terça-feira, janeiro 28, 2014

#[Não] Vai ter Copa?[!]

Ele sai de casa às 5 da manhã, 
chega quase 7 da noite e não tem tempo
 nem de fazer um curso. (...) É o Fabrício que me sustenta. 
Fui ao banco e estou com as contas atrasadas. 
Eu não tenho como pagar as minhas contas.

- Evanilse, mãe de Fabrício, jovem de 22 anos vítima de três tiros da polícia militar no ato em São Paulo.

Não acho que são manifestantes quem anda com estilete,
 com materiais supostamente explosivos, com bolinhas de gude,
 e outros instrumentos que servem muito mais para agressão.

- Fernando Grella, Secretário de Segurança Pública do Estado de São Paulo, defendendo a ação da PM contra Fabrício. 


Dilma e seu parceiro, Joseph Blatter, presidente da FIFA, comemoram o grande evento
No dia 25 de janeiro o fantasma das mobilizações de junho, que tiraram o sono dos principais governantes do país, voltaram a rondar pelo país. É verdade que o número de manifestantes que se reuniram em 13 capitais estaduais não chega a somar nem o que havia em um dos grandes atos de junho. Mas tampouco as manifestações contra o aumento da tarifa começaram com dezenas de milhares. O que vemos hoje é nada mais do que a primeira batalha de um longo combate, que por sua vez faz parte de uma secular guerra.

A copa é o evento em torno do qual se organizam os campos em conflito: de um lado os grandes capitalistas que têm lucrado e lucrarão ainda bilhões, bem como os governos que são eleitos com seu financiamento e que são pouco mais do que marionetes em defesa de seus interesses econômicos e políticos; do outro lado estão os "deserdados" da copa: todos aqueles que teriam que economizar muito - talvez anos - para sequer conseguir comprar o mais barato dos ingressos de um jogo qualquer deste evento que será realizado ali do lado de suas vidas cotidianas. Ao mesmo tempo em que começam a se organizar as vozes insurretas dos que não aceitam passivamente a realização da copa, se levantam do outro lado os porta-vozes de sua defesa.

A preocupação não é pouca: desde a copa das confederações, em que verdadeiras batalhas campais ocorreram nas cidades-sede, com direito a mortes causadas pelas agressões da polícia, como a do jovem Douglas Henrique, que caiu de um viaduto em Belo Horizonte, tanto a FIFA como o governo federal passaram a colocar os atos contra a copa na sua agenda de principais preocupações para garantir que tudo ocorra bem no bilionário evento. E, como todo bom déspota sabe, a arma do convencimento é tão importante quanto as armas físicas, por isto o PT lançou uma anti-campanha chamada #Vaitercopa, com direito a uma tremenda campanha na internet de seus blogueiros e dos partidos governistas "de esquerda", com a juventude do PT e PCdoB na linha de frente. 

Cartaz da campanha #VaiTerCopa idealizada pelos governistas na internet

Alguns dos "pontos altos" desta campanha tem sido, por exemplo, o alistamento de voluntários para trabalhar na copa feito pela UNE - entidade que supostamente representa os estudantes universitários nacionalmente, mas que é dirigida há décadas pelo PCdoB através de eleições fraudulentas com direito a métodos de gângster de burocracia sindical, como espancar a oposição, e assim virou uma mera correia de transmissão estudantil do governismo. A entidade pretende recrutar dezoito mil pessoas para trabalhar de graça na copa; afinal, seria pedir demais que as corporações que terão lucros bilionários ainda pagassem para que pessoas trabalhassem no evento, não é? Recentemente, o pessoal do #Vaitercopa lançou uma nova campanha: a #Vaiterfusca, na qual pretende arrecadar dinheiro para comprar um fusca novo para o "seu Itamar", o cidadão que tentou atravessar uma barricada de colchões em chamas com seu carro. Os "generosos" doadores divulgam a falsa informação de que os "baderneiros", os "black blocks" atearam fogo propositalmente no carro com as pessoas dentro.

