sexta-feira, abril 20, 2012

Nunca mais...


The Raven

Edgar Allan Poe, first published in 1845

Once upon a midnight dreary, while I pondered, weak and weary,
Over many a quaint and curious volume of forgotten lore,
While I nodded, nearly napping, suddenly there came a tapping,
As of someone gently rapping, rapping at my chamber door.
" 'Tis some visitor," I muttered, "tapping at my chamber door;

Only this, and nothing more."

Ah, distinctly I remember, it was in the bleak December,
And each separate dying ember wrought its ghost upon the floor.
Eagerly I wished the morrow; vainly I had sought to borrow
From my books surcease of sorrow, sorrow for the lost Lenore,
For the rare and radiant maiden whom the angels name Lenore,

Nameless here forevermore.

And the silken sad uncertain rustling of each purple curtain
Thrilled me---filled me with fantastic terrors never felt before;
So that now, to still the beating of my heart, I stood repeating,
" 'Tis some visitor entreating entrance at my chamber door,
Some late visitor entreating entrance at my chamber door.

This it is, and nothing more."

Presently my soul grew stronger; hesitating then no longer,
"Sir," said I, "or madam, truly your forgiveness I implore;
But the fact is, I was napping, and so gently you came rapping,
And so faintly you came tapping, tapping at my chamber door,
That I scarce was sure I heard you." Here I opened wide the door;---

Darkness there, and nothing more.

Deep into the darkness peering, long I stood there, wondering, fearing
Doubting, dreaming dreams no mortals ever dared to dream before;
But the silence was unbroken, and the stillness gave no token,
And the only word there spoken was the whispered word,
Lenore?, This I whispered, and an echo murmured back the word,

"Lenore!" Merely this, and nothing more.

Back into the chamber turning, all my soul within me burning,
Soon again I heard a tapping, something louder than before,
"Surely," said I, "surely, that is something at my window lattice.
Let me see, then, what thereat is, and this mystery explore.
Let my heart be still a moment, and this mystery explore.

" 'Tis the wind, and nothing more."

Open here I flung the shutter, when, with many a flirt and flutter,
In there stepped a stately raven, of the saintly days of yore.
Not the least obeisance made he; not a minute stopped or stayed he;
But with mien of lord or lady, perched above my chamber door. Perched upon a bust of Pallas, just above my chamber door,

Perched, and sat, and nothing more.

Then this ebony bird beguiling my sad fancy into smiling,
 By the grave and stern decorum of the countenance it wore,
"Though thy crest be shorn and shaven thou," I said, "art sure no craven,
Ghastly, grim, and ancient raven, wandering from the nightly shore.
Tell me what the lordly name is on the Night's Plutonian shore."

Quoth the raven, "Nevermore."

Much I marvelled this ungainly fowl to hear discourse so plainly,
Though its answer little meaning, little relevancy bore;
For we cannot help agreeing that no living human being
Ever yet was blessed with seeing bird above his chamber door,
Bird or beast upon the sculptured bust above his chamber door,

With such name as "Nevermore."

But the raven, sitting lonely on that placid bust, spoke only
That one word, as if his soul in that one word he did outpour.
Nothing further then he uttered; not a feather then he fluttered;
Till I scarcely more than muttered,"Other friends have flown before;
On the morrow he will leave me, as my hopes have flown before."

Then the bird said,"Nevermore."

Startled at the stillness broken by reply so aptly spoken,
"Doubtless," said I, "what it utters is its only stock and store,
Caught from some unhappy master, whom unmerciful disaster
Followed fast and followed faster, till his songs one burden bore,---
Till the dirges of his hope that melancholy burden bore

Of "Never---nevermore."

But the raven still beguiling all my fancy into smiling,
Straight I wheeled a cushioned seat in front of bird and bust and door;
Then, upon the velvet sinking, I betook myself to linking
Fancy unto fancy, thinking what this ominous bird of yore,
What this grim, ungainly, ghastly, gaunt, and ominous bird of yore

Meant in croaking, "Nevermore."

Thus I sat engaged in guessing, but no syllable expressing
To the fowl, whose fiery eyes now burned into my bosom's core;
This and more I sat divining, with my head at ease reclining
On the cushion's velvet lining that the lamplight gloated o'er,
But whose velvet violet lining with the lamplight gloating o'er

She shall press, ah, nevermore!

