quarta-feira, janeiro 09, 2013

O tempo em que se gesta uma vida

É difícil parar para pensar nela. Sempre foi, mas antes era inevitável, não havia escolha. Quando eu acordava, quando dormia, em qualquer momento que minha cabeça ficasse minimamente tranquila, sua memória vinha. Ironicamente, eu morria de medo de perder estas memórias, que eu julgava serem tudo o que me restou dela. Já não tenho mais medo de perder as memórias, e tampouco acho que foram tudo o que me sobrou dela. O que me fica da cami está profundo demais em minhas veias para que eu possa perder. O que me fica é muito mais do que esta tristeza que não se vai; aprendi a ser mais próximo do que quero que a humanidade seja; aprendi também a viver com a dor, com a saudade, com o arrependimento, com o incerto.

Pensei muito sobre sua morte, e muito em sua vida a partir da perspectiva desta morte. Muito em como o duro combate acabou por derrubar uma combatente que ainda tinha muito para dar, para viver, para descobrir, aprender e ensinar. Não tem jeito: o gosto da morte fica, amargo, intransponível. Creio que ficaria de toda forma, mas uma morte terrível como a da cami sem dúvida fica mais, e não dá pra não ser assim. Só que o tempo dá um certo equilíbrio às coisas. Coloca a tristeza em perspectiva, e eu vejo como ainda falta muito para que esta tristeza e esta dor fiquem no lugar certo diante do que foi sua vida, do que ela foi para mim e para o mundo em que teve a oportunidade de ser a pessoa maravilhosa que foi, ainda que muito, muito aquém do que deveria ter sido. Ela precisava ter sido mais, o meu desejo de que ela fosse mais nunca vai se esvair. Mas ele vai se aquietar um pouco, como já começou a se aquietar.

Nos primeiros meses não se sabe medir o tamanho da dor. A vida é luto, a vida é estúpida, amarga, sem sentido e horrível. Droga, droga, não queria que fosse assim. Passo alguns meses deixando ela ali, subjacente, latente na vida. Nunca a esqueço, mas quando a puxo pro primeiro plano é uma facada, uma ausência terrível. As lágrimas são um pequeno sinal de uma saudade que não dá para entender, não dá pra mesurar. A serenidade se esvai, me vem seu rosto, sua dor, sua saudade. Como posso te lembrar serena se não foi assim que partiu? Como posso te desejar uma memória serena se não foi isso que consegui compartilhar com você em vida?

Eu lembro de momentos tranquilos, do seu sorriso calmo. Eu lembro hoje do sorriso calmo, meio envergonhado, de quando eu olhava apaixonado. A fumaça subindo do canto da boca, de lado. A serenidade era um presente raro, mas nós o tivemos por alguns meses. Nós o roubamos uma vez ou outra. Lembro da última vez, a última vez que roubamos à vida um momento de calma, um momento nosso para sonhar com uma vida que ela não pôde ter. Sentados nas pedras, fomos felizes, juntos, uma última vez.

Eu lembro de vezes que consegui segurar sua dor entre as mãos, de ter certeza que ela iria ser menor do que a vida, do que a luta por mudar a vida. Lembro de ter sentido o tamanho imensurável de uma dor que era sua. Eu consegui te ouvir, consegui estar com você. A dor também tem seus momentos de serenidade, e me lembro de você afagando calmamente meus cabelos quando eu chorei também. Havia felicidade na cumplicidade da dor, do sentimento mais profundo e verdadeiro que era a dor. E quando ela era nossa.

Queria te dar um último abraço e sentir sua dor. É tarde, muito tarde. Sua dor foi enterrada. Ela deixou heranças, que se dividem em pequenos pedaços, em vários continentes e vidas, das pessoas que te amaram, que te choram e sofrem. Gestamos esta dor, por nove meses, em nossas vidas. O luto, o luto eterno passou. A luta pela vida é maior e vence. Mas a dor permanece, ali, para ser puxada pela mão à tona em noites como esta, em que te lembramos, em que beijamos as memórias dos momentos doces e das dores que dividimos com você. E esta dor que um dia foi sua e imensurável, que venceu a batalha pela vida e por mudá-la, se transformou em uma teia fina, invisível e insolúvel que liga estas pessoas. Pessoas que te conheceram em diferentes momentos, que te amaram de formas diferentes e com motivos diferentes. Te lembramos e lembramos sua dor. Lembramos seus sorrisos e coisas que cada um carrega, pequenos segredos. Com os fios desta teia tecemos sua memória em diferentes cores. Nenhum de nós te esquece, e nenhum pode te levar conosco. Levamos apenas estas memórias, estas mudanças que deixou em cada um de nós.

Em nove meses se gesta uma vida humana. São nove meses sem a sua vida. Parece uma eternidade desde que a vi pela última vez. Não achava que seria a última; queria um abraço, só um abraço... levo esta dor nas alegrias de hoje, nas lutas por um futuro melhor. Um futuro que possa perdoar o que somos hoje e o que fomos ontem. Ele vai vir, e carregará nossas memórias nele.