima do pudendo (termo médico que designa a fissura formada pelos grandes lábios da vagina)
eu entrei mordendo!
É a Med Santo Amaro que está te fodendo!
Medicina! Santo Amaro! Hooool!

Havia umas tantas outras músicas que expressavam a sofisticação humana dos meus colegas. Vou reproduzir apenas mais uma, em homenagem à coruja loka – singelo símbolo da Atlética (o grande órgão venerado pelos estudantes):

A coruja bota no seu cu!
E goza, e goza, e goza na sua boca!
Loca! Loca, loca, loca, locaaa!
Coruja loca!

Em seguida, após eu passar pelo ritual de iniciação, a pose de oficial do exército foi deixada de lado por um dos veteranos, do sexto ano, que veio conversar comigo “sinceramente”. Disse-me que eu não podia ter aquele tipo de postura, que agora sim eu estava agindo de acordo, que nós precisávamos de união. “Você já ouviu falar da máfia de branco?” Ele disse. “Nós somos a máfia de branco. Se você precisar de ajuda, somos nós que estaremos lá para nos ajudarmos. Numa prova, quando tivermos que colar, somos nós que nos apoiaremos. Se acontecer alguma coisa com um paciente, somos nós que vamos ter que acobertar. Por isto precisamos ficar unidos”.

Sim, é isto: é uma corporação no sentido forte do termo. Eles defendem seus interesses. Por isto se unem para repelir os médicos cubanos que estão entrando em “seu território”. Por isto se unem para defender o Ato Médico para tirar os outros profissionais da saúde do “seu território”. Por isto fazem rituais de iniciação medievais, tais como se faz na polícia ou no exército, tais como os do Capitão Nascimento, para iniciar os “seus” em “sua corporação”. Eles realmente se consideram melhores do que todos os outros seres humanos, e não há exagero aqui. Apenas uma vez consegui conversar com estudantes de outro curso no campus, que abrigava todos os cursos de biológicas. Eles não sabiam que eu era estudante de medicina. Quando lhes disse, imediatamente queriam interromper a conversa: já conheciam este tipo de gente. Apenas se abriram novamente quando lhes confessei que eu também tinha desprezo pelos meus colegas de curso e vice-versa.

Há outra ocasião que quero compartilhar: a visita ao hospital ligado à universidade, o Hospital Geral do Grajaú (HGG), e a visita à unidade do Programa de Saúde da Família (PSF) conveniado com a universidade. No hospital, pela primeira vez fui bem tratado por uma estudante do sexto ano. Era uma moça que talvez não tivesse contato ou não se importasse tanto com a minha “fama”. Ela me recebeu bem, me explicou tudo, foi extremamente gentil. Então, chegaram os pacientes. O HGG é hospital de referência da região, onde vão parar todos os casos minimamente graves. A estudante estava no último ano de seu internato, período em que é “obrigada” a atender no hospital. A rudeza com a qual ela recebeu o paciente me deixou atônito. Pegando a sonda que estava nele e a examinando rapidamente junto a uma papelada, ela identificou que já havia recebido o paciente e que indicara que ele marcasse uma consulta no ambulatório de especialidades da faculdade. “Eu não te mandei ir lá marcar a consulta? Por que você não foi? Por que voltou aqui?” O paciente, certamente intimidado em sua condição de trabalhador e pobre diante do poder implícito do jaleco e do título da “doutora” da “máfia de branco”, respondeu humildemente que ele havia tentado marcar a consulta, mas que eles tinham vagas somente para dali a três meses, e que ele precisava limpar a sonda antes disso, e que não tinha condições de esperar tanto. Perguntava se ela poderia fazer alguma coisa por ela. Mesmo que ela quisesse muito, o que estava longe de ser o caso, não poderia: esta é a principal agonia que eu antevia na minha profissão depois de estar formado - a impossibilidade de ajudar meus pacientes mesmo que fosse um médico competente, porque simplesmente não há nenhuma infraestrutura mínima para realizar o trabalho.

A estudante conseguia habilmente ser gentil quando se dirigia a mim, de forma atenciosa perguntando se eu queria ajudar a trocar a sonda, e estúpida, rude, impaciente quando se dirigia ao paciente que “não entendia nada” das “ordens médicas”. Não posso deixar de lembrar dos médicos cubanos, negros, como os pacientes maltratados daquela interna. Negros “com cara de empregada”, a quem gente que paga alguns milhares de reais por mês para estudar numa faculdade privada de medicina está acostumada a tratar como uma categoria inferior de seres humanos. Assim que o paciente deixou o consultório, ela desabafou comigo: “Ainda bem que só faltam seis meses para eu sair daqui!”. Em seguida, se tudo desse certo, ela faria residência e abriria seu consultório particular, para nunca mais precisar encostar ou se dirigir a um negro ou um pobre na condição de paciente, e eles voltariam a ocupar o lugar invisível de subalternos que a médica desejava para eles em sua vida.

Quando fomos ao PSF, passamos em pequenos grupos de estudantes do primeiro ano nas casas da favela do Grajaú junto com a agente comunitária, recrutada entre os moradores dali mesmo. Imaginem vocês aqueles estudantes que provavelmente nunca entraram em um ônibus na vida, andando em uma favela. Depois de tantas visitas e tantas casas, a agente desabafou conosco: “Ainda bem que vocês estão vindo aqui, para ver como é. Nós precisamos muito de mais médicos aqui. O pessoal se forma e vai embora, nunca mais volta e nós ficamos sem médicos para nos atender.” Ela se afasta, um colega compartilha seus sentimentos íntimos conosco: “Ah, me desculpa, mas eu nunca trabalharia aqui.” Ele continuou seu discurso, mas acho que meu cérebro, após estes anos, preferiu bloqueá-lo de minhas memórias para me poupar um pouco. Hoje, lembrando disso, penso nos médicos que chamam os negros cubanos que deixaram seu país por um salário de R$10 mil reais, cuja metade será paga ao ministério da saúde de Cuba, de “escravos”. Quem trabalharia por esta miséria? Na visão deles, apenas os médicos negros, “escravos”, com “cara de empregada”. Será que eles sabem que isto é muito mais do que ganha a maior parte dos trabalhadores do Brasil? Será que eles se importam? O que meus colegas disseram já responde a estas perguntas.

Eu poderia continuar escrevendo muito, muito mesmo, sobre o que há de podre na medicina. Foram estas coisas que me fizeram largar o curso ainda no segundo ano. Eu não seria capaz de conviver com esta gente, com seu modo de pensar, de viver. Talvez eu ficasse deprimido, talvez fizesse um atentado ao estilo “jovem americano” entrando na faculdade e fuzilando a todos. Preferi sair. Amadurecendo minha visão política nos anos seguintes pude perceber as causas sociais que levam os médicos e a medicina a serem assim. Talvez esta experiência pessoal tenha ajudado a me empurrar um pouco mais rápido para o socialismo. O que sei é que trazer um punhado de médicos cubanos pode escancarar a mentalidade podre de nossos médicos, mas pouco ou quase nada pode fazer para ajudar a que o povo pobre e trabalhador a ter acesso a condições mínimas de saúde. E, sem dúvida, a mudança desta situação não virá pelas mãos de Dilma nem de nenhum governante a serviço deste Estado. Virar a medicina brasileira de cabeça para baixo é uma tarefa para a revolução operária e socialista.