Then, methought, the air grew denser, perfumed from an unseen censer
Swung by seraphim whose footfalls tinkled on the tufted floor.
"Wretch," I cried, "thy God hath lent thee -- by these angels he hath
Sent thee respite---respite and nepenthe from thy memories of Lenore!
Quaff, O quaff this kind nepenthe, and forget this lost Lenore!"

Quoth the raven, "Nevermore!"

"Prophet!" said I, "thing of evil!--prophet still, if bird or devil!
Whether tempter sent, or whether tempest tossed thee here ashore,
Desolate, yet all undaunted, on this desert land enchanted--
On this home by horror haunted--tell me truly, I implore:
Is there--is there balm in Gilead?--tell me--tell me I implore!"

Quoth the raven, "Nevermore."

"Prophet!" said I, "thing of evil--prophet still, if bird or devil!
By that heaven that bends above us--by that God we both adore--
Tell this soul with sorrow laden, if, within the distant Aidenn,
It shall clasp a sainted maiden, whom the angels name Lenore---
Clasp a rare and radiant maiden, whom the angels name Lenore?

Quoth the raven, "Nevermore."

"Be that word our sign of parting, bird or fiend!" I shrieked, upstarting--
"Get thee back into the tempest and the Night's Plutonian shore!
Leave no black plume as a token of that lie thy soul spoken!
Leave my loneliness unbroken! -- quit the bust above my door!
Take thy beak from out my heart, and take thy form from off my door!"

Quoth the raven, "Nevermore."

And the raven, never flitting, still is sitting, still is sitting
On the pallid bust of Pallas just above my chamber door;
And his eyes have all the seeming of a demon's that is dreaming.
And the lamplight o'er him streaming throws his shadow on the floor;
And my soul from out that shadow that lies floating on the floor Shall be lifted--- nevermore!

O corvo 
Tradução de Milton Amado

Foi uma vez: eu refletia, à meia-noite erma e sombria,
A ler doutrinas de outro tempo em curiosíssimos manuais,
E, exausto, quase adormecido, ouvi de súbito um ruído,
Tal qual se houvesse alguém batido à minha porta, devagar.
"É alguém ? fiquei a murmurar ? que bate à porta, devagar;
Sim, é só isso e nada mais."

Ah! claramente eu o relembro! Era no gélido dezembro
E o fogo, agônico, animava o chão de sombras fantasmais.
Ansiando ver a noite finda, em vão, a ler, buscava ainda
Algum remédio à amarga, infinda, atroz saudade de Lenora
? Essa, mais bela do que a aurora, a quem nos céus chamam Lenora
E nome aqui já não tem mais.

A seda rubra da cortina arfava em lúgubre surdina,
Arrepiando-me e evocando ignotos medos sepulcrais.
De susto, em pávida arritmia, o coração veloz batia
E a sossegá-lo eu repetia: "É um visitante e pede abrigo.
Chegando tarde, algum amigo está a bater e pede abrigo.
É apenas isso e nada mais."

Ergui-me após e, calmo enfim, sem hesitar, falei assim:
"Perdoai, senhora, ou meu senhor, se há muito aí fora me esperais;
Mas é que estava adormecido e foi tão débil o batido,
Que eu mal podia ter ouvido alguém chamar à minha porta,
Assim de leve, em hora morta." Escancarei então a porta:
Escuridão, e nada mais.

Sondei a noite erma e tranqüila, olhei-a a fundo, a perquiri-la,
Sonhando sonhos que ninguém, ninguém ousou sonhar iguais.
Estarrecido de ânsia e medo, ante o negror imoto e quedo,
Só um nome ouvi (quase em segredo eu o dizia) e foi: "Lenora!"
E o eco, em voz evocadora, o repetiu também: "Lenora!"
Depois, silêncio e nada mais.

Com a alma em febre, eu novamente entrei no quarto e, de repente,
Mais forte, o ruído recomeça e repercute nos vitrais.
"É na janela" ? penso então. ? "Por que agitar-me de aflição?
Conserva a calma, coração! É na janela, onde, agourento,
O vento sopra. É só do vento esse rumor surdo e agourento.
É o vento só e nada mais."

