quinta-feira, janeiro 29, 2004

Sexto Post:

Poder e Ambição: Conquistas na Morada dos Desejos

Algum tempo antes da chegada do viajante, ela já estava lá a sua espera. E quando ele colocou seus pés cansados da longa jornada pela primeira vez na Morada dos Desejos, sem nem ao menos saber onde entrava, o mundo inteiro pareceu condensar-se por um momento naqueles lábios rubros que se incendiavam na face pálida da Rainha de Ouros, parada bem à sua frente. Imediatamente, ele sentiu algo dentro de seu Coração, algo que o assustou, mas que também lhe causou uma admiração inexplicável. A Rainha de Ouros não perdia tempo, e já estava bem preparada para tentar aprisionar aquele Coração antes que a oportunidade fugisse entre seus dedos. Mas a verdade é que, de tudo que ela houvesse imaginado que encontraria ali na Morada dos Desejos, nada se comparava ao Coração de Bonecas. Apesar de manter sua pose impassível, por dentro ela reconheceu que se encontrava diante de um poder singular, dentro de uma criatura tão pequena, tão simples. E seu desejo por ele aumentou ainda mais. Ela queria ter todas aquelas Lágrimas e aquele Coração humilde sob seu comando, a seu serviço e às suas ordens. E queria que ele lhe fosse entregue por vontade própria, pois sabia que só assim o possuiria verdadeiramente.
A Rainha esperou alguns minutos em silêncio, enquanto via Coração de Boneca parado, olhando fixamente para ela, claramente confuso e assustado. Ela usou estes minutos, (se é que se poderiam chamar de minutos em um lugar como a Morada dos desejos, onde o Tempo não existe) para estudar bem a situação. Coração de Boneca lhe parecia a mais transparente das criaturas, com um óbvio desejo latente em cada gesto e intenção sua de completar uma missão ridícula e ingênua. Ele era simples e manipulável como um pequeno animal, contanto que acreditasse estar cada passo mais próximo de atingir seus simplórios objetivos. Mas a Rainha também sentiu uma ponta de ódio dentro de si, quando viu que além das intenções óbvias que estavam estampadas nele, o seu poder tornava seu Coração protegido de investidas poderosas e diretas; suas Lágrimas eram um escudo contra a hostilidade e a sedução da Rainha de Ouros, e ela soube que teria de usar outras formas de atingí-lo, especialmente as palavras. E depois de julgar que o recém-chegado estava bem confuso, debatendo-se em sua teia, a Rainha achou que era hora de aproximar seu ataque.
- Você veio do Reino de Copas não é mesmo?
O tom cuidadoso usado nas palavras era um perigo à parte, com a voz perfeita, aveludada da Rainha de Ouros, que penetrava e corria em direção ao Coração, apertando-o e envolvendo-o. Coração de Bonecas engoliu em seco, tentou responder duas vezes antes que pudesse finalmente encontrar uma voz tímida dentro de si e colocá-la para fora em algumas palavras bobas e desajeitadas.
- Vim. Quem é você? Que lugar é este? E como você sabe de onde eu vim?
- Eu sou a Rainha de Ouros, e você está na Morada dos Desejos. Não são muitos que conseguem chegar até aqui, sabia? Eu mesma tenho grande dificuldade de vir até a Morada, mas eu sabia que te encontraria aqui e resolvi me arriscar na jornada. Achei que valeria a pena, e espero que eu não tenha me enganado quanto a isto. – fez uma pequena pausa, olhando calculadamente de cima a baixo Coração de Boneca, com um olhar malicioso de desejo e uma pontada de desprezo fingido. – Sabe, eu detesto me enganar. E você já chega aqui subestimando meus poderes, acreditando que eu não perceberia algo tão simples quanto o fato de você ter vindo do Reino de Copas. Ora, as marcas da Rainha estão impressas em toda parte em você, em seu Coração tolo que está obviamente a serviço dela, tentando cumprir alguma missão que ela própria não teria coragem de realizar. Além disto, de que outro Reino poderia ter vindo uma criatura que derrama Lágrimas o tempo todo? –Seu sorriso abriu-se numa ligeira risada. – É tão típico da Rainha de Copas ter algo assim em seu Reino.
Coração de Boneca queria interrompê-la, dizer as coisas certas na hora certa, e defender sua Rainha que ele acreditava estar sendo insultada. Mas ele apenas permaneceu calado ouvindo a Rainha de Ouros terminar de falar.
- E vejo que você não é um emissário ou viajante qualquer. – sua expressão agora carregava uma ponta de surpresa e inveja, um olhar intimidador que parecia querer invadir o Coração de Boneca e lhe roubar algo lá dentro. E ele quase conseguia. – A Rainha deve confiar muito em você, para ter lhe entregue um pedaço de seu próprio Coração. Mesmo uma Rainha tão tola e ingênua quanto a Rainha de Copas sabe que não se faz tal coisa levianamente, que isto implica em grandes perigos. – A Rainha sentiu então que era hora de uma provocação mais contundente, ela precisava incitar emoções fortes no Coração daquele jovem tolo para poder conduzí-lo mais facilmente. Sempre usava emoções fortes como suas armas, os Corações ficam muito mais vulneráveis quando inebriados por uma paixão. Tornam-se cegos e imprudentes, prontos para uma boa armadilha. – Mas, pensando bem, talvez ela não confie tanto assim em você. Eu posso ver que você não possui inteiramente o Coração da Rainha de Copas. Seria você muito fraco para suportar o Coração de uma Rainha? Ou apenas incompetente para conseguir conquistá-lo? Por que, me diga, você não conquistou o Coração da Rainha? Mesmo tendo você entregado seu Coração cheio de Lágrimas ela não sentiu que poderia confiar em você? – permitiu-se uma pequena risada, sentindo que o Coração ao qual falava se enchia de emoções conflitantes, e que ela conseguira perturbá-lo exatamente como desejava. – Provavelmente ela apenas lhe deixou este pequeno pedaço para convencê-lo a se arriscar em alguma missão que sabia ser extremamente perigosa. Ela deve estar apenas lhe usando para conseguir alguma coisa a mais para enfeitar seu Reino de Copas. Apenas um brinquedo a serviço da vaidade de uma Rainha, mais um Coração perdido e ingênuo em meio aos seus súditos, que acredita um dia poder ser mais do que um servo. Pobre coitado, deve ter alimentado a ilusão a cada passo desde que saiu do Reino de Copas, de que voltaria com o que a Rainha lhe pediu e que finalmente conquistaria seu Coração.
Coração de Boneca não conseguia deixar de concordar com algumas coisas que a Rainha de Ouros falava. De algum modo, mesmo sem nunca ter conhecido ele, ela havia acertado um ferrão certeiro sobre suas maiores inseguranças. Obviamente ele não acreditava que a Rainha de Copas estivesse usando-o e manipulando daquela forma, mas muitas vezes ele realmente se sentia como se estivesse lutando inutilmente para pertencer à Rainha, para ter algum pedaço mínimo do Coração dela e ser algo que nunca poderia. Às vezes ele se flagrava agarrando-se à ingênua esperança de que poderia ter o Coração da Rainha para si, que poderia transformar as coisas. Mas ele sabia que não, e por isto as duras palavras da Rainha de Ouros rasgavam-no por dentro. Mas ele tinha a certeza de que seus medos deveriam pertencer apenas a ele próprio, e que ele não podia deixar uma desconhecida insultar sua Rainha desta forma. Além disto, ele ainda possuía um fragmento do Coração da Rainha de Copas. E isto era o suficiente para que ele conseguisse continuar em frente.
- Da mesma forma que entreguei meu Coração à Rainha de Copas por minha própria vontade, eu venho nesta missão com meus próprios motivos. A Rainha jamais me mandaria em alguma missão por vaidade, e se você tem coragem de dizer algo assim é porque desconhece o Coração da governante do Reino de Copas. Por isto, eu lhe digo que pare de ofender minha Rainha e deixe-me continuar em minha missão.
A Rainha de Ouros estava verdadeiramente admirada com Coração de Boneca. Agora admitia para si mesma, e apenas para si mesma, que em sua primeira impressão o havia subestimado. Enquanto ele lhe dizia aquelas palavras cheias de ódio e de determinação, enfrentava uma Rainha cara a cara sem hesitar, seus olhos não paravam de derramar Lágrimas. Por mais que ele não tivesse seu Coração cheio de certeza, ele o tinha repleto de determinação para enfrentar suas dúvidas. Ela não o venceria pelo medo. Ela poderia o derrotar facilmente, mas não era isto que desejava. A Rainha de Ouros tinha consigo mesma uma norma de conduta, de um modo bem particular, que não desrespeitava, apesar do que pudessem pensar todos os outros a respeito de sua integridade, e atacar Coração de Bonecas para derrotá-lo era algo que ela não faria. Mas ela não desistiria tão facilmente de conquistar seu Coração e tirá-lo da influência da Rainha de Copas.
- Alguma vez você já enxergou dentro de si mesmo? Eu enxergo seu Coração, e posso ver que ele é delicado e vulnerável. Mas eu também consigo enxergar o poder dentro dele. Um poder que você mesmo parece desconhecer. Eu sei que você colocou este poder nas mãos da Rainha de Copas, mas também sei que é capaz de retirá-lo, e que é capaz de conquistar milhares e de erguer Palácios com a força que há nele. – a Rainha de Ouros sabia que era inútil um confronto dissimulado, ela decidiu retirar suas máscaras. – Fique ao meu lado Coração de Boneca. Junte-se a mim em meu Reino, e eu lhe entregarei tudo o que a Rainha de Copas jamais lhe dará.
- Agradeço sua oferta, mas meu Coração já encontrou seu Reino, e minhas Lágrimas já foram secadas. As mágoas que carrego dentro de mim não são todas minhas, e eu caminho agora para poder apaziguá-las e retornar para o meu lar. Eu sei que eternamente buscarei por algo que não será meu, mas eu ao menos sei onde posso encontrar isto. Meu Coração, agora e sempre, pertence à Rainha de Copas, e esta escolha não é minha e não sou eu quem pode desfazê-la. Eu posso, sim, ver dentro de seu Coração também Rainha de Ouros, e sei que você também busca. Seus olhos não têm Lágrimas e sua força é maior do que a minha, mas ainda assim você busca como eu. Nossos Corações são outros, e você é a governante de seu Reino, onde todos os Corações te pertencem e te adoram. Sua busca, como a minha, é eterna, e isto nós temos em comum. Se você partiu de seu Reino e veio até a Morada dos Desejos buscando o que falta em seu Coração, eu espero que você encontre o quanto antes. Apenas lamento que não possa lhe ajudar, pois você veio aqui atrás de meu Coração, que é um Coração conquistado. E, se existe mesmo este poder em meu Coração que você diz e que eu sou incapaz de perceber, ele será então suficiente para que você me deixe. Ele servirá para que seus truques não sejam suficientes para me fazer esquecer que o meu Coração não pertence a mim mais do que ele pertence à Rainha de Copas. Você é uma Governante, e sua ambição é imortal. Eu não desejo Reinos ou poder, tudo o que eu desejo é reconstruir o que foi partido no Coração de minha Rainha.
A Rainha de Ouros sabia que era inútil. Sua frustração latejava em seu peito querendo dar vazão na forma de um ódio destrutivo, que acabasse de uma vez por todas com aquele Coração que ela não conquistaria, como se ele nunca houvesse existido. Mas nem isto ela pôde, pois desta vez ela havia sido derrotada. O seu Coração não fora conquistado e nem seu Reino perdido, mas ela sabia que era apenas porque Coração de Boneca não desejava isto. O que ela pensava que seria apenas mais uma simples conquista para a perfeição de seu Reino, revelava-se uma humilhante derrota na qual ela seria poupada. E ambos sabiam que ela poderia derrotar e esmagar Coração de Boneca em um piscar de olhos, se assim quisesse seu ganancioso Coração de Rainha. Mas a sua derrota era exatamente esta: ela não queria esmagar o Coração de Boneca. A Rainha, apesar de orgulhosa, sabia ser sensata quando era necessário.
- Muito bem Coração de Boneca, você tem minha permissão para continuar em sua missão em nome do Reino de Copas. O futuro é longo e os Corações mudam. Um dia nos reencontraremos, quando o Reino de Ouros for ainda mais poderoso, e meu Palácio será a verdadeira Morada dos Desejos. Até lá, persiga os Desejos de sua Rainha. Eu mesma guiarei seu Coração através deste lugar para que você encontre o que busca.
Coração de Bonecas deixou a Rainha de Ouros para trás com uma reverência, e alguns passos depois já não sabia se havia permanecido por alguns minutos ou por muitos anos na Morada dos Desejos. Mas ele soube que havia encontrado o que procurava, quando sentiu dentro de si o fragmento do Coração da Rainha de Copas agitar-se. E, dentro das névoas que envolveram seus pensamentos, Coração de Bonecas viu um lugar distante. Foi a Rainha de Ouros, ainda guiando-o em seus pensamentos, que lhe instruiu sobre sua visão. Os jardins perfeitos e o Palácio que se estendiam nos seus sonhos pertenciam a outro Reino. Eles eram o domínio da Rainha de Espadas, e os Desejos de sua Rainha buscavam por aquele lugar. Era lá o próximo destino em sua busca.