A campanha do #VaiTerCopa tem o seguinte eixo: quem é contra a copa, é contra o Brasil. Ou ainda, quando é mais abertamente petista, diz: quem é contra a copa "faz o jogo da direita", tal como eles dizem em todos os momentos contra qualquer um que os critique pela esquerda (quem é pela punição dos mensaleiros "faz o jogo da direita", quem é contra o governo do PT "faz o jogo da direita" e, numa versão mais apelativa, até a Marilena Chauí disse que os black blocks eram "fascistas"!). O célebre petista Paulo Henrique Amorim chegou ao cúmulo de, em seu blog Conversa Afiada, afirmar que "o #NãoVaiTerCopa é um movimento terrorista", comparando o incêndio do fusquinha do "seu Itamar" com o incêndio do Reichstag (parlamento alemão que foi incendiado pelos nazistas) e afirmando que as manifestações são uma "obra-prima da direita" (sic!). Pode-se dizer, sem exagero, que o fusquinha de seu Itamar virou o grande mártir da campanha #Vaitercopa. Talvez os três tiros de que foi vítima Fabrício - que segue internado em estado grave - tenham pouca importância diante de... um fusquinha destruído!

Cena cinematográfica do fusquinha do Itamar em chamas - o mártir do #vaitercopa dos governistas

Como um exemplo da campanha podemos citar o texto do Antonio Lassance no site petista Carta Maior. O esforço que os ideólogos petistas vêm fazendo para combater o movimento espontâneo do #NãoVaiTerCopa! demonstra a preocupação que o risco de manifestações tem causado aos petistas, por mais que repitam histericamente que "são uma minoria barulhenta". O texto de Lassance na Carta Maior começa com pérolas nacionalistas dignas de nota, como "Pela primeira vez em todas as copas, a principal preocupação do brasileiro não é se a nossa seleção irá ganhar ou perder a competição. (...) Um clima esquisito se alastrou e, justo quando a Copa é no Brasil, até agora não apareceu aquela sensação que, por aqui, sempre foi equivalente à do Carnaval." É natural que a primeira reação de qualquer pessoa que não está cegada por um petismo crônico e conhece um pouco a história do nosso país seja a de associar este patriotismo fervoroso ao ufanismo da ditadura militar, que colocava a seleção brasileira como tropa de choque ideológica da sua campanha de "pão e circo" para abafar os gritos dos que eram torturados e assassinados nos seus porões. Hoje, a tentativa do governo petista é abafar os protestos e colocar o PT "lá em cima" pra disputar a eleição no fim do ano. E, ao longo do texto o autor destila muito mais ladainha patriótica para comover os brasileiros a não serem mais dos que "torcem contra o Brasil", tal como qualifica os que são contra a copa (Ame-o ou deixe-o!). Mas vejamos seus argumentos menos nitidamente ideológicos e tentam se encobrir com números.

Um dos fatos que gera mais indignação em nós que vamos às ruas contra a copa, é, evidentemente, a cifra exorbitante dos gastos com o evento. Desde 2007, quando a FIFA fez a primeira previsão para a construção e reforma dos estádios, orçada em R$2,6 bilhões, houve um aumento de mais de 300% neste custo. A previsão inicial de 20 bilhões de reais contando todos os custos passou já para 28,5 bilhões, segundo o Ministério dos Esportes (Lassance fala em 26 bi). O autor rebate isto dizendo que "apenas" (!!!) 8 bilhões deste dinheiro (dados oficiais falam em 8,9 bi) serão gastos com estádios, e o restante com infraestrutura que ajudará todos os habitantes. Que lindo! Mesmo que isto fosse verdade, comparemos estes 8 bilhões em um evento de um mês com o orçamento anual da educação no Brasil: R$ 101,86 bilhões (5,8% do PIB), para todos os níveis educacionais em todo o país durante um ano inteiro! Portanto, para além dos "pequenos ajustes" que Lassance faz nos números oficiais (afinal, o que é um bilhãozinho a mais ou um a menos para este "impávido colosso" promover sua grandeza mundo afora, não é?), podemos dizer que os seus "apenas" 8 bilhões não tem nada de pouco. No Brasil o governo investe na educação, em média, R$ 5.800 reais por aluno por ano (metade do recomendado pela OCDE - Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico), contando todos os níveis de ensino. Na primeira fase de vendas de ingressos para a copa, um pacote para assistir a sete jogos na "categoria 1" custa R$ 6.700. Acho que nem todos os "amantes da pátria" poderão ver os jogos de perto... e talvez nem todos tenham uma educação minimamente digna, mas, deixemos isto pra lá e sigamos com os números.

