terça-feira, abril 28, 2020

sonho

Um condomínio com portões, seguranças. Noto que os seguranças todos tem patentes, como se fossem todos soldados, ou policiais, em um bico. Um deles vem até mim, ele me diz, em tom amigável mas sério, que não posso ficar "passeando". Isso porque eu havia subido, mas depois desci, fiquei um pouco ali ao redor, olhando. Ele me adverte de que não devo fazer isso. Eu pergunto o porquê. Ele começa a me explicar, numa clausura na entrada, mas dois amigos dele ficam conversando com ele sobre algum jogo online, ele divide a atenção, até que os amigos dizem que se falam outra hora.
Fico pensando sobre como esse condomínio era horrível, olhando para fora e vendo que está num bairro de classe média alta de São Paulo. Refletindo sobre isso, penso porque foram morar ali. Quem? Seus pais; nesse momento aparece no sonho que eram eles que haviam ido morar ali, procurando um lugar seguro e tranquilo em São Paulo, que não ficasse vulnerável à violência da cidade. Você parece não aprovar, mas não os condena.
Eu acordo.
Há uma mensagem. Com ela, talvez o primeiro respiro em muitos dias.
Aquilo que não posso ter



(uma concessão pra mim nessa data querida. Volto ao controle)

terça-feira, abril 21, 2020

Dor Elegante

(Paulo Leminski)

Um homem com uma dor
É muito mais elegante
Caminha assim de lado
Como se chegando atrasado
Andasse mais adiante

Carrega o peso da dor
Como se portasse medalhas
Uma coroa, um milhão de dólares
Ou coisa que os valha

Ópios, édens, analgésicos
Não me toquem nesse dor
Ela é tudo o que me sobra
Sofrer vai ser a minha última obra

shut out

Do lado de fora vejo a chuva
cair sobre tudo, 
já não posso ver dentro
já não posso ver nada

esperando o momento derradeiro
das palavras que não posso dizer
um raio de tristeza me rasga
toda vez que penso em você

uma vida que não foi
mas que não consigo deixar para trás
agora estou trancado para fora
e a sabedoria dos tolos
não irá me libertar
caio de joelhos
e rezo

segunda-feira, abril 20, 2020

bananinha



Outo dia achei uma bananinha em meio às minhas coisas. Aquelas: doce de banana, cozida, com açúcar em volta. Ela estava junto com uma goibada, de tamanho semelhante, de mesma origem: o bandejão.

A goiabada, eu comi, numa hora dessas de tristeza e jejum prolongado. A bananinha não.

Ela era um presente. Não desses que tem data certa, obrigação ou etiqueta social que te induz a dar, pensar no que a pessoa quer ou comprar algo genérico que serviria a qualquer pessoa em qualquer data, e, por obrigação social, pelo bem da circulação de mercadorias, pela manutenção da economia e para atestar a eficácia das estratégias de marketing que rechearam nossos calendários de datas "especiais", se dá.

Não era, mesmo porque nessas datas não se dá uma bananinha. Em um Natal, se uma mãe presenteia sua filha ansiosa por uma Baby Alive com uma bananinha, ela sem dúvida se frustraria. Não era a bananinha que a menina desembrulhava no Youtube, nem que a amiga exibia lhe fazendo inveja. Não, ninguém produz nas mentes das crianças uma cuidadosa ânsia por bananinha, sustentando a roda da mercadoria e do desejo.

Nem, na verdade, se dá uma bananinha de aniversário à sua mãe, ou mesmo de dia das mães. Nas propagandas, aquelas emocionantes que dizem quão importante são as mães, ninguém se emociona com uma bananinha. Os perfumes, roupas, chocolates caros são os objetos de desejo, só eles mostrarão quão especial é sua mãe.

A bananinha, esse pequeno doce industrializado e embalado em plástico, foi produzido pela "Castelo de Chaves", indústria e comércio de alimentos, em Jacupiranga, interior de São Paulo. Banana, açúcar a ácido fosfórico a compõem. Produzida sem nenhum carinho, e não pelas mãos de uma dedicada vovó, ela foi feita numa linha produtiva industrial por operários explorados, de quem se extraiu a bananinha e a mais-valia. Vendida em lotes para a Universidade de São Paulo, ela chegou ao bandejão, onde foi distribuída por outros peões, dessa vez os trabalhadores do Restaurante Central, num almoço como outro qualquer. Um estudante, uma bananinha. Muitos não pegam a bananinha: não gostam do doce. Outros a pegam, e a comem indiferentes.