segunda-feira, janeiro 26, 2004

Quinto Post:

Espelho das Almas: Coração Solitário

Desde que Coração de Boneca havia partido, as coisas pareciam piorar cada vez mais para a Rainha de Copas. Era como se a única viga ainda confiável que sustentava uma velha mansão tivesse sido removida. E agora, a casa parecia pronta para desabar a qualquer momento.
A cada dia a Rainha duvidava mais de si mesma. Aquele Reino era mesmo seu? Já não conseguia pensar que sim. Tinha ódio de si mesma, por ser uma Rainha incapaz de governar e por ter deixado partir o mais belo Coração de seu reino em uma missão incerta e perigosa, uma jornada inútil com o objetivo de reconstruir algo que já estava perdido. Era uma busca fadada ao fracasso, e ela havia deixado Coração de Boneca partir nela.
Mesmo depois de conhecê-lo tão bem e tão intimamente, ele conseguia intrigar a Rainha. Por que ele perdia seu tempo tentando ajudar a Senhora dos Farrapos, ao invés de criar seu próprio Reino, que certamente seria um dos mais belos já vistos? Como alguém tão especial não conseguia enxergar o óbvio diante de seus olhos, enxergar que não havia mais nada a se fazer por um Coração Vazio como o dela, por uma Rainha que nada tem? Mas...na verdade ela tinha algo ainda. Ela ainda tinha um Coração que lhe fora dado, e isto ainda a mantinha em pé, dentro do seu Palácio de Cristal. E permaneceria lá, com o Coração que lhe fora entregue, até que seu dono retornasse.
Naquela noite, não agüentando mais a angústia da espera solitária, a Rainha decidiu visitar o Espelho das Almas, escondido no canto mais remoto de seu Palácio. E, de frente para o Espelho, olhou firmemente para dentro dele e encarou seu rosto. Era uma colcha de retalhos. Seus olhos a lhe encarar com compaixão e tristeza, sem inspirar a admiração incondicional de outrora. De um jeito ou de outro, as Rainhas sobrevivem de admiração e amor. Elas sobrevivem dos Corações Conquistados. E a Rainha de Copas olhava para si mesma e tinha a certeza plena de não poder conquistar um Coração, de que não havia nada nela que pudesse garantir a admiração de alguém e, portanto, a integridade de seu Reino e de si mesma. Mas havia algo que contradizia isto, algo que escapava ao seu entendimento. Porque ela sabia que tinha um Coração que era seu, que a admirava e a amava. E ela via o reflexo disto no Espelho das Almas, perdido naquele semblante refletido.
Olhando naquele Espelho a Rainha enxergou dentro de seu Coração em Farrapos. E ela conseguiu ver coisas sobre o Coração de Boneca também, pois ela possuía seu Coração. Por que, ela perguntou ao seu reflexo, ter um Coração como aquele não era suficiente para reconstruir seus Farrapos? Por que ela não podia entregar seu Coração a ele por inteiro, como ele havia feito, e reconstruir tudo ao seu lado? Por que, apesar de tudo, lhe faltava um pedaço? De onde vinha aquele Vazio, como poderia preenchê-lo?
E o Espelho das Almas, refletindo a Rainha, respondeu como pôde. Havia uma coisa irônica no que a Rainha sentia por Coração de Boneca. Era como se, por ter ele entregue seu Coração a ela, a sua admiração perdesse um pouco do valor. Para a Rainha era como se aquela admiração que ele tinha por ela fosse apenas porque ele havia entregado seu Coração. Se você interrogasse Coração de Boneca, no entanto, ele lhe diria exatamente o contrário: Ele havia entregado seu Coração pois nunca antes havia encontrado alguém que admirasse e amasse tanto, e pela primeira vez ele pôde fazer isto. E finalmente havia descoberto que era por isto que ele buscava sua vida inteira.
A Rainha podia entregar seu Coração a ele, como ela havia feito, mas havia um pedaço do Coração dela que permanecia intocado, quiescente, imaculado, sozinho. E tanto ela como Coração de Boneca sabiam disto, e foi por este motivo que Coração de Boneca partiu. Ele percebeu, antes mesmo da Rainha, que sem poder entregar aquele pedaço ela nunca poderia se reerguer. Ela precisava de algo que trouxesse nova vida ao seu Coração, ao seu Reinado. Mas nem mesmo na profundidade do Espelho das Almas a Rainha conseguiu enxergar o que era aquilo que faltava.



