sexta-feira, fevereiro 19, 2016

Você não pode usar vestido



Viado, bicha, menininha. Apelidos que recebia constantemente dos coleguinhas na minha escola do ensino fundamental, um reduto da pequena burguesia supostamente esclarecida de São Paulo. Comecei a receber apelidos assim lá pelos 12 anos, quando comecei a deixar o cabelo comprido. Acho que esse era o principal motivo, mas certamente meu comportamento destoante do modelo de masculinidade e do que esperavam de mim contribuía: não gostava de futebol nem esportes (exceto queimada), não era popular nem procurava ser, ficava no meu canto lendo livros. Era uma criança nerd.

Mais ou menos na mesma época passei a ser confundido com uma grande frequência com uma menina. Era uma idade em que a principal característica física distintiva entre os sexos é o cabelo, e eu havia escolhido ter o meu comprido. Nada de puberdade, de pelos no rosto, de voz grossa (essa não veio nunca) e muito menos de "atitudes de menino". Isso me incomodava, e eu não sabia o porquê. Depois fui entendendo. Não era porque era chamado de menina. Era porque aquilo vinha acompanhado de um deboche quando percebiam que eu não era. Era humilhante, eu me sentia mal. Contraditoriamente e, na verdade, complementarmente, fui adquirindo cada vez mais nojo de tudo aquilo que fui identificando como o comportamento masculino. Tinha amigos mais velhos, e me dava raiva e nojo ver alguns olhares e comentários sobre mulheres, tanto próximas quanto as que passavam na rua. Meus amigos mais próximos eram homens, mas de toda forma, estranhos.

Lembro um dia que comecei a me questionar sobre qual era o problema, afinal, de ser chamado de menina. Foi quando chegou uma professora nova, substituta, de Estudos Sociais (era assim que chamavam as aulas de história na minha escola). Ela tinha uma miopia bem grande, e estava lá em frente à sala. Eu levantei a mão para falar qualquer coisa. Ela me chamou de "princesa". As pessoas que alimentavam um ódio recíproco por mim imediatamente utilizaram aquilo pra me ridicularizar. Me senti humilhado. E com raiva dela.

Ela em poucos meses mudou muita coisa na minha cabeça. Ela viu que eu não me encaixava ali, e me ajudou a me descobrir. Me apresentou filmes como Easy Rider e livros como On the Road. Conversou comigo e me fez ver sentido em estudar as coisas que ensinava. Quando foi embora, ela era minha professora preferida. E me ajudou a ter orgulho de ser diferente. E a entender um pouco mais que não havia nada de ruim em ser chamado de menina. Ainda demorou um tempo pra que eu tivesse orgulho disso.


O tempo passou, eu cresci e parei de ser confundido com menina. As vezes que chamavam de "viado", "bixa" ou coisas do gênero também diminuíram. Me acostumei com a ideia de não gostar do comportamento "masculino", mas também aprendi que ele faz parte de todo um sistema social e um mundo do qual não gosto. E me decidi a lutar contra isso e tudo o que ele representa.

As questões de gênero e sexualidade fazem parte profunda e constante dessa luta. No país mais transfóbico do mundo, não tomar essa luta como causa fundamental é uma negligência imperdoável. Mas minha luta muda a minha vida também. E refletir mais profundamente sobre a trangeneridade, conviver com pessoas trans e, particularmente, conhecer o conceito de não binariedade foi criando coisas novas em mim. Quis, um dia, inocentemente me vestir de mulher. Como já havia feito em outras ocasiões, como festas à fantasia, aproveitei o carnaval para usar um vestido e maquiagem. Porque sim, em nossa moral hipócrita, há espaços onde se permite "se fantasiar" com roupas de homem e mulher livremente. Eu me senti bem, e me senti livre. Me senti bonitx. E o medo que sempre tive na minha infância de ser ridicularizado como gay ou mulher, que está presente no cotidiano de cada LGBT nesse mundo podre, eu pude deixá-lo um pouco de lado. Porque, sim, tenho medo. Tenho medo do julgamento dos outros sobre coisas que mal estou entendendo e experimentando. E fiquei feliz de poder experimentar, e de que tantas pessoas que amo simplesmente me acolheram tão prontamente. Foi o máximo.