Abro a janela e eis que, em tumulto, a esvoaçar, penetra um vulto:
? É um Corvo hierático e soberbo, egresso de eras ancestrais.
Como um fidalgo passa, augusto e, sem notar sequer meu susto,
Adeja e pousa sobre o busto ? uma escultura de Minerva,
Bem sobre a porta; e se conserva ali, no busto de Minerva,
Empoleirado e nada mais.

Ao ver da ave austera e escura a soleníssima figura,
Desperta em mim um leve riso, a distrair-me de meus ais.
"Sem crista embora, ó Corvo antigo e singular" ? então lhe digo ?
"Não tens pavor. Fala comigo, alma da noite, espectro torvo!"
Qual é teu nome, ó nobre Corvo, o nome teu no inferno torvo!"
E o Corvo disse: "Nunca mais."
Maravilhou-me que falasse uma ave rude dessa classe,
Misteriosa esfinge negra, a retorquir-me em termos tais;
Pois nunca soube de vivente algum, outrora ou no presente,
Que igual surpresa experimente: a de encontrar, em sua porta,
Uma ave (ou fera, pouco importa), empoleirada em sua porta
E que se chame "Nunca mais".

Diversa coisa não dizia, ali pousada, a ave sombria,
Com a alma inteira a se espelhar naquelas sílabas fatais.
Murmuro, então, vendo-a serena e sem mover uma só pena,
Enquanto a mágoa me envenena: "Amigos? sempre vão-se embora.
Como a esperança, ao vir a aurora, ele também há de ir-se embora."
E disse o Corvo: "Nunca mais."

Vara o silêncio, com tal nexo, essa resposta que, perplexo,
Julgo: "É só isso o que ele diz; duas palavras sempre iguais.
Soube-as de um dono a quem tortura uma implacável desventura
E a quem, repleto de amargura, apenas resta um ritornelo
De seu cantar; do morto anelo, um epitáfio: ? o ritornelo
De "Nunca, nunca, nunca mais".

Como ainda o Corvo me mudasse em um sorriso a triste face,
Girei então numa poltrona, em frente ao busto, à ave, aos umbrais
E, mergulhado no coxim, pus-me a inquirir (pois, para mim,
Visava a algum secreto fim) que pretendia o antigo Corvo,
Com que intenções, horrendo, torvo, esse ominoso e antigo Corvo
Grasnava sempre: "Nunca mais."

Sentindo da ave, incandescente, o olhar queimar-me fixamente,
Eu me abismava, absorto e mudo, em deduções conjeturais.
Cismava, a fronte reclinada, a descansar, sobre a almofada
Dessa poltrona aveludada em que a luz cai suavemente,
Dessa poltrona em que ela, ausente, à luz cai suavemente,
Já não repousa, ah! Nunca mais?

O ar pareceu-me então mais denso e perfumado, qual se incenso
Ali descessem a esparzir turibulários celestiais.
"Mísero!, exclamo. Enfim teu Deus te dá, mandando os anjos seus,
Esquecimento, lá dos céus, para as saudades de Lenora,
Sorve-o nepentes. Sorve-o, agora! Esquece, olvida essa Lenora!"
E o Corvo disse: "Nunca mais."

"Profeta! ? brado. ? Ó ser do mal! Profeta sempre, ave infernal
Que o Tentador lançou do abismo, ou que arrojaram temporais,
De algum naufrágio, a esta maldita e estéril terra, a esta precita
Mansão de horror, que o horror habita, imploro, dize-mo, em verdade:
Existe um bálsamo em Galaad? Imploro! Dize-mo, em verdade!"
E o Corvo disse: "Nunca mais."

"Profeta!" exclamo. "Ó ser do mal! Profeta sempre, ave infernal!
Pelo alto céu, por esse Deus que adoram todos os mortais,
Fala se esta alma sob o guante atroz da dor, no Éden distante,
Verá a deusa fulgurante a quem nos céus chamam Lenora,
Essa, mais bela do que a aurora, a quem nos céus chamam Lenora!"
E o Corvo disse: "Nunca mais!"
"Seja isso a nossa despedida! ? ergo-me e grito, alma incendida. ?
Volta de novo à tempestade, aos negros antros infernais!
Nem leve pluma de ti reste aqui, que tal mentira ateste!
Deixa-me só neste ermo agreste! Alça teu vôo dessa porta!
Retira a garra que me corta o peito e vai-te dessa porta!"
E o Corvo disse: "Nunca mais!"