Distância: Coração Incerto

Muitas vezes era difícil para Coração de Boneca seguir em frente. Ele estava sozinho, e a cada passo mais longe do Reino de Copas e da Rainha a quem seu Coração pertencia. Apesar de sentir cada dia de jornada aproximando-o de seu destino, ele ainda não sabia para onde rumava e nem o que procurava. Ele sentia falta da Rainha de Copas ao seu lado.
Por mais que soubesse ter conseguido algo da Rainha de Copas que nunca ninguém havia conseguido, às vezes, nos piores momentos, Coração de Boneca não pensava tanto nisto. Ele conseguia apenas pensar que o Coração da Rainha de Copas, pelo qual ele daria todos os Reinos do mundo, não era inteiramente seu. E ele sabia que, quanto mais se aproximasse do que estava procurando nesta jornada, mais estaria se aproximando daquilo que lhe afastaria ainda mais da Rainha. Ele buscava um guardião para aquele Coração Vazio, alguém que pudesse ser melhor do que ele nesta difícil tarefa.
Ele continuava em frente, sempre se apoiando naquele pequeno pedaço do Coração da Rainha de Copas que pertencia a ele. Aquele era seu guia e protetor, e apenas por que o possuía Coração de Bonecas conseguiu ir além do que seu próprio Coração permitia.

Corações Unidos: Novas Esperanças

O Bobo de Copas apenas observava de longe. Ele sabia bem de tudo o que acontecia, desde o Reino de Copas até onde a imaginação se deita. Era só o que ele fazia, observar aqueles Corações. E ele via todo o desenrolar do encontro de dois Conquistadores de Corações tão perdidos: uma Rainha que não conseguia governar, e um Rei que não queria um Reinado.
Na verdade, ele via as coisas de uma maneira bem diferente. Ao contrário do que todos pensariam, logo na primeira vez que ele viu Coração de Boneca, ainda com suas eternas Lágrimas a escorrer incessantemente, ele soube que ele não deveria ter um Reino para si. Existem muitos jeito de se conquistar Corações, e a maioria das pessoas fecha seus olhos para isto. Mas o Bobo de Copas via claramente na sua frente todas as diferenças, como um caçador experiente que distingue as pegadas, cheiros e barulhos de suas presas. Era algo, ele sabia, que mesmo para as Rainhas era difícil de se fazer. Talvez apenas a Rainha de Ouros o superasse nesta habilidade, mas mesmo assim sua visão distorcida por uma ambição incontida lhe fazia perder detalhes sutis e de grande importância.
O Bobo de Copas viu que o talento para conquistar Corações de Coração de Boneca era bem diferente daquele que teria qualquer Rainha. Muitas vezes ele nem percebia este seu poder, e nas outras, Coração de Boneca não se esforçava para conquistar nenhum Coração, e muitas vezes até considerava uma maldição para si mesmo ver aqueles Corações sendo entregues a ele a contragosto. Corações que ele desconhecia, que ele não queria. Ter um Coração Conquistado era uma responsabilidade. Ele sabia que era preciso cuidar dos Corações de seus súditos, que era preciso alimentar seus sonhos, que era preciso retribuir de alguma forma. Ele não servia para isto, e considerava-se um Destruidor de Corações muitas vezes, que destruía sem querer, e sempre querendo livrar-se deste fardo. Outra coisa que o Bobo de Copas viu nas Lágrimas de Coração de Boneca era que algumas delas não eram apenas dele. Os Corações que ele conquistava mesmo sem querer, lhe traziam as dores deles. Dores que se transformavam em Lágrimas nos seus olhos.
Coração de Boneca muitas vezes desejava fugir de si mesmo, que seria o único jeito de libertar-se disto. Ele imaginava o Reino que sempre lhe disseram que deveria ter, como um lugar onde todos sempre derramariam Lágrimas eternas como ele. Seria um reino de dor e de tristeza, que era a sina de todos aqueles que lhe entregavam seus Corações. Ele acreditava que todos consideravam aquilo um dom, apenas porque não tinham experimentado por si mesmos esta desgraça.
Mas isto tudo fora antes. Antes dele chegar ao Palácio e do Bobo de Copas enxergar dentro do seu Coração. Antes que aquele Iluminador de Corações, tão bem escondido como um mero bufão da Rainha, percebesse que aquele derramador de Lágrimas não estava lá por acaso. Não era um Reino que Coração de Boneca precisava, ele precisava conhecer o Coração da Rainha de Copas. O Coração que estava se transformando em farrapos, e que apenas alguém como ele teria alguma chance de remendar.
O Bobo acompanhava o Coração da Rainha há muito tempo. Assistiu preocupado o Reino dela transformar-se, passando da alvorada ao crepúsculo. Viu a Rainha fechar-se, como uma flor que murcha, com suas pétalas perdendo as cores, e suas folhas caindo como a esperança que foge de seu Coração. Viu seus súditos acompanharem as mudanças sem nem ao menos se darem conta disto. Era outono no Reino de Copas, e as folhas começavam a secar e cair da árvore. Ele viu isto tudo, impotente.
Um dia ele encontrou Coração de Boneca, e soube que o Destino finalmente resolvera dar uma nova chance ao Reino. Ele cumpriu sua pequena parte e voltou a observar. Ele viu o encontro de dois Corações tão únicos, que de perto não conseguiram enxergar tão bem quanto ele a beleza daquele encontro. Era como se um único Coração há muito tempo partido houvesse finalmente juntado suas metades. E, mesmo sabendo que não seria tão simples assim as coisas se acertarem no Reino de Copas, o Coração do Bobo ficou mais leve pois ele viu o sorriso quase perdido da Rainha abrindo-se nos dias que se seguiram à chegada do Coração de Boneca. Ele sabia que o Coração da Rainha pertencia muito mais àquele recém-chegado do que ele pensava. E ele sabia que a Rainha era muito mais capaz de governar do que ela pensava. Era só uma questão de tempo até que eles percebessem isto e as coisas se acertassem. Ele viu confiante a partida de Coração de Boneca. Sabia que tudo daria certo quando ele retornasse.

