domingo, dezembro 24, 2006

Milagres


O natal é uma época de milagres.
Eu voltava pra minha casa a pé, os ônibus eram bissextos naquela manhã cinza da véspera do feriado. É ridículo, eu sei, mas a gente acaba sendo contaminado pelo sentimento de todo mundo em volta. E o tédio e a mansidão dos dias me faziam querer acreditar em alguma coisa diferente, qualquer coisa. Era por isso que eu andava com a cara meio franzida, mas com um sorriso por dentro, com a expectativa de algo por vir. A cada esquina que virava, me sentia um idiota por esperar que algo acontecesse, qualquer coisa que eu, na verdade, sabia que não aconteceria.
As ruas estavam meio vazias, algumas pessoas passavam com sacolas de compras. Um vento meio frio entrava por um buraco que eu tinha no sapato esquerdo, mas não me incomodava. Não era muito frio, e eu me apegava àquilo como se fosse algo digno de recordar, como se fosse um pequeno detalhe antes de um evento que me marcaria pro resto da vida e que, passados vários anos, eu poderia lembrar comigo mesmo: é, eu me lembro de cada detalhe daquele dia: tinha um furo no sapato esquerdo por onde entrava frio e, cruzando a esquina em frente à padaria, eu lembro distintamente de um velho carregando uma sacola de pães mornos, seu cheiro enchia a manhã e ele cantarolava uma música de natal. Me apegar a estas idiotices fazia parte da expectativa de um milagre de natal, bem como aquela falsa impressão de que tudo o que eu fazia podia ser importante e mudar a minha vida de alguma maneira. Sabe, quando você fica pensando em todos os detalhes e dizendo: se eu tivesse passado por esta rua cinco minutos depois, poderia ter sido assaltado e talvez levar um tiro na perna, isso poderia mudar toda a minha vida. Ou se, na quinta série, eu tivesse aceitado o convite da Maria pra ir à sorveteria nós poderíamos ter nos beijado, nos apaixonado, nos casado...Tudo era uma grande idiotice, mas o dia era diferente dos outros. Minha cabeça não deixava ser igual. As coisas banais tinham aquele potencial e aquela poesia de alguns livros, tudo era um fluxo de consciência na minha cabeça. Ou pelo menos eu fingia que era assim.
Minha vida não era um ambiente propicio a milagres. Mas, pensando bem, acho que a vida de ninguém é, e talvez por isso todo mundo precise tanto do Natal. É como um dia em que todos podem olhar qualquer besteira e revesti-la de um caráter mágico, especial. Tudo pode ser um milagre. Só que eu acho que na maioria das vezes isso dá meio errado, como se o tiro saísse pela culatra. Atravessei a rua olhando pela janela de uma casa: uma família assistia televisão, pareciam esperar pela ceia. Não diria que pareciam especialmente felizes, mas pareciam querer estar, se esforçavam por encontrar um amor familiar e um apego à vida que certamente nunca teriam numa segunda-feira à tarde, por exemplo. Era algo assim, como um dia em que tudo lhe diz para parar e contemplar a vida, para procurar o valor das coisas que deveriam ser valorosas e que deixamos passar batido.
Ao atravessar a Consolação vi um mendigo maltrapilho que esparramava sua vida na rua, como todos os dias. Só que hoje era mais triste.
É claro que o tiro sai pela culatra. Pensa só: de repente você se vê obrigado a confrontar tudo aquilo que fez e faz da sua vida, todos os caminhos que trilha e, principalmente, os que deixa de trilhar. Não é o tipo de coisa que deixa uma pessoa ilesa. Ainda mais se você está sozinho, sem um peru e uma numerosa e barulhenta família para dispersar seus pensamentos. Sei lá, uma ou duas garrafas de cidra barata e um pouco mais de disposição e pronto, você resolve que não vai mais ter que passar por isso no ano que vem. É quase uma seleção natural da sociedade de consumo, um feriado em que a maioria das famílias ricas desembolsa uma quantidade satisfatória de dinheiro e, por outro lado, um punhado de gente relativamente inútil se mata. Quer dizer, talvez seja uma generalização idiota, mas acho que o pessoal que costuma se matar no ano novo são também aqueles que costumam gastar e ganhar menos dinheiro. Claro, deve ter sempre um ricaço com crise de consciência, pensando que não dedicou tempo suficiente de sua vida à família e coisa e tal. Mas, convenhamos, se você tem um bocado de dinheiro é mais fácil comprar algo pra te aliviar.