E lá ficou! Hirto, sombrio, ainda hoje o vejo, horas a fio,
Sobre o alvo busto de Minerva, inerte, sempre em meus umbrais.
No seu olhar medonho e enorme o anjo do mal, em sonhos, dorme,
E a luz da lâmpada, disforme, atira ao chão a sua sombra.
Nela, que ondula sobre a alfombra, está minha alma; e, presa à sombra,
Não há de erguer-se, ai! nunca mais!

quinta-feira, abril 19, 2012

Herança

Está na ponta das minhas memórias a primeira vez que conversei com a Cami. Nosso camarada Chipi estava no Brasil, e fomos para o apertado e claustrofóbico Pau Brasil, levá-lo ao samba. Eu, há pouco tempo estava militando n’A Plenos Pulmões, agrupação da ler-qi e independentes no movimento estudantil; pela primeira vez ia em rumo decidido para dedicar minha vida a algo maior do que minhas ambições pessoais; minhas ambições pessoais, de fato, não cabiam mais em minha própria vida: passavam a ser a de tornar o mundo um lugar sem esta espessa camada cinza que cobre a vida. Isso me tornava mais forte e mais vivo. E foi neste momento que me apresentaram a “Camilinha, lá da PUC”. Ela era linda, e estava bastante bêbada. Falaram pra ela que eu era da USP, que estava na Plenos Pulmões. Ela pareceu feliz com esta informação – naquela época aproximar novos militantes na USP era um feito, e eu, com meus cinco anos de flerte com a ler-qi, era uma prova concreta disso – e cami não demorou mais do que três minutos pra me perguntar, com a voz meio pastosa da embriaguez e uma empatia que conseguiu até perfurar minha imensa timidez: “Mas você tá convencido de construir o partido revolucionário?”. Achei engraçado aquele nível de ofensividade tão de cara; por sorte eu estava, sim, convencido, e foi o que respondi pra ela. Conversamos um pouco, e a atração que senti por ela foi bastante imediata. Não me lembro de mais muita coisa naquela noite. Acabei dando uma carona pra ela, meio que pra qualquer lugar, tive uma destas brigas idiotas de ciúmes com a mila (por outros motivos), com quem namorava e que também estava bastante bêbada.
Mais de um ano se passou entre este dia e o dia 17 de abril, quando a gente começou nosso relacionamento. A data, ela que guardou com exatidão; eu só lembrava que era pouco antes do meu aniversário. O fato de que pouco nos víamos antes disso e de que em nossa sociedade de relações degeneradas as pessoas pouco conseguem se falar, fez com que neste ano quase não nos conhecessemos. Quando nos víamos, eram flertes tímidos, conversas pontuais. Uma vez, tive coragem de lhe mandar uma mensagem, como um adolescente besta que gosta da amiguinha. A mensagem não chegou, coisa que só soube muito depois. Só ficamos juntos quando ela colocou toda sua “sutileza” em prática; parados na fila do caixa de um bar, cami me disse: “E aí, quando você vai me chamar pra sair?” Mesmo com minha incapacidade de responder algo decente, balbuciei “quando você quiser”, e acabamos ficando naquela mesma noite. Lembro-me muitas vezes depois dela dizendo como “assustou” muitas pessoas com quem queria ficar pela sua incapacidade de ser sutil ao tentar demonstrar interesse. Comigo, foi a melhor tática, eu respondia.
Ela era direta, falava as coisas com dureza e sinceridade; ao mesmo tempo, algumas vezes era incapaz de dirigir uma palavra a quem queria. Era profundamente empática e simpática, capaz de atingir em cheio o que uma pessoa sentia; ao mesmo tempo, era quase sociofóbica. As contradições marcaram a vida da cami, tornavam-na fascinante, muitas vezes a dilaceravam. Compartilhei com ela um tempo intenso e tristemente curto, dois anos em que tive o imenso privilégio de ser uma das pessoas mais próximas de sua vida. Foi muito rápido: em duas semanas era como se nos conhecessemos há anos. Conversar com ela era um ato de auto-conhecimento e de conhecer o mundo também; sua sensibilidade não tem muitos parelelos nas pessoas que conheci. A seu lado e com nossas conversas pude conhecer melhor a organização em que militava, pude encontrar, ainda que afastada da militância cotidiana, uma autêntica camarada que via como, muitas vezes, em pequenas atitudes se expressam grandes questões políticas.
Muito do que nos aproximou, era evidente, vinha de uma grande identificação, pelo menos de minha parte, e isso eu lhe disse algumas boas vezes. Eu via a mim mesmo em sua tristeza com o mundo, e em como sua insatisfação com o ambiente que a cercou na infância e adolescência a empurraram para a esquerda, para ver no comunismo a única saída para uma humanidade tão amesquinhada e apartada de si mesma. Eu me via também na enorme contradição entre sentimentos dolorosos e incapacitantes e a vontade de colocar-se a serviço de uma luta que consome quantidades imensas de energia; energia que muitas vezes ambos não encontrávamos. Mas não era apenas isso. Ela me empurrou para frente em todos, todos, todos os aspectos da minha vida. Me fez ver como as limitações de minha vida pessoal estavam casadas com as minhas limitações políticas; me ajudou a romper preconceitos dogmáticos e ver que ainda, ao conhecer a mente humana, engatínhamos (como não poderia deixar de ser em uma sociedade com uma ciência tão obtusa, pragmática, míope). Me ajudou a tentar coisas das quais eu tinha medo.