Quando Lassance e os dados oficiais falam em gastos com "infraestrutura" (que ajudam a todos, veja que democrático!), sob este rótulo bonito escondem o caráter real das obras. Como disse o secretário-executivo do Ministério dos Esportes, Luiz Fernandes: "são 51 obras ao todo, espalhadas pelas doze cidades que vão receber a copa". Em junho do ano passado, foi divulgada uma das últimas grandes revisões dos gastos da copa, que mostrava que o gasto com estádios crescia e o gasto com infraestrutura diminuía. As duas únicas obras de infraestrutura em Manaus, por exemplo - o monotrilho e o BRT (Bus Rapid Transit) eixo lestem, com custo total de R$ 1,6 bilhões - foram removidas dos projetos, bem como o o monotrilho da linha 17 da CPTM em São Paulo - que custaria R$ 1,9 bilhões das verbas da Copa e mais de R$ 3 bilhões no total). 

Todas as mudanças de gastos seguem este padrão: retirada de obras que minimamente atendem ao interesse da população e incremento de obras nos estádios e seu entorno, que só beneficiam a FIFA e a burguesia ligada à copa. Assim, também a maior parte das obras de "infraestrutura" são em aeroportos - R$ 6,7 bilhões (que vão beneficiar muito a população trabalhadora, que, como todos sabem, não vai espremida como sardinhas em trens, ônibus ou metrô para seu trabalho, mas sim vai cuidar de seus negócios na Europa, sofrendo as "terríveis filas" dos aeroportos) - , ou obras no entorno dos estádios (apenas a intervenção em torno do Itaquerão custará R$ 317,7 milhões, sendo que nos anos de 2011 e 2012 o governo estadual investiu em toda a linha vermelha de metrô onde uma parcela considerável da população paulista é esmagada duas vezes por dia, a cifra de R$ 384 milhões).

Além disso, Lassance nos faz a gentileza de informar que "Quase 2 bi serão gastos em segurança pública, formação de mão de obra e outros serviços". Se é que podemos confiar em seus números, vamos ver qual o excelente serviço que presta à população a "segurança pública" - ou polícia, coxa, gambé, porco (no sul) etc. para nós, leigos em administração pública. Entre tantas coisas que a polícia faz pelos cidadãos brasileiros - como, por exemplo, sua "altíssima produtividade", chegando a matar cinco pessoas por dia e sendo uma das mais "produtivas" do mundo - vamos nos deter, já que é este o assunto, aos serviços prestados pela boa realização da copa. Podemos citar, por exemplo, a bem sucedida remoção dos índios que ocupavam a Aldeia Maracanã para que ali fosse realizada uma das incríveis obras de infraestrutura da copa que "irá melhorar a vida de todos": um estacionamento.

Índio que habitava a aldeia Maracanã impede o progresso da nação, mas companheiros da segurança pública ao fundo preparam seus argumentos para convencê-lo de que a Copa é de todos
A Odebrecht e outros participantes do consórcio responsável pelas reformas do Complexo do Maracanã, ao contrários dos teimosos índios e estudantes que foram ali apoiá-los (claramente gente que está contra o Brasil e fazendo o jogo da direita), foram grandes apoiadores das medidas de segurança pública adotadas e agora trabalham na infraestrutura que irá remover esta incômoda morada indígena em plena cidade para que todos possam democraticamente usufruir da copa.

Mas se você acha que as contribuições da Segurança Pública para a copa terminam aí, está muito enganado. O Portal Popular da Copa calcula que, entre Copa e Olimpíadas, serão removidas de 150 a 170 mil pessoas, sempre contando com os bons serviços da segurança pública para ajudar na mudança. São dezenas de comunidades que serão beneficiadas por estas melhorias, perdendo suas casas para dar espaço a algo muito mais importante: a alegria de sediar a copa do mundo. Veja, por exemplo, estes alegres moradores que tiveram o privilégio de ceder seus lares para a construção da Transoeste no Rio (que, por um problema de cálculo, acabou passando longe):


E, é claro, não podemos esquecer outro serviço indispensável para a Copa, a FIFA, a Dilma e todos os brasileiros que têm orgulho de ser brasileiros e sediar este grande evento: convencer estes teimosos descontentes que eles estão fazendo barulho à toa. Para isto, contam com a ajuda da Lei Geral da Copa, mais conhecida como "AI-5 da Copa", por sua leve semelhança com o decreto da ditadura que suspendia diversos direitos constitucionais dos brasileiros (claramente, de gente que não queria ajudar o país crescer). Esta simpática lei - aprovada com grande rapidez graças aos eficientes serviços dos deputados petistas Vicente Candido (relator do projeto) e Jilmar Tatto (que pediu regime de urgência para sua aprovação - proíbe greves até três meses antes da copa, estabelece a instituição de "crime de terrorismo" inexistente na legislação brasileira (opa, quem se lembrou do Paulo Henrique Amorim chamando os protestos contra a copa de "terrorismo"?), proíbe o comércio de ambulantes ao redor dos estádios (afinal, ninguém quer que os dólares dos turistas por acidente acabem beneficiando os pobres!), responsabiliza o Estado brasileiro por danos decorrentes do evento (afinal, se os "terroristas" forem acidentalmente assassinados pelas forças de "segurança pública", ninguém quer que isso cause algum problema legal para uma entidade prestigiada internacionalmente como a FIFA, né?), entre outras coisinhas mais.

