quarta-feira, dezembro 24, 2014

Barbáries cotidianas – A mulher das hérnias



Quando pensamos na célebre previsão de Rosa Luxemburgo, que dizia que à humanidade havia duas alternativas de futuro, o socialismo ou a barbárie, logo nos vêm à mente os episódios mais catastróficos a que o capitalismo nos conduziu, e que confirmam sem margem para dúvidas a correção do que afirmou essa, que foi uma das grandes dirigentes revolucionárias de todos os tempos. As guerras mundiais, os extermínios em massa, as crises econômicas, desemprego, guerras civis. São muitos os episódios de barbárie sem igual que se fizeram sentir pelas mãos da burguesia para preservar viva e atuante a sua dominação. Nos tempos atuais, em que se agrava cada vez mais a crise mundial do capitalismo, a cada dia essa disjuntiva recobra sua atualidade. Grupos neonazistas se organizam na Europa; planos de austeridade atacam trabalhadores, jovens e direitos sociais; repressão a todo momento aos levantes contra essas medidas. A única saída que o capital pode oferecer é essa, agora, ontem e sempre: a barbárie.

Mas a barbárie existe em muitas formas. Ela não está presente só nos grandes momentos de absurdo. Na verdade, em uma sociedade doente e podre como essa ela está presente o tempo todo, em tudo que é canto. Basta parar e olhar. É que é tanta dor e miséria que muitas vezes nossos olhos calejam, a vida nos torna insensíveis e brutos para o sofrimento ao nosso redor. É também um mecanismo de defesa, para conseguirmos também continuar a viver, apesar de tudo. Mas é preciso desnaturalizar a dor, sentí-la novamente a cada dia. Indignar-se com ela. Transformá-la em luta, organização.
São as pequenas barbáries cotidianas que sustentam esse mundo selvagem, em que “a mão invisível do mercado” é a responsável por arrasar com as vidas dos bilhões e bilhões de seres humanos que têm apenas a sua força de trabalho para vender. E, ainda mais, dos que muitas vezes nem essa possibilidade têm. Trabalhando no metrô de São Paulo, um simples peão da operação, oito horas por dia na estação, tem muitas oportunidades de ver todo tipo de retrato dessas pequenas barbáries. Essa semana vi (no mínimo) uma delas.

Estava no meu posto na estação Luz, ao lado de algumas catracas que dão acesso à rua, e recebo um aviso sonoro para entrar em contato com a Sala de Supervisão de Operação, mais conhecida como SSO. Dizem-me para levar a cadeira de rodas ao bloqueio oeste. Esse lugar, o bloqueio oeste, é a linha de catracas que fica na integração entre linha 4 amarela, linha 1 azul do metrô e as linhas 11 e 7 da CPTM (trens). Recebe alguns apelidos carinhosos dos funcionários da estação, como “porta do inferno” ou “faixa de gaza”. Ali, milhares e milhares de pessoas passam apressadas, acotovelando-se, muitas vezes xingando algum funcionário, em geral por algo que não é culpa dele. É um desses lugares do metrô que dá pra esperar que aconteça de tudo.

Chego ao bloqueio com a cadeira, encontro uma colega amparando uma senhora de idade, curvada, apoiada na parede. Ajudamos ela a sentar. A colega me relata rapidamente: “Ela tem seis hérnias, pisaram nela ao passar na catraca.” Conduzo a cadeira à sala de primeiros socorros, onde ofereço um copo de água à senhora e me sento à sua frente para ouví-la e saber como ela está. Pergunto se está bem, se sente dor.

“Ai, tá doendo bastante. Eu tenho seis hérnias, bico de papagaio, passei a noite com dor e agora dei um jeito de sair de casa, aí esbarraram em mim, deu uma dor imensa.”

Ela vê que estou atento e interessado, e continua:

“Eu fiquei com esses problemas por causa do trabalho, começou com uma dorzinha, mas aí eu tinha que continuar trabalhando, foi piorando, piorando. Até que um dia fiquei toda travada, não conseguia nem me mexer. Ainda bem que estava na casa da minha filha, ela me ajudou. Olha, levei dois anos pra conseguir uma consulta com um especialista. Aí, quando cheguei lá a ressonância que tinha feito já nem valia mais nada, tive que fazer outra. Ele nem olhou na minha cara, não perguntou nada, o que eu já tinha feito, onde tinha passado. Pegou e me encaminhou de volta pro posto de saúde perto da minha casa, onde eu já tinha ido. Fiquei dois anos esperando pra ele me mandar de volta pro primeiro lugar que tinha ido. Quando cheguei lá eles me encaminharam pra fisioterapia. E agora estou indo pra minha primeira sessão da fisioterapia e me acontece isso.”

Olho no rosto cansado da mulher. É o rosto gasto de quem trabalhou muito, durante muitos anos; ela evidentemente sente dor, mas carrega a expressão de quem já se acostumou a sofrer calada, a engolir a dor e levar adiante. O rosto de quem não pôde parar um segundo pra sentir a dor, porque a conta no fim do mês não ia esperar um segundo para ser paga. Ela respira, joga um pouco de água gelada que dei a ela sobre a perna dolorida. Enquanto isso, eu lembro da Santa Casa fechando suas portas por uma dívida de quase oitocentos milhões de reais, uma dívida que cresceu por décadas e foi causada pela corrupção. Enquanto pessoas como essa senhora amargavam filas de dois anos para ver um médico que não pergunta qual é o problema e não escuta seus pacientes, os administradores dos hospitais públicos enchem os bolsos com o dinheiro de remédios superfaturados. Remédios que a população não tem dinheiro para comprar, e que não tem como conseguir nos hospitais parasitados pelas empresas privadas como a gestora do almoxarifado da Santa Casa ou as Organizações Sociais que administram os hospitais públicos. A dor no rosto daquela senhora era o retrato do descaso pela saúde dos trabalhadores; seu corpo, destruído pelo trabalho que enriqueceu seus patrões, agora era destruído novamente pelo dinheiro desviado da saúde pública que enriqueceu empresários e governantes.

“Vamos, acho que já estou melhor, já dá pra ir.” Ela não parecia muito melhor, na verdade. Poderia oferecer um táxi para levá-la ao Pronto Socorro (por enquanto o metrô ainda dispõe disso), mas não adiantaria: ela estava ali a caminho da fisioterapia, já estava indo fazer o mínimo (máximo) que o Estado lhe garantiu para tentar melhorar... depois de anos esperando. Conduzi ela até a plataforma, e ali, ao esperar o metrô, ela se despediu de mim.

“Obrigado, meu filho, deus te abençoe. Que bom vocês trabalhando aqui, ajudando. Que bom que tem gente que nem vocês pra ajudar a gente.” Eu não fiz nada de mais, apenas ajudei ela a chegar no trem. Penso que ter ouvido o sofrimento que ela passou, sendo jogada de um lado pra outro que nem um trapo sujo sem uso, infelizmente já parecia tanto para aquela senhora. Já era mais do que o médico especialista, que ela esperou dois anos para ver, havia feito por ela. Já era mais do que esse mundo doente espera que façamos por um companheiro abatido por essas pequenas barbáries que nos levam de dia em dia. Eu queria poder fazer mais por ela, mas ali eu era só um peão, e não tinha muito que pudesse fazer. Engulo essa dor amarga, que queima lá dentro, esperando pra explodir junto com a de outros milhões. O futuro não será a barbárie, porque não mais permitiremos.