Qual não foi minha surpresa ao compartilhar uma inocente postagem de uma garota criticando a proliferação de sabonetes íntimos femininos para impor uma suposta higiene às vaginas enquanto os pênis são "lindos e perfumados" naturalmente. Foi essa a postagem que compartilhei no facebook, e subitamente nos comentários começa uma enxurrada de hostilidade e insultos a mim. Disseram coisas como "Deixa de ser hipócrita passar um lapis de olho e se vestir como mulher não te autoriza a falar sobre essas questões", "Mano, para de assumir uma postura e de querer se apropriar de uma imagem e de um impacto que uma causa dessa tem...eu to é de saco cheio de ver vc pagando de mina quando é um burguês cis e HÉTERO", "Enquanto você se fantasia de mulher pra pagar de desconstruído, seu merda, minhas irmãs de luta estão sendo assassinadas nas esquinas." etc, etc, etc. Além disso, inventaram calúnias disparatadas contra mim, como a de que eu me passaria por uma mulher lésbica em aplicativos de celular para dar em cima de outras mulheres. Confesso que a enxurrada de comentários (feito por quatro pessoas) me abalou mais do que gostaria. Talvez porque já tive algum respeito e estima por duas delas, e ainda tinha por uma. Pessoas com quem já construi algo de militante, que a seu tempo foi importante. Por isso mesmo tentei, num primeiro momento, conversar e dialogar com seu ponto de vista. Mas não estavam ali para ouvir e falar, mas para hostilizar e humilhar, como quando na infância me chamavam de "viado" ou de "mulher". Mas agora não eram pessoas de classe média alta querendo me humilhar chamando-me de uma "minoria". Eram mulheres e um homem trans me chamando de oportunista e aproveitador por ser homem, branco, cis, hétero e querer me apropriar de uma luta alheia. Eu podia entender o que motivava aquilo, mas onde há calúnia e insultos dificilmente haverá um diálogo.

Eu não estava pagando de descontruído, pq não me desconstruo. Não sou um macho branco em desconstrução. Sou um ser humano em construção, permanente e cotidiana. Me esforço por me construir como revolucionário, nas grande e pequenas ações da minha vida. Isso passa por questionar cada valor que me ensinaram de machismo, homofobia e racismo, sim. Mas o essencial não é o que "desconstruo", mas o que faço do lugar em que nasci e do que vou fazendo de minhas ações e minhas escolhas. Me esforço para construir uma identidade diante do mundo. Ela é cis e hétero? Assim me encaixaram e eu me encaixei até então. Uma das pessoas, pensando talvez mais com a própria cabeça do que com os dogmas que querem classificar um outro (branco, hétero, cis) como o inimigo, comentou na publicação de sua amiga: e existe alguém puramente cis e hétero? Eu acho que as identidades de gênero e de sexualidade têm um propósito: resistir e lutar em um mundo em que se oprime e se explora. Mas seu propósito é esse. Quando se tornam camisas de força, prisões e rótulos, estão cumprindo um papel nefasto. O mundo em que defendo é um onde quem quiser usa a roupa que quiser, se identifica como quiser, transa com quem quiser. Um mundo de liberdade. Hoje nos organizamos para lutar e resistir. Minha identidade não é fixa e não é uma prisão. Quando e se uso vestidos ou qualquer roupa, é porque quero e me sinto bem daquele jeito. Em que momento nossa luta por resistência passou a ser uma competição de quem é mais o quê? De quem luta mais ou é mais oprimido? A quem eu preciso provar o que para que eu possa me vestir como me dê vontade? "Você é cis, não pode usar vestido". Sério? É pra isso que lutamos? Achei que um vestido era só uma peça de roupa, e que qualquer um deveria poder usar ou não usar a roupa que bem entenda. Mas não, segundo me disseram hoje, eu, homem, branco, hétero e cis, não posso usar um vestido, não posso pintar as unhas, não posso me maquiar. Como quando eu era pequeno não podia ter o cabelo comprido, pois isso era coisa de "viado". Um dia, quando criança, me enchi dessas provocações e simplesmente disse: E se sou gay, qual o problema? E dei um beijo no rosto de um amigo. Foi quando já tinha aprendido a ter orgulho de ser diferente daquela gente, e que o que eu realmente não tinha eram seus preconceitos.

Fico imaginando onde que essa gente acha que essa patrulha de gênero, vestimenta, sexualidade fortalece qualquer luta. Penso em gente que admiro, como a Laerte, que com seus cinquenta e tantos anos resolve assumir sua identidade de gênero feminina. Talvez essa gente que hoje me hostilizou fizesse uma inquisição se estivesse lá por perto no momento: "Ei, você, homem, branco, cis, hétero, classe média. Quem pensa que é para de um dia pro outro resolver usar vestidos? Resolver dizer que é mulher? Você quer roubar o protagonismo dos outros, quer se apropriar da luta alheia."

Laerte sabe mais, e resolveu fazer o que quis com seu corpo e sua identidade quando bem quis. E eu, se quero usar vestidos, uso. Não estou roubando luta de ninguém, mesmo porque luta não se rouba. Eu tenho é muitíssimo orgulho de estar ao lado dxs trans, dxs pretos, das mulheres, dxs indígenas na luta contra a opressão e exploração. E se hoje sou hétero, amanhã posso não ser; se hoje sou cis, amanhã posso não ser. E não devo satisfação alguma a essa ridícula polícia "militante de facebook" de sexualidade e gênero. Quem dera essa gente estivesse amanhã na linha de frente das lutas contra esse mundo podre que quer nos enquadrar em suas caixinhas limitadas, ao invés de estar em seus comentários de facebook querendo nos enquadrar também nas caixinhas e nos proibir de usar uma roupa ou passar uma maquiagem.

Estou com a Rosa, quando ela diz "Por um mundo onde sejamos socialmente iguais, humanamente diferentes e completamente livres." Essa é a minha bandeira, e ela eu não roubei de ninguém.