Grafite comenta os investimentos de infraestrutura referentes à segurança pública na Copa

Além disso, parece que a Dilma e seu amigo Blatter estão realmente preocupados com a nossa segurança, e por isso nossa presidenta fará uma tropa especial de dez mil homens para confraternizar com os "terroristas" que não estiverem tão felizes com os estádios, as remoções, os investimentos em infraestrutura. O dia 25 de janeiro foi, sem dúvida, um primeiro ensaio de como irão agir estes delicados porcos fardados nos momentos mais cruciais. Veja por si mesmo como eles são amigáveis com os manifestantes que tentavam se proteger das bombas e cassetetes dentro de um hotel:


Um dos manifestantes que eles "cuidadosamente renderam" ficou assim:


Já esta outra, professora, agredida pela polícia, ouvia dos policiais "vadia!" e "filha da puta!" enquanto estes a chutavam, caída no chão.



Mas não é só a repressão física que estão preparando: discursos de PT e PSDB vem se encontrando na "linha dura" contra as manifestações contra a copa. Enquanto de um lado Paulo Henrique Amorim nos chama de "terroristas", de outro lado Fernando Grella diz que, sim, a polícia está certa em meter bala (não mais as de borracha que cegaram um jornalista ano passado) nos manifestantes para se proteger "legitimamente" de um estilete escolar e de seu material "supostamente explosivo" (sic!). Fabrício, neste momento, está na UTI em estado grave. E o Estado está dando para a polícia licença para matar em manifestações.

E, se a maior parte dos gastos já está feita, por que vocês vão às ruas protestar? Não é melhor agora deixar a copa acontecer? Não! Não vamos deixar a copa acontecer porque não nos calamos diante de todos os crimes que estão ocorrendo. Nos recusamos a ir para nossas casas, ligar as tevês e assistir pacatamente os jogos da copa que está sendo utilizada como pão e circo para abafar a miséria, para continuar gerando os lucros inumeráveis de poucos enquanto milhões morrem por nenhum outro motivo se não a exploração e opressão de que são vítimas para que estes parasitas enriqueçam. No Rio de Janeiro, durante o ato, nossos camaradas da Juventude às Ruas puxaram a palavra de ordem "Fifa é o caralho! Lá no Maracanã tem sangue operário", em referência aos operários que foram assassinados (isso mesmo, assassinados) pela queda de um guindaste no Maracanã em decorrência das péssimas condições de trabalho fornecidas pelas máfias da construção civil com a conivência dos governos. Quando o ato começou a entoar estas palavras, trabalhadores da construção civil ao lado aplaudiram e saudaram a passagem dos manifestantes. Não estaremos em casa porque é ao lado destes que queremos estar, dizendo que não somos apenas contra esta copa, mas contra tudo o que ela representa, e que não descansaremos enquanto não derrotarmos os que fazem este mundo ser como é.

Lutamos contra a copa não como um fim em si mesmo, mas como parte da guerra que travamos para que esta sociedade seja dirigida pelos que produzem tudo, e para que possamos ter escolas, hospitais, transporte público, moradia, tudo isto de qualidade e para todos, para atender as necessidades dos trabalhadores e do povo pobre, e não para o lucro de um punhado de parasitas. A copa representa este mundo velho e podre, onde alguns esbanjam dinheiro enquanto outros morrem por não terem atendidas suas necessidades mais elementares. Queremos estar na linha de frente da luta contra a copa com este sentido: de transformar esta revolta em uma luta por um mundo novo, uma sociedade sem exploradores e explorados, onde cada um produza de acordo com suas possibilidades e tenha acesso ao que é produzido de acordo com suas necessidades. E, pode apostar que, no que depender de nós, #NãoVaiTerCopa!

Operários da construção civil saúdam ato no Rio ao ouvir a palavra de ordem: "Fifa é o caralho! No Maracanã tem sangue operário!"





terça-feira, janeiro 21, 2014

Kaique, os suicídios e os suicidados.