sábado, janeiro 24, 2004

Quarto Post:

Remendos de Copas: Corações Guardados

A Rainha de Copas não se esquecia da primeira vez em que havia visto Coração de Boneca. Ela viu seu rosto marcado de Lágrimas se transformar, assistiu um sorriso nascer naquele semblante tristonho. Era um sorriso como ela nunca vira antes, e ela sabia que era responsável por aquilo. Ela, que era uma Rainha que não sabia mais governar, que tinha um Reino a seus pés e um vazio em seu Coração, que não passava de uma Senhora de Farrapos, havia conseguido secar as Lágrimas eternas do Coração de Boneca. E saber disto foi bom para a Rainha. Sendo a mais sensível das Rainhas, ela entendia muito bem o alcance das Lágrimas ou Sorrisos do Coração de Boneca. Qualquer um poderia compreender que ele era, querendo ou não, um Conquistador de Corações. Mas a Rainha de Copas viu mais do que isto. Ela viu coisas ocultas dentro daquele Coração, que nem o próprio Coração de Bonecas sabia que estavam lá. Ela viu um poder que despertaria a inveja e a ambição da mais poderosa Rainha, mas que suscitou uma grande admiração no Coração da Rainha de Copas. E, ver como Coração de Boneca usava aquele poder, sem ambição ou vaidade, despertou um afeto sincero e profundo por parte da Rainha.
Perceber que, mesmo julgando-se uma Rainha triste e incapaz, ela havia conseguido transformar aquele Coração tão lindo e único de uma maneira tão intensa, trouxe uma maravilhosa fagulha de esperança ao Coração da Rainha. Uma esperança que ela precisava ter. E ela soube que a partir daquele momento havia conquistado aquele coração, e que ele passara a depender dela. Ela não sabia como ou porque havia conquistado, mas isto não mudava a enorme devoção de Coração de Boneca.
E ela desejou que aquilo fosse suficiente. Desejou transformar aquela gratidão, admiração, afeto por Coração de Boneca em algo ainda maior, e lhe entregar seu Coração da mesma forma que ele havia feito. Queria poder fazer isto, preencher o Vazio em seu Coração, e secar suas Lágrimas. Queria, por este momento, deixar de ser a Senhora dos Farrapos. Mas ela não pôde. E ela também desejou que o Coração que lhe fora entregue fosse suficiente para ela se sentir novamente como uma Rainha, para que ela soubesse que era capaz de governar o Reino de Copas e que ela soubesse que era capaz de alguma coisa. Mas de alguma maneira ela enxergava Coração de Boneca como alguém que se iludia, vendo uma Rainha onde não havia mais nada. Apenas ele enxergava a Rainha que não estava lá, enquanto o mundo a sua volta sabia que ela não era mais nada, que ela não podia nem ao menos governar a si mesma.
Coração de Boneca remendava os Farrapos, mas era incapaz de reconstruí-los.

Corações Errantes: Jornadas Incertas

Às vezes queremos que o tempo pare e nos deixe em paz com um momento perfeito que encontramos em algum canto perdido. Nestas horas é que ele corre sem nos avisar, nos deixa pra trás meio perdidos. O tempo passou assim para Coração de Boneca. Cada dia que ele visitava a Rainha e conseguia lhe arrancar um sorriso, ele queria poder guardar como um talismã imaculado dentro de seu Coração. Ele esquecia, e a Rainha também, das Lágrimas e do Vazio que se estendiam pelo Reino de Copas. Mas sempre havia uma hora em que eles voltavam, dizendo sempre ao Coração de Bonecas que ele devia partir. Dizendo para ele fazer o que ele já sabia que deveria fazer. Mas ele queria adiar este momento para sempre, com medo de perder o que havia conquistado.
Os dias transformaram-se em semanas, e as semanas em meses, sem que Coração de Boneca se desse conta disto. Até que ele percebeu que não podia mais deixar sua Rainha daquele jeito, e que tinha que partir naquele mesmo dia, para voltar apenas se conseguisse aquilo que buscava, que novamente ele não sabia o que era. Ele tinha medo, mas ele arrumou suas coisas pra partir. Ele tinha medo, mas foi aos aposentos da Rainha sem um pingo de hesitação para lhe comunicar sua partida.
A Rainha de Copas viu sua esperança parada bem na sua frente, dizendo-lhe que iria partir. Mais uma vez, Coração de Boneca faria por ela o que ninguém mais faria. E ela também teve medo, de deixar partir o resto de suas esperanças e de perdê-lo para sempre. Ela quis lhe perguntar porquê ele partia. Mas ela já sabia a resposta e calou-se. Ela quis lhe pedir para não ir. Mas ela já sabia que não adiantaria e calou-se. Ela quis lhe dizer palavras que lhe dessem coragem e que o ajudassem. Mas ela sentiu que suas palavras seriam vazias perto das Lágrimas que escorriam em seu rosto. Então ela resolveu dar a Coração de Boneca a única coisa que poderia para ajudar-lhe em sua viagem. Delicadamente aproximou seu rosto do Coração de Boneca e seus lábios se tocaram suavemente. Ela deu um pedaço de seu Coração para Coração de Boneca. Um pedaço que na realidade ele já possuía, desde seu primeiro encontro, mas que só agora lhe fora verdadeiramente entregue. Um pedaço do Coração da Senhora dos Farrapos, um Coração que nunca seria inteiramente dele. E deixando algumas Lágrimas com a Rainha, Coração de Boneca partiu, levando consigo todas as esperanças da Senhora dos Farrapos.
A Rainha de Espadas não sabia mais o que fazer. Dividida entre o controle de um Reinado sublime e a busca inatingível por alguém a quem pudesse entregar seu Coração, ela sentia uma incerteza que não gostava de admitir para si mesma. Afinal, ela era uma governante de muitos Corações e deveria permanecer calma e segura de si mesma. Mas era cada vez mais difícil para a Rainha ignorar que seu Coração precisava encontrar um lugar para si, precisava pertencer a alguém. Apesar de ser um pouco orgulhosa demais para considerar esta possibilidade como algo agradável, ela começava a sentir que devia realmente procurar por isto. E sabia que a resposta não estava dentro do seu Reinado.
Uma Rainha nunca atravessa levianamente as fronteiras de seu Reino, deixando para trás os Corações de seus súditos. Mas a Rainha de Ouros sempre foi ousada, e saiu de seus domínios para ir de encontro à mudança. Ela seguia obstinada, tendo a certeza de que se aproximava cada vez mais de seu objetivo. Ele estava ali em algum lugar, e era algo poderoso.