Essa não. Ela foi pega, guardada. Depois, foi dada de presente. Como quando você vê uma coisa bonita, e isso te alegra, porque te lembra de uma pessoa que você ama. E você guarda aquela coisa, como quem zela por um amor. Porque se lembra do brilho de um olhar, um detalhe qualquer, que ninguém mais notaria, quando a pessoa viu uma coisa daquela. Como quem lembra de uma preguiçosa tarde de sábado, num restaurante, quando uma pessoa comprou uma bananinha. Um doce, de uns 2 reais.

Sabe quando você lembra de como uma pessoa mexe sua mão quando fala, do barulho que ela faz quando fica sem jeito ou te desdenha, ou do jeito que a boca dela mexe quando sorri, e você suspira? Assim, às vezes, são as pessoas com uma bananinha. E ela, quando te é dada de presente, vale mais do que qualquer desejo fabricado escrupulosamente por um publicitário. Naquela bananinha está concentrada a mais autêntica declaração de amor.

Um amor é repleto de bananinhas, quando é sentido de verdade. Porque por toda a parte aparecem as "bananinhas": a pessoa que ocupa seus pensamentos é cheia de detalhes, prontos a serem percebidos, e tudo ao redor irá te lembrar dela. Os pequenos presentes do dia-a-dia, as pequenas coisas que se faz. Mensagens, poemas, canções, olhares, piadas internas, jogos. A paixão é feita de bananinhas. E, por isso, as comemos, sem pena; hoje há uma bananinha, cujo gosto é muito melhor do que a de uma comprada por aí ou ganhada de um trabalhador do bandejão. Amanhã haverá outra a nos manter incandescente a alma.

Mas quando as bananinhas cessam, aí as coisas mudam. Cada bananinha é um pequeno tesouro de um passado perdido, de quando ainda se era feliz. Como num casamento onde já não há amor, e se olha para uma foto em que os olhos brilham se encontrando, e toda a intensidade daquela paixão, toda aquela felicidade tem o efeito de uma lança em brasa entrando no peito. Às vezes, nesses casos, é a dor por um amor que já morreu. Mas essa, não: a bananinha é a dor de ainda sentir a alma em brasa. De ainda esperar navios.

Na sua embalagem, meio apagada, mal se lê uma data de validade que parece dizer: 12/20. Ao ler isso, dói ainda mais pensar que o ácido fosfórico talvez tenha maior poder conservante do que minhas ações desastradas, e que a bananinha industrializada pode durar mais do que o amor.

Eu não consigo comê-la, é patético. Tenho vontade de segurar a bananinha e chorar, lembrando de quando me foi dada. Lembrando da tarde de sábado em que alguém me amava tanto a ponto de prestar atenção num detalhe ínfimo, de que eu gostava de bananinha. Que alguém me amava tanto a ponto de ficar feliz ao ganhar uma sobremesa qualquer, porque poderia guardá-la para dar de presente. E que seria o melhor presente.

Não consigo deixar de lembrar de quando perdi uma pessoa que amava em um trágico suicídio. Ela deixara na minha casa uma pasta de dente, que não conseguia usar, nem jogar fora. Ridiculamente, repetia para mim mesmo que "ela não é a pasta de dente", tentando avançar com passos de formiguinha em meu luto. Um dia, a pasta de dente se foi. Já nem me lembro como.

No inconsciente não há tempo, dizia Freud. Um trauma da infância pode ficar ali, congelado, como um fóssil preservado embaixo da terra, por anos, até vir à tona e rebentar em suas poderosas consequências como se o acontecimento fosse hoje. O recalque o preserva, os sintomas o transformam. Não sabemos o tamanho de nossas dores, nem tampouco importa tanto o tempo em que a sentimos. Um mês pode te parecer um nada. Já há mais de um mês amargamos a devastação de uma pandemia, e no entanto esse mês mudou a cara do mundo, e está criando traumas em nossa sociedade que podem rebentar com a força devastadora de um retorno do recalcado.

Uma bananinha se ganha em um dia. O significado dela não está nesse dia. Mas um mês é o suficiente para ganharmos bananinhas que podemos passar uma vida inteira sem conseguirmos digerir.
Essa maldição nas minhas mãos
tudo que toco desvanece
torna-se pó, desfaz-se em areia.

Essa maldição em minha boca
tudo que provo é a ferrugem
essa decadência em meu sangue.

Tocando à distância
na relva densa das memórias
o cheiro, a voz, o toque, o olhar
tudo é farpa, que entra fundo na pele.