Talvez neste ano eu estivesse mais triste e amargo do que de costume mas, mesmo assim, enquanto perambulava pelas ruas e pensava este monte de asneiras, eu ainda não conseguia controlar aquela minha parte que sabia: o Natal é uma época de milagres. E, pensando bem, acho que a melhor vítima pra um milagre redentor e maravilhoso é alguém assim, com uma vida medíocre, meio sem perspectivas. Talvez, se eu estivesse pensando em me matar, fosse um candidato melhor. Mas não. Não era que a idéia do suicídio me parecesse desagradável em si, mas é que na minha cabeça sempre houve algo de auto-indulgente demais a respeito do suicídio. Me deixava desconfortável a idéia de que parentes e “amigos” fossem estar no meu enterro, comentando sobre como sentiam pena de mim, e eu estaria esticado no caixão sem a menor possibilidade de mandá-los à merda.
Na verdade eu não estava indo pra casa. Apenas andava naquela direção, porque era o único lugar que tinha pra ir. Era mais deprimente e tedioso lá, e nas ruas eu não me sentia exatamente triste. Era uma melancolia quase agradável e contemplativa, esperando meu milagre em cada instante. Nas ruas, sempre é mais fácil encontrar milagres. Mas estava um pouco frio, e minhas pernas começaram a cansar de andar, por isso resolvi procurar meu milagre esperando um pouco no primeiro banco que encontrei e que, por acaso, foi o do ponto de ônibus. Uma vez sentado no banco frio e um tanto desconfortável do ponto, repassava na minha cabeça outros natais e as coisas que eles levaram. Às vezes, concluí, os milagres até aconteciam. Notei então, em frente ao ponto, uma banquinha de livros velhos. O vendedor, com a boa vontade dos meus olhos natalinos, poderia ser o papai Noel disfarçado. Ele me aguardava com a paciência dos benfeitores, separava em sua sacola de bondades o meu milagre de Natal. Mas tudo o que pude encontrar ao me aproximar da banca foi um velho triste e solitário que, graças a algum problema na perna, mal podia se levantar. E trazia o rosto triste dos que trabalham no Natal para poder sobreviver. Sem milagres.
Esperando no ponto li o livro que comprei do velho por uma bagatela. As páginas amassadas e amareladas traziam contos de Natal de autores quase anônimos, que de certo passaram algum natal escrevendo e esperando seu próprio milagre de levar ao mundo suas palavras. Reconfortava-me pensando que, ao ler aquele livreto toscamente impresso, ajudava de alguma forma a realizar o milagre de Natal dos que o haviam escrito. E, é claro, eu também sabia o quanto era idiota pensar isto. Cerca uma hora lendo aquelas páginas não me aproximaram não de um milagre. Nas histórias em que li estes eram abundantes e redentores. Traziam a quem os recebia e presenciava um momento epifânico em que, por fim, todo o sentido do Natal se revelava. As pessoas mudavam, o mundo mudava. Tudo mudava. Nas histórias, as pessoas não pegavam ônibus e nem procuravam por milagres em uma rua cinza de São Paulo. Elas também não se afunilavam entre multidões sufocantes tentando comprar seus presentes na rua 25 de Março. Jesus estava presente em muitas delas, às vezes mais do que Papai Noel. Mas nunca era representado em um presépio de plástico fabricado na China e montado por um velho e rabugento síndico na portaria de um prédio. Os milagres das histórias nunca eram fruto de luzinhas coloridas que são ligadas na tomada, nem tampouco os protagonistas se referiam a tais luzinhas como portadoras do espírito do Natal e sei lá o que.