Imagine andar na rua com medo, todos os dias; medo de ser visto pela pessoa errada, na hora errada, no lugar errado. Imagine ter medo de que sua família descubra quem você é, com quem você namora. Imagine ser espancado, torturado brutalmente, morto, apenas e unicamente porque ousou ser quem você é. Imagine que por séculos consideraram a sua sexualidade, a sua forma de amar, uma doença, e que até hoje é considerado um pecado, e em muitos lugares um crime. Imagine ser considerado esquisito, estranho, uma aberração, uma pária. Ouvir piadas sobre o "tipo" de pessoa que você é em cada canto, em cada esquina, em cada boteco, na sua escola, no trabalho, nos programas de televisão que fazem isto impunemente, porque não há nenhuma lei sequer dizendo que você tem direito de não ser discriminado por quem quer que seja.

Tudo isto, ou pelo menos grande parte destas situações, são coisas que os LGTTBI enfrentam todos os dias, sendo que no caso de alguns deles, como as travestis e transexuais, há ainda outras coisas que poderíamos acrescentar à lista, como ser quase sempre relegado à prostituição como forma de subsistência. A nossa sociedade não apenas é conivente com a violência contra quem tem qualquer tipo de sexualidade ou identidade de gênero distinta dos padrões heteronormativos, mas ela incentiva esta violência. Ela incentiva com suas instituições mais fortes: a Igreja, a televisão, a escola, a família.



Isto porque qualquer diferença na sexualidade (um desvio da normalidade, aos olhos da nossa sociedade) é um ataque ao que há de mais sagrado no lamentável mundo em que vivemos: a propriedade privada. Por quê? Bom, tem um sujeito chamado Engels, que explicou isto muito bem, e recomendo muitíssimo sua leitura. Mas, resumindo a coisa, acontece que a célula fundamental de uma sociedade baseada na propriedade privada é a família, aquela bem de comercial de margarina, com papai-mamãe-filhinhos. Como explica Engels, o surgimento da monogamia, do casamento, enfim, da família tal qual a conhecemos, está intimamente associado à origem da propriedade privada: para que houvesse herança era necessário saber de quem era o filho, e, bem, todos sabem quem é a mãe de alguém, já o pai... só se poderia garantir a certeza da paternidade impondo à mulher que só tivesse um parceiro sexual, e assim o pai poderia se assegurar de que transmitiria a seu filho de sangue a sua propriedade.

Contudo, há ainda outro fator de imensa importância no papel econômico desta: em uma família (ou pelo menos no tal padrão "ideal" de família) o papel do homem é o de "provedor", trabalhando fora e garantindo o sustento, e a mulher é a "senhora do lar", assegurando o cuidado dos filhos, a manutenção da casa, a preparação da comida, enfim, tudo o que se refere ao âmbito doméstico. Acontece que este trabalho "feminino" é fundamental para que todos os dias o homem possa levantar e ir vender a sua força de trabalho para o capitalista que irá explorá-lo. E este capitalista não paga um centavo para que a esposa do trabalhador faça tudo isto, por todo este trabalho que serve para que seus trabalhadores estejam todos os dias novinhos em folha para trabalharem para ele. Assim, este trabalho socialmente necessário é um trabalho não remunerado, que é "naturalizado" como sendo da esposa, da mulher. Com a revolução industrial, as guerras, o movimento feminista etc. a mulher foi progressivamente ganhando espaço no mercado de trabalho. O que mudou para as mulheres? As mulheres da burguesia ou da pequena-burguesia (as tais classes médias) passaram a contratar empregadas, faxineiras, babás - particularmente em países como o Brasil onde a tradição da escravidão nunca saiu da tradição das classes dominantes - para realizar suas tarefas domésticas enquanto elas trabalhavam. Para as mulheres trabalhadoras (como as próprias empregadas domésticas), veio a dupla jornada de trabalho, em que elas continuam sendo relegadas pelo patriarcado e pela sociedade machista a ter que realizar todas as tarefas domésticas, mesmo trabalhando oito ou mais horas fora de casa.