Nada me salva da agonia
de ser o algoz de nós
procuro sentido nas feridas
nas frases que formam
na gramática da pele
que arrancada, deixa exposta
a alma em brasa

procuro esperança na escuridão
na sombra lançada por seu coração

mas os dias são um relógio maldito
a girar os ponteiros em falso
porque tempo nenhum apaga essa imagem
tempo nenhum cura o mal que criei
com o amor
o tique das horas é um martelo
que bate, bate, bate, bate sem cessar
nas feridas abertas
sangram
sem parar





domingo, abril 19, 2020

sábado, abril 18, 2020

Logo desvanecerá
devolvidas as partes arrancadas
os navios de volta ao porto
velas recolhidas
sonhos esquecidos

Fecho os olhos
sinto o cheiro
o toque
os sons

Tudo se tornou dor
vergonha
incêndio
cinzas

É difícil quando não se consegue pensar
as coisas todas turvas, a palpitação
as cores, os sons estourados
sobrecarga de sensações
sem controle sobre mim

Desvanecerá?
Desvanecerei
me desfaço em ruínas
ao pó retornará

Essa ilusão ortopédica do eu
esmoreceu suas fronteiras
fagocitou uma fatia de vida
maior do que seus limites,
maior do que poderia abrigar
e agora não consigo reconstruir
os limites de mim mesmo
e o que era eu
espalhado no chão,
em sangue, fezes, miúdos
como as tripas de um animal morto
em sacrifício a um deus pagão

Me vesti com sua glória e amor
não posso encarar essa vida sozinho
estou nu, e longe de casa
foi tudo desperdiçado?
Todo esse amor?

A cada noite choro
ainda acreditando na mentira
te amo até minha morte



sexta-feira, abril 17, 2020

Me convulsiono na dor extrema da ternura
sinto a pele queimar, ferida aberta
como a tatuagem que sangra
depois da ferida da agulha

A pele aberta, a ferida incandescente
ao redor um teatro de sombras
feito com a luz das chamas
que ainda queimam minha alma

as partes arrancadas se esparramam
num lodo de sangue e lágrimas
misturam-se à terra
fertilizam dor

Não há o que tomar de mim
pois em mim tudo é podre
e tudo o que me foi dado
apodrece
como num toque de midas
corrompido

Se respiro amor
exalo solidão
se respiro vida
exalo morte



Era você, sem ar, partida
e eu podia sentir meus olhos
se desfazendo em pó
e nós dois, como dois estranhos
nos desfazendo em pó



quinta-feira, abril 16, 2020



O amor nunca pode ser exatamente como queríamos que fosse
Nas madrugadas
você chora no seu sono?

Entre páginas do capital
e cenários de horror pandêmicos
seu rosto reluz nos meus sonhos
num sono profundo que quer dizer não

Nas manhãs, me agarro a páginas
Há algo de você no horizonte
no combate duro contra a exploração
contra as mortes que se proliferam
vejo seu rosto, distante

O meu tempo é tão falho?
Por que o quarto está tão frio?
Você chora no seu sono?

Todas minhas falhas expostas
um gosto amargo na boca
enquanto o desespero toma conta.
E por que algo tão bom
simplesmente não pode funcionar mais?

O amor vai nos separar uma vez mais






quarta-feira, abril 15, 2020

Quando o sol voltar

Haverá peixes no mar quando o sol voltar
e todos comerão fartamente
sorrindo.

Repito isso no canto
escuro, frio, úmido,
da minha mente

Em meio à chuva e ao vento
tento recolher pedaços
ruínas de barcos
num quebra-cabeça impossível

A fome sufoca, engasga o pensamento
turva a visão, embaça o futuro
que se confunde com a lama presente
não se vê, não se sonha

Me jogo ao mar com escombros
chocando a quilha contra as ondas
imensas, intransponíves
me afogo na tormenta

Haverá sol?
Não sei
mas aguardo o dia de te ver
quando o sol voltar

segunda-feira, abril 13, 2020

No cais

No cais eu me sento
do amanhecer ao anoitecer
olhando o horizonte.

Por ali passam pernas, pessoas,
vendedores apregoam mercadorias
indiferentes à minha presença miúda.

Ninguém nota que no caderno, rabisco
palavras largadas, que carregam o peso da vida
e sonho com formas de jogar tudo pro alto

A cabeça está baixa, mas os olhos não
fixos na linha do horizonte
esperam os barcos

Anoitece

No cais,
uma alma incendiada
espera.

quinta-feira, abril 09, 2020

Um porto que não há

Volto a esse lugar, cemitério dos meus sentimentos, pra chorar sozinho.