Morada dos Desejos: Encontros Inesperados

Onde quer que os Corações acreditem que é o centro do mundo, este será o lugar certo.
Longe de todos os Reinos, além dos portões e dos muros, além dos vales, colinas e florestas e rios, além dos dias e das noites, dos crepúsculos e das alvoradas, existe um lugar. Neste lugar, onde todos os Corações são Reis e Rainhas mas nenhum deles governa, os Desejos se materializam em um poder ilimitado.
Na Morada dos Desejos, o Tempo não existe, e o solo é virgem como um botão de rosa. Sonhos ousados perambulam ao redor deste lugar, e os Corações tão próximos e distantes, abastecem-no infinitamente com Desejos. Desde os mais ambiciosos Desejos de poderosas Rainhas há muito perdidas, até as mais simples vontades de um Coração ingênuo: todos os Corações habitavam a Morada dos Desejos, sem nem ao menos saberem disto.
Bem no fundo de todos os Corações, sempre existem Desejos secretos. E todos os Desejos existem na Morada dos Desejos, onde um encontro estava para acontecer.

sexta-feira, janeiro 23, 2004

Terceiro post:

Lágrimas e Farrapos: Encontro de Mágoas

Coração de Boneca já havia se importado demais, e agora havia decidido se importar sem se importar mais com isto. Derramava Lágrimas, tentando ser indiferente. Lágrimas que não secavam, infinitamente.
A Rainha de Copas via em sonhos a clareza das falsas verdades. Seu Reino perdia o brilho e ela sentia os Corações enfraquecendo enquanto ela procurava algo que não sabia o que era. Corações em farrapos. Seu Reino era o da confiança, o do amor construído em perfeição. Mas ela sentia seu Coração desfazendo-se em fragmentos dispersos, sem nada para juntá-lo.
Coração de Boneca já não era mais guardião dos portões do Palácio, suas Lágrimas fizeram-no perder seu posto. Ele havia sido tomado sob a tutela do Bobo de Copas, que dizia que suas Lágrimas eram apenas um caminho escondido para os Corações. Coração de Boneca não entendia o que ele queria dizer, mas procurava aprender o que lhe era ensinado pelo Bobo, tentando ainda em vão ignorar suas Lágrimas eternas. Ele sabia que devia seguir estes passos, e confiava no Bobo. Este, sabia que era incapaz de secar as Lágrimas do Coração de Boneca. Ele podia Iluminar muitos corações e preencher grandes Vazios, mas Coração de Boneca tinha um Coração muito grande para ele. Coração de Boneca tinha um Coração grande o suficiente para abrigar um Reino inteiro dentro dele, mas era um Reino que ele não queria. Era um Conquistador de Corações que não desejava conquistar um Coração, que desejava apenas secar suas Lágrimas. E o Bobo decidiu que ele deveria encontrar o mais belo Coração que ele próprio já vira, mesmo que agora este Coração estivesse em Farrapos. Mandou-o disfarçadamente um dia qualquer para os aposentos da Rainha de Copas. Disse para Coração de Boneca que ele era um aprendiz muito bom, e que deveria alegrar o Coração da Rainha.
Às vezes não é necessário nada além de um olhar. E o primeiro encontro de Coração de Boneca com a Rainha de Copas foi uma destas ocasiões. Os olhos cansados de chorar secaram como um passe de mágica, e alguma coisa que parecia quebrada dentro dele voltou a funcionar. Aquele Coração capaz de conquistar impérios havia se curvado instantaneamente, e o poço de mágoas inesgotável secou em um piscar de olhos. Pela primeira vez o Coração de Boneca havia sido conquistado, e sua lealdade e amor foram entregues incondicionalmente à Senhora dos Farrapos. Mas aquela conquista não reergueu o Reinado de Copas, nem amenizou suas tristezas. Com ou sem Coração de Boneca, a Rainha de Copas continuava sem nada para remendar seu próprio Coração. E esta angustia imediatamente tornou-se a dor do Coração de Boneca. Suas próprias Lágrimas, agora secas, haviam sido substituídas pelas Lágrimas da Rainha que escorriam através de seus olhos, e que moravam em seu Coração Conquistado. Era também a primeira vez que Coração de Boneca não conquistava um Coração. Por tantas vezes ele vira Corações serem depositados a seus pés, sem nunca se importar com isto. Agora, que ele finalmente conhecera o único Coração do qual desejava algum reconhecimento ou amor, ele não o conquistara. Ele apenas tomara as dores daquele Coração para si próprio, e decidira que tinha uma nova missão. Como o Bobo, ele sentiria o Coração da Rainha, ele veria e entenderia o que atormentava a Senhora dos Farrapos e faria tudo o que fosse necessário para remendar seu Coração dilacerado.
Para Coração de Boneca, entregar seu Coração à Rainha de Copas foi uma coisa tão nova e abriu tantas perspectivas até então desconhecidas dele, que ele teve dificuldade de entender a si mesmo no começo. Era como se algo de fora passasse a fazer parte dele, como se ele continuasse sendo a mesma pessoa mas que sente tudo de um jeito diferente. Ele tinha novos Desejos. E se lhe brotavam Lágrimas nos olhos por ter ele deixado entrar em seu Coração todos os pesares da Rainha dos Farrapos, tomando estas dores como se fossem suas próprias, ele também sentia uma alegria inexplicável por ter aquilo dentro de si. Ele sabia que era capaz de muitas coisas que não era antes, sabia que poderia se surpreender superando limites que ele julgara inatingíveis. Lutaria com motivações que vinham de um lugar dentro de seu Coração que até aquele momento fora totalmente desconhecido para ele. Todo o seu talento para conquistar os Corações se transformara, assumindo dentro dele um significado novo. Tudo, todas as coisas de que era capaz, estavam agora apenas a serviço dos Desejos do seu Coração de Boneca. E este pertencia à Rainha de Copas. Mesmo que não fosse o que ela procurava, mesmo que ela não julgasse aquele o presente mais valioso, como o próprio Coração de Bonecas julgara ser para ele poder entregar seu Coração daquela forma, ele satisfazia-se na maioria das vezes em fazê-la sorrir ou ser feliz por algum momento. Em meio aos Farrapos da Rainha, tudo o que ele enxergava era a beleza escondida que estava ali. Era um dom, de enxergar o melhor lado do Coração da Rainha. Era um dom que ele só possuía pois a Rainha tinha o controle completo sobre seu Coração de Boneca.
Todos os dias Coração de Boneca ia aos aposentos da Rainha para lhe fazer companhia e tentar alegrá-la. Apesar de tudo, a Rainha não era imune aos encantos do Coração de Boneca. Rapidamente ele tinha sua amizade e confiança plenas, e se valia disto apenas para tentar reconstruir os farrapos e lhe devolver seu Reino como novo. Não demorou muito para que ele finalmente entendesse que isto estava além de seu alcance. Seu Coração não poderia alcançar o da Rainha do modo como ela precisava, e isto lhe angustiava. E apesar destas Lágrimas que vinham do Coração da Senhora dos Farrapos escorrerem através de seus olhos, ele sabia que não devia se deixar abater por esta tristeza, pois deste modo não haveria nada que ele pudesse fazer pela Rainha.
Um dia ele viu o olhar da Senhora dos Farrapos perdido através da janela, procurando alguma coisa distante. Neste momento ele soube que devia partir, seguindo aquele olhar até o infinito, para um dia trazer aquilo que ele buscava. Somente deste modo ele poderia consertar o que estava rasgado dentro do Coração da Rainha.


Corações Perdidos: Terra de Ninguém

Os Corações sempre dão sinais falsos, sempre podem ser iludidos, e as Rainhas sabem como fazê-lo. Especialmente a Rainha de Ouros. Saber enganar é saber conquistar, era assim que ela pensava. Os Corações sempre acabam enganando a si mesmos, de um jeito ou de outro. Portanto, enganá-los não era nem ao menos algo errado. Era apenas guiá-los por um caminho que eles poderiam perfeitamente trilhar por si mesmos. Corações são armas e também são vítimas. São tão poderosos quanto são frágeis, são tão nítidos quanto são ambíguos. E, se eles são os tijolos sobre os quais as Rainhas constroem seus Palácios, então eles devem ser compreendidos, usados com cautela. Longe de serem apenas objetos a serem utilizados em uma busca por poder e admiração, eles são um mundo no qual vivemos nossas vidas. Pensar nos Corações como objetos a serem utilizados seria uma visão simplista e tola, da qual toda Rainha mantinha distância. As próprias Rainhas têm seus Corações, e elas sabem que nunca podem se esquecer disto. E a Rainha de Ouros tinha um prazer especial em pensar que as outras Rainhas tinham seus Corações, que poderiam até mesmo ser conquistados como o de qualquer outro. Era sempre bom lembrar bem disto.
Quando há algo de incomum acontecendo com os Corações, as Rainhas logo sabem. E a Rainha de Ouros logo soube que algo estava acontecendo, algo que poderia mudar as coisas. Mudanças são perigosas, e a maioria das Rainhas as temia. Mas mesmo sabendo de todos os perigos que trazem as mudanças, a Rainha de Ouros as adorava. Ela as enxergava como oportunidades, que não deviam ser desperdiçadas. Mudanças mexem com os Desejos de muitos Corações, e isto era sempre uma chance de se conquistar mais Corações. E ela sempre queria conquistar mais Corações. As outras Rainhas, sempre tão vaidosas e seguras de si mesmas, acabavam se descuidando e abrindo brechas que não escapavam à perscrutadora varredura da Rainha de Ouros. Ela esperava pela mudança com ansiosidade, como uma criança que espera um presente. Que surpresas lhe trariam os outros Reinos? Que oportunidades? Ela certamente não esperaria sentada em seu trono como uma estátua de mármore até ser tarde demais.