Uma das histórias, dizia o prefácio do livro, era uma versão de tal autor sobre um conto de natal clássico de um cara chamado Charles Dickens. Era sobre um cara rico e muquirana que recebe uma visita de uns espíritos e vira um cara um pouco menos muquirana porque tem medo de ser castigado por sua mesquinharia depois da morte. Esta história foi a única, acho, que pareceu ter algo em comum com a minha vida. Meu patrão parecia o sujeito da história, e parecia também ter medo de ser castigado se não fizesse boas ações. De fato, ele me deu uma bonificação de natal e um peru pessoalmente, e mandou um cartão enfeitado pra minha casa. Uma semana depois, no entanto, ele mandou um encarregado me dizer que a firma estava passando por um processo de reestruturação e que, infelizmente, na prática isso queria dizer que eu ia começar o novo ano sem emprego. Esta última parte não estava em nenhuma das histórias, e acho que Papai Noel não costuma trazer empregos em sua sacola. De qualquer maneira, eu não tenho chaminé e não escrevi uma carta pra ele. Acho também que ele não diria que me comportei bem neste ano.
Quando meu livro já estava quase no fim, enfim chegou o ônibus. Encontrei-o relativamente cheio, dividindo seu espaço entre as pessoas que voltavam para casa e as sacolas de presentes que se amontoavam. O cobrador tinha um rosto fatigado, os cabelos esbranquiçados e a expressão marcada por rugas que começavam a se insinuar. Eu senti um desejo sincero de desejar a ele e sua família um feliz natal e, de alguma forma, fazer brotar um sorriso em seu rosto. Contentei-me em lhe esticar em notas amassadas e moedas o dinheiro trocado da passagem e passar em silêncio pela catraca. Durante a viagem, as pessoas estavam ensimesmadas em seus sacos de presentes.
Não conversei com ninguém, como sempre costumo fazer dentro de qualquer ônibus que pegue. Só que hoje era mais triste.
Minha ceia foi um salgado gorduroso, duro e ressecado e algumas garrafas de cerveja em um boteco. Fiz questão de entrar em um que nunca tivesse freqüentado. Eu sabia que os milagres se escondem nos lugares mais improváveis. Minha sociabilidade de Natal foi facilitada pelo álcool, e acabei entabulando uma conversa com uma prostituta que se apresentou como Leila. Falei todo tipo de idiotices pra ela, e ela não apenas ouviu como também respondeu e parecia até mesmo alegre ao conversar comigo. Atribuí isto ao fato de que ela estava acostumada e, como requisito da profissão, agüentava todo tipo de bêbado idiota, fazendo com que eles acreditassem que ela estava se divertindo. Mas acho que ela não alimentava ilusões de que eu fosse um cliente em potencial. Já havia deixado bem claro a minha falta de dinheiro ou de vontade de usá-lo, caso tivesse, para garantir uma trepada de natal. Acho que isso seria ainda mais solitário e triste do que beber até cair e vomitar na sarjeta. Só que a menina era legal mesmo, e acho que resolveu conversar comigo porque devia também querer alguma companhia para passar o Natal. Pareceu-me bastante compreensiva quando lhe confessei que procurava um milagre de natal. Achei que, mesmo sem confessar, ela fazia o mesmo. Muita gente faz. Contei do livro que havia comprado. Ela disse que conhecia a tal história do muquirana, que ela havia visto um desenho do pato Donald sobre isto. Nesta hora, lembro-me que começamos a tomar um conhaque vagabundo em celebração à noite. Ríamos e falávamos alto.
Sabe, eu confesso que não me lembro exatamente o que aconteceu depois disso. Algumas imagens esparsas me ocorrem de vez em quando, como um álbum de fotografias desarrumado. Tudo o que sei é que no dia seguinte acordei com uma dor de cabeça a mais e todo o meu bônus de natal havia sumido sem deixar rastros. Achei um papel com um telefone, e algumas coisas escritas em uma letra meio ilegível e borradas por algum líquido. Não quero pensar sobre o que pode realmente ter acontecido. Prefiro ter a certeza de que durante este turbilhão de horas, eu encontrei meu milagre de Natal.

terça-feira, dezembro 19, 2006

Tá bom então...
Quanto a mim, tenho uma reconfortante pilha de livros, um quarto inteiro pra arrumar, e outras coisas. É, bem, vamo aí...