Este modelo de família raramente existe tal qual ele é "pregado" por nossa sociedade; no século XIX Marx já dizia, no segundo capítulo do Manifesto Comunista que esta família "Completamente desenvolvida (...) só existe para a burguesia; mas ela encontra o seu complemento na ausência forçada da família para os proletários e na prostituição pública. Contudo, mesmo sendo um modelo "ideal", é ele que permanece fundamentando a estruturação econômica da sociedade, a divisão sexual do trabalho, a criação dos filhos etc. Qualquer tipo de sexualidade que não seja a heterossexual, qualquer identidade de gênero que não seja cis (identidade de gênero e sexo coincidem), necessariamente coloca perguntas e questionamentos sobre estes modelos socialmente referendados, ainda que se faça um tremendo esforço para que, ao mesmo tempo que se reprime e se combate todo tipo de questionamento da heternormatividade, se procure cooptar os LGTTBI para terem uma aspiração de vida tendo como modelo a família burguesa e heterossexual.



Daí, ser gay neste mundo é ser subversivo, anormal, ser perseguido como um animal raro, por mais que seja algo completamente normal do ponto de vista biológico ou psíquico. Esta é a vida que, dentre tantos em nosso mundo, levava o jovem Kaique, de 16 anos. Diferentemente de jovens homossexuais ricos e brancos, que apesar de enfrentarem muita discriminação, podem relativamente - e apenas relativamente - se distanciar dela em locais onde sua sexualidade é mais aceita, como o Shopping Frei Caneca ou a USP, Kaique era pobre e negro. Ser homossexual na periferia de uma grande cidade como São Paulo é estar sob a mira constante da homofobia, ainda mais do que quando se mora nos Jardins. Pode vir por parte da polícia, do tráfico, pode ser alguém no bar, podem ser skinheads, pode ser o pastor da igreja ali ao lado ou seus próprios parentes. Podem ser insultos, ameaças, censuras, sermões, agressões físicas, abusos sexuais, estupros corretivos ou punitivos, tortura e assassinato. Não há nenhuma instituição que te dê o mínimo de amparo, seja ele legal, físico, moral ou psicológico para enfrentar isto. Na verdade, a maior parte delas faz parte da perseguição que está em todas as partes.

Kaique foi encontrado morto após sair de uma balada sorridente e feliz. Uma região rondada por skinheads, sedentos por descarregar seu ódio cego e estúpido em alguma vítima. Quando seu corpo foi achado, todos seus dentes haviam sido arrancados e uma barra de ferro estava atravessada em sua perna. A polícia, antes de qualquer coisa, disse que foi suicídio. O absurdo desta constatação, motivado evidentemente pela homofobia da própria polícia - amparada legalmente pelo fato de que a homofobia sequer é crime e os poucos casos registrados não são qualificados como crime de ódio, mas como crimes comuns - levou a que a família se pronunciasse publicamente e que se organizasse um ato no dia 17/01 pedindo justiça, pela apuração do assassinato de Kaique e a punição dos responsáveis.



No sábado havia familiares dele no ato; hoje, a família veio a público "reconhecer" que foi suicídio. As supostas "provas" de que foi suicídio são alguns escritos tristes em seu diário, ensaios de carta de despedida. Isto foi suficiente para contrariar todo tipo de lógica, como quando se afirma que ele caiu em pé mas que a queda lhe arrancou todos os dentes (além de enfiar em sua perna uma misteriosa barra, ocultada posteriormente pela polícia). Sabemos como funciona a polícia. A família de Amarildo, para dar apenas um exemplo, foi ameaçada para que não continuasse sua denúncia. Todos os familiares de pessoas mortas pela polícia e que ameacem denunciar são ameaçados, e mesmo quando a denúncia é levada adiante os policiais são julgados em tribunais militares especiais, onde são inocentados sem nenhuma preocupação com qualquer aparência de justiça.

Nada é capaz de me convencer que Kaique não foi brutalmente assassinado, não sem antes ter sido espancado e torturado. Mas, mesmo que fosse verdade que Kaique cometeu suicídio, que ele pulou de um viaduto para acabar com sua própria vida, ele teria sido assassinado. Viver com medo, perseguido, condenado, ameaçado e discriminado não é uma vida digna para nenhum ser humano. Inúmeras pesquisas feitas em distintos países ao redor do mundo, como esta na Holanda, atestam o número muito maior de suicídios na população LGBTTI do que em outras camadas. São pessoas que tiram a vida com suas próprias mãos, mas que foram assassinadas por uma sociedade doente, preconceituosa, que é incapaz de permitir que as pessoas tenham direito sobre seu próprio corpo e sua própria sexualidade. Tenha sido Kaique assassinado pelas mãos de skinheads ou mesmo na improvável hipótese de que ele lentamente tenha sido envenenado com a peste homofóbica de nossa sociedade, Kaique foi uma vítima de uma ideologia e uma sociedade que precisam - estas sim - morrer o quanto antes. Não descansaremos enquanto não for feita justiça e enquanto cada ser humano não possa expressar sua identidade de gênero e sua sexualidade como quiser, sendo respeitado por todas as pessoas e amparado de todas as formas pela sociedade.