Lembro-me no começo, eu era instigado por uma vontade de conhecê-la melhor, de ser mais parte de sua vida, como sempre acontece quando nos apaixonamos. Conversamos muito sobre a dor que ela carregava, e que no fim das contas era inacessível para qualquer um que não fosse ela. Isso foi ficando dolorosamente mais claro para mim com o passar do tempo. Lembro-me bem de uma conversa que tivemos sobre sua família. O amor que ela sentia pelos seus irmãos, acompanhado de saudades, era algo profundo, mas também cheio de contradições. Contou-me de uma das vezes que havia tentado se suicidar, e que Pedro, seu irmão mais novo, a encontrou sozinho e teve que salvar sua vida. Ela via que isso havia deixado marcas em sua relação que eram difíceis de superar; um trauma, que ela compreendia e lamentava também. Me marcou esta conversa, e o como isso foi se tornando concreto para mim. Por exemplo, em uma vez que tive que segurá-la quando, inconsciente, em estado de sonambulismo, tentou quebrar o vidro da janela do meu quarto. Meus dias seguintes foram cheios de angustia e preocupação, de um sentimento terrível de impotência. E se aquilo acontecesse quando eu estava longe? E se eu não pudesse impedir? Talvez aí eu tenha entendido melhor, finalmente, o que ela quis dizer quando contou a história do suicídio que seu irmão impediu de se concretizar. Somos pequenos e frágeis demais para lidar com as nossas limitações diante de quem amamos; às vezes, nossa única opção é tentar nos preservarmos de qualquer forma, tentando negar um pouco nosso amor por aquilo que nos sentimos incapazes de preservar.
Cami, eu acho, tinha bem pouca ciência das suas próprias capacidades, do quão profundamente conseguia chegar nas pessoas e do quão difícil era para outras pessoas entender coisas que para ela eram acessíveis. O quão profundamente humana ela podia ser, nos momentos certos. Mas no último ano estava progressivamente se tornando mais consciente disso, de que as pessoas conseguiam confiar nela rapidamente e se sentir compreendidas; de que a singular combinação entre sua sensibilidade e suas próprias dificuldades permitiam-na explorar partes da mente humana que são águas turvas. Isso se concretizava em um desejo um pouco difuso que ela passou a manifestar de fazer psicanálise e tornar-se terapeuta. O desejo era difuso porque a instabilidade em sua vida dificultava enormemente que levasse seus planos à frente. Isso a rasgava por dentro.
Conhecer uma pessoa tão profunda e com tanto potencial, ver de perto como uma sociedade degenerada e mutiladora consegue atacar e comprometer de forma irreversível seu psiquismo e como por, em grande parte, ser esta uma pessoa boa demais em um mundo ruim demais, somos forçados a assistir impotentes ela ser arrancada brutalmente de nós de uma forma tão estúpida e violenta; esta experiência é algo que não é plenamente traduzível em palavras. Mas ela nos ensina muito, e eu espero poder transformar isso em ação e reflexão para levar adiante a luta para que um dia isso nunca mais aconteça. Ela foi a prova viva daquela frase que diz que não é saudável ser bem ajustado em uma sociedade profundamente doente. Mil conversas, fatos, coisas que aprendi com ela me vêm à mente, e seria impossível expressar em umas poucas linhas ainda vertidas em meio a um sofrimento imenso, uma ferida aberta que dói só de respirar, o quanto cami representou em minha trajetória pessoal e política. Mas, de fato, o que pode passar batido a muitos é o que cami deixa a este mundo, e é sobre isso que queria falar um pouco mais.
Não posso negar que a cortina pesada que cai sobre a vida ao me deparar com a súbita e trágica morte de uma pessoa que era como uma parte de mim tem um peso difícil de medir. A morte se tornou hoje a medida de todas as coisas. No segundo dia que conversei com Helena – um destes pilares que me ajuda e entender por onde vou tateando em meio a este mundo – após a morte da cami, ela me disse que ainda não era possível ver isto, mas que a morte dela me deixaria uma herança. Hoje, escrevo este texto com uma primeiro vislumbre de uma herança que, sei, ainda está longe de se consolidar. Vi hoje “Pina”, de Win Wenders, e foi uma experiência libertadora. Lembrei, em primeiro lugar, que mesmo uma humanidade tão torpe e distante de si própria é capaz de produzir coisas belas, coisas que nos façam abrir um pouco mais os olhos, sentir um pouco mais a vida. Nos movimentos daquela dança, cujo significado profundo não é realizável em palavras, havia angustia e vida; dor e esperança. “Dancem, dancem, ou estamos todos perdidos”. Em um mundo onde não é possível nos reconciliarmos com nossa humanidade, há um desespero em cada gesto verdadeiramente humano, em cada gesto que carrega, em um lado, a esperança de não sermos mais assim, e em outro o desespero de nos vermos aqui ainda, nesta escuridão. A dançarina que se puxa pelos cabelos, a outra que dança enquanto lhe enterram viva; movimentos que querem se libertar em espasmos mas que carregam em si o peso deste mundo.