quarta-feira, janeiro 21, 2004

Segundo post:

Rainha de Espadas: Corações Vazios

Tudo, quase tudo, era perfeito no Reinado da Rainha de Espadas. Pelos quatro cantos, músicas ressoavam e as pessoas sorriam. Ela havia criado para os Corações de seus súditos as moradas de seus sonhos. E seu contentamento abria no perfeito rosto da Rainha o sorriso mais belo que já se vira. E ninguém viu uma coisa atrás daquele sorriso, nem a própria Rainha. Encantada com os desejos dos Corações de seus súditos, a Rainha não viu que lhe faltava um pedaço. Dizem alguns, que nenhum Coração é completo sozinho, nem mesmo o Coração das Rainhas que tudo vêem, e que se alimentam dos Corações de seus súditos. Na verdade, pode se dizer que nada é conhecido com certeza quando se falam dos Corações. Eles se escondem, brincam, enganam e disfarçam. Eles guiam sem nunca dar a direção, e mostram todos os segredos sem nunca os revelar. Mas uma vez, alguém em quem a Rainha muito confiava, disse-lhe que não bastariam nunca os Corações de seus súditos apenas. Governar aqueles corações era muito importante para ela, mas isto nunca tornaria o seu próprio Coração completo, e que para isto ela deveria fazer algo muito difícil e perigoso. Ela deveria oferecer seu Coração para alguém. O Coração da Rainha permanecia sendo dela, e ela deveria também ser governada por algo ou alguém. Pois os Corações de seus súditos pertenciam a ela, mas seu próprio Coração estava um tanto perdido.
A Rainha procurava, em todos os cantos de seu Reinado, alguém a quem pudesse entregar seu Coração. Mas ela parecia incapaz de encontrar, e cada dia mais isto a atormentava. Cada vez mais ela tinha um Coração Vazio.

Rainha de Ouros: Corações Roubados

Algumas pessoas ganham as coisas de presente; outras têm que conquistá-las. Império erguido das cinzas, Palácio dos Segredos forjado a ferro e a fogo sob o Desejo de centenas de Corações Roubados, domínio da Rainha de Ouros. Governante orgulhosa, zelosa de seus súditos, ciumenta dos seus sonhos. O sorriso escarlate cruzava seu rosto e fazia a própria palidez da lua ruborizar-se. Um reino que se estende sob o longo alcance dos dedos de sua ambição. Em seu olhar, uma certeza sempre presente: seu coração já é dela.

Bobo de Copas: Corações iluminados

Há muitos modos de se ganhar um Coração e de se fazer presente nos Desejos das pessoas. Algumas vezes, os Conquistadores de Corações estão nos lugares onde menos se imagina, escondidos atrás de máscaras e pinturas, atrás de risadas e truques. Algumas vezes, a felicidade está no sorriso de outros, em um relance de alegria que brota de gestos simples. Às vezes não se deseja prender um pássaro para apreciar seu canto, apenas se quer observar a beleza de suas asas enquanto ele voa livre sob o sol. O Bobo de Copas não queria os Corações cativos sob seu comando, não queria forjar Reinos, Impérios ou convencer-se de sua grandeza através da adoração de outros Corações. Ele queria pintar sorrisos dispersos, soltá-los nas ruas, assistí-los crescerem livres e desprenderem-se em caminhos distantes. Ele era apenas mais um dos Corações do Reino de Copas, ele era um Iluminador de Corações. E ele sabia que algo não estava certo no Reino, ele viu que o Coração da Rainha sofria. Ele sabia também, que ela era a Senhora dos Farrapos.
O Bobo, apesar de não conquistar Corações, podia sentí-los. E um dia, quando passava pelos portões do Palácio, sentiu as Lágrimas sem fim do Coração de Boneca. Ele desejou iluminar os Corações Vazios daquele Palácio, e transformou isto em sua missão pessoal.
Certo, acho que já foi muito mimimi tosco pra um blog que tem tão pouco tempo. E eu nem tenho me divertido tanto com meu mimimi quanto antes. Acho que perdi a prática. Então, achei que era bom eu arranjar um jeito de ganhar tempo, pra elaborar um mimimi de mais qualidade pros meus leitores. Eu vou postar um conto cujo começo eu já havia postado, mas não cheguei a colocar inteiro. Como ele é muito grande e ninguém vai ter saco de ler ele inteiro de uma vez, e aproveitando que ele é dividido em partes bem pequenas, vou postar uma ou duas delas por dia. Sei que mesmo assim ninguém vai ter saco de ler, mas pelo menos assim eu ganho o meu tempo.
(obviamente, eu acho ele uma merda e por isto não havia postado antes. Só pra deixar claro que eu nunca disse que era bom.)


Rainha de Copas: Senhora dos Farrapos

A luz do dia jogava uma beleza pálida sobre o Palácio de Cristal da Rainha, que estava em seu quarto olhando pela janela. Olhos perdidos no vazio, na imensidão do seu reinado que se estendia lá fora. Um reinado que ela muitas vezes parecia não acreditar que era seu, que parecia não fazer tanto parte de sua pessoa como ela própria parecia fazer parte dele. Mas, ainda assim, ela era a Rainha de Copas, senhora dos pensamentos, corações, desejos, angustias, aflições, alegrias, satisfações, temores, remorsos, intuições, frustrações, belezas e receios de todos aqueles que estavam lá embaixo. E o que ela podia fazer, se achava dentro de si um Coração que parecia estar vazio? Que Rainha poderia ser ela deste modo? Ela deitava-se noite após noite, sonhando com outras coisas. Ela sonhava com um outro lugar, com um Coração Desconhecido. Um que não estava dentro de seu reino, que não fazia parte de seus súditos, que não pertencia àquele lugar. Ela tinha tudo ao seu alcance, mas parecia apenas que queria algo que não podia possuir.
Enxergava os campos lá fora, as vilas, as praças, carruagens, pessoas, animais. Enxergava vidas se estendendo sob o manto de sua presença, sob sua beleza, seu carisma, sua imagem altiva que as pessoas cativavam, dentro daquele Palácio de Cristal. Enxergou a trama montada, todos os fios invisíveis de adoração e devoção que inevitavelmente saíam de todos os cantos e se emaranhavam e se embrenhavam naqueles cantos, chegando, enfim, ao Palácio e à sua pessoa. Mas de algum modo estava tudo em ruínas. Ela era, de uma forma ou de outra, a Senhora dos Farrapos.