segunda-feira, janeiro 13, 2014

um "rolezinho" na sociedade de classes


Vivemos no país com a segunda maior população negra do mundo. A maior fora da África. Considerem que este dado é subestimado, já que o racismo institucionalizado no nosso país entra fundo na cabeça de todos, incluindo dos próprios negros, que por conta disso muitas vezes acabam se enxergando como tudo que se possa imaginar (escurinho, moreno, jambo, pardo, marrom etc etc.) menos como aquilo que são: negros. Quem poderá culpá-los por querer se livrar daquilo que poderia ser considerado um estigma, neste país que é um dos mais racistas do mundo?

Um país construído na base da chibata e do pelourinho, com o maior influxo de escravos da história da humanidade, patrocinado pelos imperialismos europeus para explorar melhor este país e construir a sua riqueza. Um país que criou as favelas, os bandeirantes, a polícia mais assassina do mundo para tentar controlar uma população negra que ao longo da história deste país foi relegada ao que há de pior na sociedade. Uma população que nunca foi passiva ou resignada diante de sua exploração, mas que lutou, assassinou seus senhores, construiu seus quilombos, que luta a cada dia, como acontece hoje contra as remoções da copa. A escravidão não acabou com a abolição de 1888; ela apenas começou.



A escravidão mudou de nome, mudou de roupa, tornou-se assalariada e mudou de discurso, vestindo o disfarce encardido e cínico da ideologia racista da "democracia racial", que quer convencer os explorados e oprimidos de que já conseguiram sua liberdade e que somos todos iguais nesta sociedade miserável. A escravidão mudou de vários jeitos, mas não mudou de cor. Provar isto é tão simples quanto parece: entre em qualquer prédio público, um fórum, por exemplo. Veja a cor dos advogados, juízes, magistrados. Agora veja a cor dos que limpam os banheiros, dos seguranças. Entre em um condomínio de luxo, veja a cor dos moradores; agora veja a cor das babás, porteiros, empregadas, faxineiras, motoristas, seguranças. Entre em uma universidade pública como a USP ou a Unicamp; entre em uma sala de aula e veja a cor dos alunos. Agora, vá ao bandejão, para a cozinha, e veja a cor dos funcionários. Entre em um presídio e veja a cor dos presidiários; entre em um parlamento e veja a cor dos parlamentares. Vá a um jogo da copa, veja a cor dos que ocupam as cadeiras. Vá ao lado de fora, veja a cor dos camelôs. Veja as estatísticas salariais, de mortes violentas, de presos, de educação, saúde e moradia. Veja a cor delas. Não há nenhuma mágica argumentativa que possa, diante da realidade, sustentar que não há racismo no Brasil.



Mas o que há é muito cinismo. Nas escolas, nas universidades, nas novelas, na religião, nas famílias. Nos ensinam mentiras, mentiras tão grandes e poderosas que chegam a fazer as pessoas não conseguirem ver o que há bem diante de seus narizes. Fazem as pessoas não verem que dentro de um shopping center, o mais simbólico templo do consumo em nossa sociedade, os negros tem lugares bem determinados: atrás dos balcões das praças de alimentação, vestindo os uniformes de funcionários de limpeza, os uniformes dos seguranças.



Até onde eu sei, começou na cidade de Vitória, no final do ano passado: jovens realizavam um baile funk num píer, ao lado de um shopping. Os bailes funk, tal como outrora os terreiros de candomblé ou as rodas de capoeiras (manifestações culturais predominantemente do povo negro) vem sendo criminalizados e perseguidos. Assim, a polícia resolveu acabar com o baile, e os jovens se refugiaram dentro do Shopping Vitória. Os clientes ficaram apavorados quando viram os jovens, em sua maioria negros, entrando: tratava-se de um arrastão, para eles. A polícia interviu, prendendo as centenas de jovens que não estavam fazendo nada, se não tentar procurar proteção da própria polícia e de sua violência assassina e racista.



Foi depois disso que os "rolezinhos" começaram a ser marcados por todo o país. Milhares de jovens que sofrem todos os dias com o racismo, a violência policial, a exploração em seus trabalhos, a falta de lazer em suas comunidades, resolveram se vingar, e dizer que eles também tem direito de andar no shopping, como qualquer branco cheio de dinheiro. Mas a nossa sociedade discorda desta conclusão.