Em segundo lugar, me aproximei um pouco do sentido de herança ao ouvir dançarinos, alguns dos quais conviveram décadas, outros toda uma vida, e outros alguns anos, com Pina. Ela deixou uma marca que está vertida em suas veias, em seus passos. Uma dançarina fala sobre como ela se foi subitamente, e sobre a leveza que ela quer ver em sua partida; outra, que cresceu no teatro e na companhia de Pina diz: “O que é a vida sem Pina? Não sei.” E Pina estará em sua vida, sempre. Cami se foi. Nada que eu ou qualquer um faça fará ela voltar. Mas ela deixa suas marcas em tudo aquilo que tocou. Se hoje carregamos a bandeira da quarta internacional, do comunismo, a mesma que carregou cami e outros tantos milhares, milhões antes dela, temos que imprimir fortemente sua marca no que hoje levamos adiante. Se em mim estas marcas são parte constitutiva e irreversível do que sou, como também em alguns outros que tiveram a sorte de conhecê-la profundamente, contudo, deixar esta marca como uma herança para uma jovem organização que luta contra a corrente em meio a uma geração enterrada até a medula no lixo da sociedade burguesa requer um esforço maior e cotidianamente consciente. Não se constrói uma organização revolucionária sem ser capaz de ouvir a voz de uma pessoa que tirou sua vida e nos deixou lições.
Cami nos ensinou, antes de mais nada, que uma organização revolucionária não é feita apenas de programa e estratégia; ela é feita de gente, que pensa, sente, e sofre. Que um comunista não é feito apenas de convicção e teoria marxista; que precisamos aprender a olhar atentamente uns aos outros, como naquela epígrafe do “Ensaio sobre a cegueira” que diz: “Se podes olhar, vê; se podes ver, repara”. Curioso termos que aprender isso, sendo que em todos nós foi algum desajuste com esta sociedade de miséria e a vida que ela nos impõe que fez com que colocássemos como nosso objetivo a sua transformação radical. No entanto, precisamos reaprender esta lição cotidianamente e por diferentes olhos.
Neste mundo estamos numa contradição fodida: para conseguir andar pra frente, ainda que não possamos prescindir de apoio, temos que usar nossas próprias pernas. Nosso dia é curto e, nossas jornadas de trabalho, o trânsito, os pequenos infernos que vivemos cotidianamente – demasiadamente longos. É para acabar com isso que lutamos. Mas, pelo simples fato de lutarmos, às vezes somos obrigados a abrir mão de vivermos um pouco mais. Se é verdade, como meu camarada Val disse, que somos privilegiados por levarmos uma vida consciente e, como disse Trotski, “carregarmos uma pequena parte do futuro da humanidade em nossas costas”, não há entre nós quem não saiba quantos sacrifícios isso não requer (outros, mil vezes maiores, estão ainda por vir!).
Hoje penso em quantas vezes quis estar com cami e não pude. Queria estar com ela no México; no dia-a-dia, ao seu lado para poder ajudar um pouco mais a combater a enfermidade que este mundo lhe deu e que a levou de nossa luta e de nossas vidas. Porra, como dói não poder estar mais a seu lado, levar esta pesada bandeira sem sua mão para ajudar a carregá-la. Mas quando dizemos “Camila, presente!”, é necessário que levemos isto até suas últimas consequências. Uma camarada tombada em um combate, que deu o melhor de suas forças por um mundo em que, não ela e nem nós, mas as futuras gerações possam desfrutar de uma vida plena, verdadeiramente humana. Que tiremos de suas palavras, de seus atos e suas intenções as lições para que nos tornemos mais fortes, também individualmente, mas, principalmente, como coletivo, para que sua morte não seja em vão. Para que possamos assentar bases sólidas sobre as quais erguer o futuro, um futuro onde não haja mais sequer uma morte como a de cami, e que pessoas sensíveis e belas como ela possam ter sua subjetividade respeitada e desenvolvida plenamente, como bem queiram. Sua morte é uma ferida marcada a ferro e fogo em minha vida, como na de todos que puderam conhecer a pessoa incrível que ela foi; carreguemos sua memória viva em cada luta, em cada combate contra um mundo que a tirou de nós.