Coração de Boneca: Lágrimas Eternas

Sempre lhe disseram que ele estava predestinado a ser um príncipe, a ser adorado, idolatrado e governar o Coração das pessoas. Que seu Destino era deixar aquele reinado da Rainha de Copas e formar o seu próprio, onde seus súditos viveriam cercados de perfeição. Não era à toa que lhe diziam isto. Ele era, autenticamente, um Senhor dos Corações. E por mais que negasse este seu talento, era inevitável que todos percebessem. Mas, ainda pequeno, ele disse não àquilo tudo. Partiu de seu pequeno vilarejo, arrastado por uma corrente invisível que o puxou dia e noite pelas estradas e caminhos sinuosos do Reinado, levando-o cada vez mais para perto do Palácio. As pessoas, que não estavam dentro do seu Coração, não podiam entender ou sentir que ele era mais do que alguém com a singela capacidade de guiar Corações. Ele trazia dentro de si uma ânsia, um desejo de entender aquilo, de entender suas Lágrimas. Pois era assim, suas Lágrimas vertiam-se de maneira incomum. Ele via pedaços das coisas e sentia tudo de uma forma diferente, e para cada vez que isto acontecia seus olhos derramavam mais Lágrimas. E era algo que ele não entendia; ou pelo menos achava que não entendia, mas na verdade, dentro de seu Coração ele conhecia íntima e verdadeiramente o significado de suas Lágrimas, o significado de sua vida. Não houvesse compreendido de alguma forma, teria então aceitado os conselhos de todos à sua volta. Teria feito seu próprio Reino, governado seus próprios Corações, construído seu próprio palácio, cultivado e alimentado sua alegria naquilo. Mas, apesar de ver a beleza dentro dos Corações, de entender aquelas coisas que dizem que só as pessoas como ele podiam fazer, ele via estas belezas com um sentimento estranho. Elas lhe faziam chorar, como todo o resto das coisas. Muitas vezes eram lágrimas de indiferença, muitas vezes eram lágrimas de medo. Ele não queria aqueles Corações, ele não queria governar daquela forma. Não, seu dom tinha outro propósito. Ele era como uma espécie de caçador, procurando com seus olhos de lince, suas Lágrimas de sal, encontrar em meio àquilo tudo uma coisa especial. Ele precisava encontrar, não importava o que fosse.
Assim que ele chegou ao Palácio, guiado por seu Coração de Boneca, procurando um vazio onde ele pudesse ver a imensidão. Virou um guardião, nos portões do Palácio de Cristal, onde passava o dia a vigiar e derramar suas incessantes Lágrimas.

segunda-feira, janeiro 19, 2004

Às vezes, quem muito fala nada tem a dizer. E eu derramei um rastro de palavras bobas que eu nunca quis pra mim nem pra ninguém. Mas castelos de palavras se ruem sozinhos, castelos de mentiras só existem quando dormimos.
Trocamos, nem todos eu espero, vidas por mentiras.
Queremos o impossível, o impensável, mas na verdade só queríamos aquilo que já tínhamos.
Aprendi comigo mesmo a desprezar o que tenho e querer o que não quero.
Aprendi comigo mesmo que meu arrependimento é uma conseqüência natural dos meus atos e que, portanto, talvez o melhor seja tentar ignorá-lo. Ninguém suporta uma vida em arrependimentos.
Onde estão as segundas chances e o que seria delas se elas existissem? Acho que são contos de fadas, feitos para ensinar uma lição que não faz diferença aprender. Porque nunca poderemos usá-la.
A esperança é só um fruto da tristeza, pois se não fosse assim, não precisaríamos dela. Se ela é boa ou ruim, isto nunca coube a mim julgar.
Eu disse já, que sempre construo um castelinho com cartas. Frágeis, que podem ser arrancadas do seu lugar a qualquer momento. E eu nunca soube proteger elas. Eu só queria minhas cartas de volta. Eu não quero fazer dramas, mas é difícil me censurar. Ainda mais quando pedem pra eu não fingir. Não dá pra fazer os dois ao mesmo tempo.
A vida é feita de sábados à noite e domingos de manhã. Pouca gente sabe disto.

sexta-feira, janeiro 16, 2004

As únicas coisas que existem são aquelas em que acreditamos.
Isto, na verdade, quer dizer que o que verdadeiramente importa na nossa vida é atribuir valores. Casamentos, dinheiro, virgindade, filhos, dinheiro, droga, amigos, sexo, amores. Apenas atribuímos valores a montes de coisas que poderiam não nos importar nada. Partindo deste princípio, podemos chegar à simples conclusão de que é tudo muito fácil: viver bem é apenas uma questão de viver pelas coisas certas. Acho que não. A não ser que você seja uma pessoa que consegue querer e valorizar as coisas do jeito que bem entender. Eu sei que não sou uma destas.
Eu queria perguntar pra alguém o que se faz quando nada existe de verdade pra você. Eu só tenho a minha resposta. Quando nada existe, alguma coisa passa a existir. Eu não deixo de acreditar em todas as coisas, não importa o quanto eu me esforce pra que isto aconteça. Se minha vida vai pra lugar nenhum, antes que eu me dê conta alguma coisa já existe em cima de um pedestal imaginário. Um novo objetivo de vida, uma coisa que vale por todas as outras que não valem nada. O pior é quando você tem certeza que esta coisa não vale tanto assim, mas mesmo assim não existe absolutamente nada que você possa fazer pra destituir o valor imaginário daquela coisa. Eu continuo achando que as únicas coisas que verdadeiramente existem são aquelas em que acreditamos. Mas como escolher em que você vai acreditar?

quinta-feira, janeiro 15, 2004

É tão óbvio, como eu não percebi antes?!
Tudo o que eu preciso é encontrar um significado, um objetivo maior na minha vida. Algo como servir a causa soviética ou pregar a palavra do senhor Jesus. Algo que me impeça de pensar em mim mesmo como uma criaturinha patética e sem sentido, e faça eu me enxergar como o portador de uma grandiosa mensagem para o mundo, o lutador por um amanhã mais digno para os herdeiros desta nossa terra.
Afinal, é isto ou ficar sentado em casa sendo o mesmo imbecil o dia inteiro.
Hm...que decisão difícil né?

É difícil me mexer, pensar ou sentir alguma coisa estes dias, porque eu só consigo pensar que qualquer coisa que eu faça dentro destes parâmetros me parece imbecil de toda forma. Alguém me ensina a colocar comentários nesta porra?

segunda-feira, janeiro 12, 2004

O conto de Natal deste ano. É uma bosta, mas eu tinha que escrever alguma coisa.