Os barcos vem atracar na minha costa, mas não sei erguer um porto. Não sei dar âncoras.
Meu peito dilacerado transborda enquanto vejo o sol se por no horizonte azul.
A noite se espalha, escurece minha vista

Eu já não sei se os barcos continuam aqui, tudo é escuro
tudo que vejo é a noite, e contra o fundo preto da minha consciência
ainda imagino as velas em riste, com as quais desejo ainda navegar o mundo

Rompi com o mundo, queimei meus navios
mas já não tenho onde pousar meus sonhos
me afogo

Sob aquela luz vermelha, contemplo meu crime
alma incendiada sob o calor da minha
queimada, em trapos

tudo que queria era construir um porto
mas como posso se estou à deriva?

quarta-feira, abril 08, 2020

Carta de outro mundo

O mundo está um caos. E está só começando. As coisas vão ficar feias, e os capitalistas já sabem disso. No meio disso tudo, vão se completar oito anos da sua partida. É terrível sentir como sua presença é algo tão distante, como já é muito difícil sentir você por perto. Você está lá, sempre nos meus pensamentos, sempre nas minhas palavras. E eu queria que você pudesse viver aqui, em meio a esse que vai ser o maior desafio das nossas vidas até hoje.

Como você estaria hoje? Formada em pedagogia, atuando como professora. Nesse momento, com as aulas suspensas. Te imagino construindo os comitês, ajudando na organização das novas iniciativas nas redes, militando no seu computador, com uma long neck de Heineken e um cigarrinho ao lado. A Pagu no seu colo.

Conversas online, você me xingando, esbravejando com sua voz aguda e gesticulando. 

A vida que não foi continua não sendo. E, hoje, dezenas de milhares de vidas sendo interrompidas, como a sua foi. Por esse sistema social miserável em que vivemos. Vidas que não serão, pessoas sendo incineradas nas ruas do Equador, como lixo descartável. No maior país imperialista do mundo, o recorde de mortes. Imagino seu ódio e sua tristeza. O mundo te atingia demais, e talvez fosse difícil pra você esse momento. Eu me imagino ao seu lado tentando ajudar a transformar a dor em raiva, em luta.

Minha vida pessoal continua o caos, e penso em você alternando palavras carinhosas, "ah, lindo, não fica assim", com momentos de raiva, em que você me xingaria por me meter nessas situações "ah, pardal". O cheirinho dos seus cachos, misturado ao do seu Marlboro. Sua pele macia, marcada pelas cicatrizes aqui e ali. 

É terrível pensar como vidas se acabam por momentos decisivos que poderiam não existir. Sua vida, ainda penso às vezes no que poderia ter prolongado ela. E hoje, a angústia de ver milhares de vidas que acabam a cada dia. Sonhei que tentava ajudar as pessoas com remédios que não foram ainda liberados; e que nem serão produzidos em quantidade suficiente, se forem. O capitalismo segue matando, segue mutilando nossas vidas.

Você ainda é minha companheira nessa luta. Ainda é minha companheira em cada dor, e eu ainda luto para que a dor seja coragem. Eu não sei se falei aqui, nessa espécie de túmulo/confessionário virtual, que encontrei Andreia, a sua analista. Ela estava ali, como por acaso, no meio do caminho em que comecei a traçar com a sua ajuda, um caminho complementar e paralelo para tentar ser companheiro de dores e de descobertas das pessoas, e que sigo lutando para unificar com a luta revolucionária. Foi bonito e emocionante encontrá-la. Compartilhei com ela um pouco do destino trágico que se abateu sobre sua família também. Algo que poderia parecer um triste acaso, mas que acho que nem nós psicanalistas, nem nós marxistas, vemos como acaso. Acho que ela ficou feliz. Não me reconheceu prontamente, só quando eu disse a ela quem era. Pareceu acender a luz de algo adormecido ali. É claro que você marcou decisivamente a vida dela também.

Eu sigo também lutando por me revolucionar. Dou passos adiante, mas, confesso, dou passos atrás também. Suas palavras doloridas ainda me marcam. Tento aprender com os erros que cometi com você. Tento me apoiar nos acertos, nos momentos em que aprendemos juntos.

Amanhã serão oito anos completos de sua partida. Já não penso em você todos os dias, ainda que sei que sua marca indelével está lá, a cada passo. O sentimento de falta, de impotência, eu sei que a dimensão mais profunda dele até hoje eu tive com a sua morte. Mas ao longo desses anos fui aprendendo que faz parte da condição humana. Pelo menos dessa humanidade que conhecemos. E, talvez, isso me ajude a encarar de forma mais "harmônica" a falta que você faz na minha vida. Mas não é verdade que sei lidar com a falta, porque se não, não seria também parte dessa humanidade claudicante. Eu continuo errando, mas continuo andando. Hoje passo menos dias abatido, jogado na cama. Hoje penso muito menos em como seria seguir seus passos. Me fortaleci, sem dúvida. Como apostava que você poderia se fortalecer para permanecer aqui. Mas nem todas as batalhas vencemos. Ainda tenho vontade de pedir seu perdão, mesmo depois de tudo.

Hoje em minha janela brilha o sol. E o coração se põe triste a contemplar a cidade. Ele ainda se pergunta porque você se foi.