Encerro com uma bela homenagem do camarada Vinicius, com um trecho do testamento de Trótski, com o espírito que devemos carregar em nossos ombros:

Saudades

Era diferente. Era assim: “Poxa fulano, estou com saudades, vamos almoçar nesta semana.” Ou “Nossa, eles mudaram de cidade e eu estou com muitas saudades.” Agora não é mais assim. A saudade é uma coisa nova, que eu não conhecia. Ela é uma ferida profunda e irreversível. Ela engole tudo o que há a seu redor. Ela é saber que cada toque, abraço, palavra, carinho será sempre a menos do que gostaríamos. É uma vida adiante que poderia ter sido, que não foi e não será. São dezenas, centenas, milhares, infinitas coisas que gostaríamos de ter feito, mas que nunca estiveram em nosso poder. São os pedidos de desculpa, as demonstrações de amor que não existem mais, nem em possibilidade. Viagens que ficaram para um momento posterior...que nunca chegará. Saber que nossa memória é curta, falha, limitada, e a angustia de querer segurar por entre as lembranças todos os insuficientes momentos; querer guardar o tamanho de suas mãos, o contorno de suas pintas, feridas e tatuagens; querer guardar o som de sua voz, seu cheiro, sua risada, o contorno de sua boca quando tragava um cigarro. Saudade é saber que tudo o que ela é de agora em diante está em nós. É querer conhecê-la mais escavando por entre as histórias dos outros, dos momentos guardados em cada memória. É saber que ainda há alguns sorrisos seus que não vi, e que só poderei ver em fotos que descubra perdida por entre todos os que guardam pedaços do que foi nas suas memórias. São todos os momentos que não estive a seu lado. É a consciência pungente de sua ausência que dá quando vejo algo que queria lhe mostrar, escuto algo que queria lhe dizer. É um dia que não estive com ela, que não liguei. É saber que não vi o momento do adeus chegando. É carregar a luta sem sua presença ao lado, sem suas palavras e gestos para me empurrar adiante, para levar a luta à frente.

Saudade, antes, era pensar num momento querido do passado e querer repetí-lo.
Hoje, a saudade é o futuro. É olhar para ele e pensar em quão grande e imprevisível ele é, e que não importa o que ele reserve, ela não estará lá.