Primeiro foi a polícia, intervindo da única forma que sabe fazer, de forma violenta e racista, para assegurar o passeio "tranquilo" da classe média branca dos shoppings. Depois, a justiça seguiu seu exemplo e passou a conceder liminares aos shopping proibindo os rolezinhos e garantindo multas e prisões para quem os praticasse. Qual o crime? Estar em um lugar ao qual você não pertence. Mostrar àqueles que querem que você exista apenas para servir, que você existe também quando não está de uniforme e trabalhando. Os que criaram e perpetuam a desigualdade e a miséria tem medo: temem todos os dias que a violência que eles mesmos criaram venha bater em sua porta, venha tomar deles aquilo que eles sistematicamente negaram à maioria. Por isto, escondem-se em enormes condomínios com grades e seguranças (muitas vezes negros, mas devidamente uniformizados e servindo); por isto, apelam para a polícia para ameaçar, reprimir, enxotar. Por isto escondem-se nos shoppings, espaços controlados, seguros, onde estão entre os seus. E por isto os rolezinhos lhes apavoram tanto.


O apartheid e o racismo no Brasil não tem nada de sutil ou velado. Ele é tão ostensivo, assassino e opressor quanto foi na época em que os senhores de engenho chicoteavam seus escravos. Só não vê quem não quer, ou quem está soterrado pela ideologia de uma classe dominante que vive com medo. Com medo de que a classe trabalhadora negra deste país tome seu destino em sua própria mão e acabe com os descendentes destes senhores de escravos, que vivem ainda hoje fazendo dos seus quartos de empregadas, de seus presídios e camburões as senzalas modernas.

Hoje, no Facebook, um amigo de uma amiga disse que a comparação entre a proibição aos rolezinhos e o apartheid (regime de segregação racial existente até os anos 90 na África do Sul) era desproporcional e descabido. Por que?, eu pergunto. Quando um estado tira sua máscara e diz abertamente que os negros não podem frequentar o mesmo espaço que brancos sob pena de serem presos, agredidos e multados, sem sequer se dar ao trabalho de uma justificativa, por mais esdrúxula que esta seja, isto é apartheid. Isto é o estado dizendo que os negros tem um lugar na sociedade, que é o de explorados.



Estes são os calouros da FEA (Faculdade de Economia e Administração da USP) fazendo seu "rolezinho" no Shopping Eldorado em 2011, devidamente guiados por seus veteranos, que tal como num ritual militar iniciam os "seus bixos" para ensiná-los na tradição do corporativismo e da segregação, cantando que a "FEA USP é a melhor escola do Brasil" e comemorando a exclusão social do vestibular berrando que "só burro paga", enquanto mais de 70% da juventude brasileira (principalmente os negros) estão excluídos das universidades públicas que sustentam com seus impostos. Destilam também machismo com suas musiquinhas imbecis.

Reparem no começo do vídeo o segurança passivamente observando ao lado, sem esboçar reação durante os mais de dez minutos desta manifestação que expressa o que há de mais nojento, racista e elitista na "universidade de excelência". A coluna da direita no Youtube mostra que tal evento ocorre todos os anos, sem nenhuma interferência da polícia, nenhuma liminar da justiça, sem tropa de choque prendendo e espancando ninguém.



Os que são proibidos pela justiça e pela polícia de entrar no shopping numa decisão que escancara o apartheid social existente na nossa sociedade são os mesmos que estão excluídos das universidades por outro tipo de apartheid tão naturalizado: o vestibular. Estes que comemoram a exclusão dos negros das universidades neste vídeo são os mesmos que exijem a presença da polícia para tirá-los de seus locais de lazer, os shopping centers. Na concepção desta burguesia e pequena burguesia, de maneira escancarada ou velada, a única função dos pobres e negros é serví-los: do outro lado do balcão nas praças de alimentação, limpando suas salas de aula como trabalhadores terceirizados.

Passa da hora de dar um basta ao apartheid que existe nesta sociedade racista. O capitalismo é a principal fonte disto. A libertação do povo negro só virá com a revolução, com o fim da sociedade de classes, com a dissolução da polícia que serve para reprimir o povo negro e os trabalhadores. 

Come ananás, mastiga perdiz: teu dia está prestes burguês!
A revolução brasileira virá, e ela será NEGRA!