Cobrador de ônibus, ascensorista, lixeiro, coveiro, fiscal, contínuo, despachante, guarda de trânsito, balconista, secretário, datilógrafo, corretor de imóveis, corretor de seguros, vendedor de telemarketing, torneiro mecânico, flanelinha, camelô, homem-placa. É cada vez mais frequente eu ficar fazendo uma lista de profissões que eu considero pouco gratificantes ou dispensáveis, coisas que eu realmente não gostaria de fazer, e ficar comparando elas com o que eu faço. Sempre para chegar na mesma deprimente conclusão que todas elas parecem melhores do que a minha. Eu já gostei do que eu faço, eu sei que sim, mas já faz tanto tempo que eu nem me lembro direito. Uma coisa obsoleta, antiquada, inútil, até mesmo digna de pena.
E eu sei bem o que a maioria das pessoas diria disto. Na verdade, a maioria das pessoas nem acreditaria que eu penso assim. Mas isto é porque eles não estão no meu lugar, tudo o que eles vêem são aqueles filminhos pasteurizados onde tudo o que eu faço é uma beleza e tudo dá certo. Eu nem tenho mais credibilidade, já nem sei direito pra que sirvo. Me mato de trabalhar, e pra quê? Sozinho, num puta frio, fazendo um monte de porcariazinhas coloridas pra uns pirralhos ingratos de nariz escorrendo que ficam em casa engordando e se enchendo de peru. Nem se dão ao trabalho de dizer obrigado. Ninguém mais se dá ao trabalho de dizer obrigado. No máximo, quem recebe alguma coisa do que eu deveria receber são os paspalhos fantasiados nos Shopping Centers. E eu nem ao menos posso processar os imbecis por tentarem descaradamente tomar meu lugar sem nenhum trabalho e ainda tirar uma grana em cima disto. Vigaristas, isto sim. Aí sempre tem alguém que vem com aquela de que eu não devo fazer isto por reconhecimento ou esperando qualquer coisa em troca. Poderia até ser, e eu fazia isto com prazer antes.
Eu sei que vão interpretar isto como um papo de velho chato e ranzinza, principalmente porque, de fato, é um papo de velho chato e ranzinza. Mas antes era melhor dar presentes pra criançada. Em meio a milhares de pedidos idiotas de carrinhos, bonecas e bolas, eu sempre recebia alguns pedidos que dava gosto de realizar. Coisas que valiam a pena, que não eram uma porcaria de plástico pra ser esquecida atrás do armário dentro de dois meses. Coisas que somente eu poderia fazer, que não poderiam ser imitadas por qualquer industriazinha de trabalho escravo infantil em Taiwan. Mas, cada vez mais os pedidos são todos mesquinhos, vazios, sem originalidade e egoístas. É só assistir os comerciais dois meses antes do Natal que já dá pra saber direitinho tudo o que os molequinhos vão pedir. Lixo descartável com barulhinhos e luzinhas coloridas. Bela merda. E eu que me vire pra construir esta porcaria. Todo mundo acha que tem uns duendezinhos felizes que fazem tudo e eu só fico coçando o saco. Mais uma idiotice que inventaram pra entupir os especiais de Natal. O otário aqui tem que fazer tudo sozinho, desde a fabricação até a entrega.
Aí teve umas vezes, destas que eu estava bem de saco cheio, que eu decidi ser rígido. Eu pensei que, já que tudo isto andava uma merda, eu podia levar mais a sério esta história de que só as crianças boazinhas ganham os presentes. Agora, me responda, quantas crianças verdadeiramente boazinhas você conhece? Sinceramente, pensa nas porcarias que você fazia quando era pequeno e me diz: Você foi uma criança boazinha? Pois então, os presentes que eu fiz aquele ano foram poucos, e isto me deu uma satisfação cruel. Mas esta só durou até a manhã de Natal, quando eu descobri que tinha sido em vão minha estúpida tentativa de ser um Papai Noel severo. Todos os moleques mimados e chatos que fizeram um monte de porcaria o ano inteiro continuaram ganhando presentes. Papai e mamãe compravam o brinquedo mais colorido e bacana pros pentelhinhos. Foi aí que eu admiti pra mim mesmo uma coisa que eu já tinha percebido faz tempo mas tentava ignorar: Eu era totalmente dispensável. Não só as pessoas não acreditavam mais em mim, como elas já não ligavam pro que eu fazia. Se alguém quisesse um Papai Noel, era só contratar um otário e dar uma roupa pra ele. Se alguém queria um presente, era só ir na esquina e comprar. Eu estava mais desacreditado que a porra do coelhinho da páscoa.
Você não pode dizer que eu estou reclamando injustamente. Tem gente que reclama do emprego e diz que a remuneração é uma merda. Bom, você até pode dizer que estas pessoas sim estão reclamando injustamente. Baixa remuneração? Experimenta então trabalhar o ano inteiro e ser remunerado com a bondade, amor, boa vontade, compaixão, solidariedade e espírito natalino no coração dos homens, mulheres e crianças do mundo. Isto sim é passar fome.
Às vezes eu fico pensando que quem se deu bem de verdade foi o outro lá, que pode ter morrido na cruz e ter sido traído e tal, mas pelo menos o cara saiu por cima. Acho que é verdade aquela sabedoria popular que diz que é bom se aposentar enquanto você ainda está por cima. Hoje todo mundo lembra só das coisas boas que ele fez e, quando lembra de uma ruim, até parece que foi boa também. Todo mundo comemora e celebra ele, e eu fico esquecido aqui exceto por homenagens tão infames que eu preferia que não tivessem sido feitas. E eu nem ao menos sou sindicalizado, não tenho como e nem pra quem reinvidicar qualquer coisa. Melhores condições de trabalho, plano de saúde, direitos trabalhistas. Porra nenhuma. E nem dá pra fazer greve. Aposto que ninguém neste mundo tem mais acidentes de trabalho do que eu, e pode apostar que eu nunca recebi e nem vou receber nenhuma indenização. Jornadas de trabalho abusivas e condições de trabalho muito arriscadas. Depois daquela vez em que logo que eu saí da chaminé o filho da puta me deu um tiro na perna, eu nunca mais consegui andar do mesmo jeito. E imagina o meu medo de descer pelas chaminés de novo. Nunca mais fiz uma entrega sem um colete a prova de balas por baixo do uniforme que, diga-se de passagem, além de ridículo é incrivelmente desconfortável. E, eu não sei se alguém para pra pensar nisto, mas olhe para a casa das pessoas. Quantas pessoas você conhece que moram em uma casa e, ainda por cima, com chaminé? Você faz idéia de como é difícil entrar pra entregar os presentes hoje em dia? E, mesmo que os pirralhinhos entupam minha casa de cartas todos os anos, as portas obviamente nunca ficam destrancadas para facilitar meu trabalho. Tudo isto para entregar uns presentes estúpidos pra uns moleques que nem ao menos os merecem. Eu estava de saco cheio de me sentir um velho inválido e babão, e não aguentava mais me resignar a esta condição ingrata.
Bom, depois de te contar apenas uma pequena parcela da miséria que é a minha vida, eu espero que você não se apresse tanto em julgar os meus atos quanto os outros. Que atos? Bom, eu vou contar então. Tudo tem um limite, tem uma hora que chega a gota d’água. E eu estava neste limite, determinado a inventar um jeito de fazer as crianças me respeitarem novamente. De um jeito ou de outro, o Papai Noel sairia da galeria das caricaturas infames e sem dignidade e voltaria a se colocar como um ser respeitado, a quem cabe a difícil tarefa de julgar a bondade das crianças e ensinar lições de amor e outras merdas do gênero. Aí eu tive uma idéia, simples em sua concepção e que, no entanto, poderia funcionar muito bem. Por que não, ao invés de recompensar as crianças “boazinhas”, eu não podia punir as “malvadas”? E, pensando nisto, eu deixei meu lar na noite de Natal. Só que com um saco vazio desta vez, que, ao longo da noite eu fui enchendo. De cada criança que não havia se comportado, eu pegava uma pequena lembrancinha: O olho esquerdo. Ora, convenhamos, todo mundo pode viver sem o olho esquerdo. Mas seria desagradável o suficiente para que elas se lembrassem da lição. Os gritinhos histéricos de muitas delas foram o suficiente para que, em poucas horas, eu recuperasse o amor pelo meu trabalho. Agora sim eu era respeitado de novo, as crianças prestavam atenção em mim e teriam que se comportar bem.
Infelizmente, acredite ou não, o Papai Noel foi pego pela polícia e foi levado pra cadeia. Mas tudo bem, o saco já estava cheio de olhos e a minha missão neste Natal foi plenamente cumprida. É mais fácil para o Papai Noel fugir da prisão, eu estou acostumado a ter que entrar ou sair de lugares sem ser notado. E, se tudo der certo, ano que vem eu tenho muita coisa pra fazer. Espero sair com dois sacos no próximo Natal: um vazio, para encher com olhos, e um cheio de tapa-olhos e olhos de vidro para as crianças que se redimirem. É verdade o que dizem por aí, os tempos mudam rápido. E nós temos que nos adaptar, ou ficaremos para trás. Ainda bem que o Papai Noel sempre dá um jeitinho de ensinar às crianças o que elas precisam saber. Por isto, se as crianças que você conhece não se comportarem bem no ano que vem, diga a elas que fiquem de olhos bem abertos no Natal. Ho-Ho-Ho.