terça-feira, agosto 24, 2021

 



Estava escuro e eu, andando por cobertores e almofadas do corredor, pisei na minha gata. Ela me mordeu, e eu, assim que senti que meu pé estava sobre ela, o projetei para frente para não soltar sobre seu pequeno corpo o meu peso. Morrendo de culpa, imediatamente fui até ela e fiz carinhos, aos quais ela se entregou, levantando a cabeça e mostrando o pescoço, como costuma fazer quando está feliz com meus afagos.

Eu pisei na minha gata porque estava escuro, e ela estava deitada em um cobertor na porta do banheiro. Os cobertores e almofadas espalhados pela casa são uma técnica improvisada para amortecer o barulho das patas dela e de seu irmão quando correm de madrugada, o que já há mais de um mês vinha tirando o sono de meus vizinhos de baixo.

Eu pisei na minha gata quando ela estava deitada no cobertor que coloquei no chão para permitir que ela corresse livremente à noite. E ela, que gosta de deitar em cobertores, inadvertidamente o aproveitou no corredor escuro. E eu pisei nela. 

Como os gatos quando quebram coisas que amo, eu não o fiz com maldade ou intenção de ferir. E, no entanto, eu a feri ainda assim. E ela me feriu de volta, em seu instinto de defesa.

Desde então, quando ela está deitada nos cobertores e almofadas no corredor e sente meus pés se aproximando ela se assusta, às vezes corre. Eu, tentando chegar de leve, tento remediar meu erro. A gata ficou com medo, e diferente dela quando quebra algo meu, eu sinto culpa. Como os gatos, eu posso ferir sem intenção. Posso machucar, e poderia ter machucado ela ainda mais se não tivesse me jogado no chão para evitar que todo meu peso desabasse sobre seu frágil corpo. Às vezes, contudo, não conseguimos evitar, e esmagamos o que amamos sobre o peso de ações estúpidas, mesmo sem intenção.

A minha gata não entende quando peço desculpas. Meu pé, dolorido dentro do calçado, me lembra constantemente que pisei nela, e que ela me mordeu de volta. Mas a dor da mordida é ínfima, sendo apenas um índice da dor maior, que é a da culpa de - sem querer - ter pisado em minha gata.

No dia seguinte, empoleirada no box do chuveiro, ela me observa tomar banho com os olhos e a paciência de sempre. Ela parece não se lembrar ou não se importar com o gesto que, em mim, ainda causa culpa. Mas, deitada no corredor, sentido meus pés se aproximarem, ela ainda lembra, e fica assustada. 

Me desculpe, eu queria dizer.
Mas não posso, nem adianta.
Meu pé ferido me lembra,
perto ou longe dela.
Que eu pisei, feri
e ainda dói
e sangra.
 

sábado, agosto 21, 2021



quarta-feira, agosto 18, 2021

 Eu olho pros olhos do gato enquanto ele me observa tomar banho, pela fresta do box, empoleirado na janela. O que move ele? Por que ele se empoleira para me ver tomar banho? O que sente o gato?

Eu não sou um gato, e não sei se ele sofre minha ausência quando não estou, nem o que ele sente quando, empoleirado todos os dias, me assiste tomar banho. Ou quando sobe em meu corpo para mamar minhas orelhas.

Empoleirado, eu assisto em minha memória você sorrir. Quando eu não estou, o gato sente minha falta como eu sinto a cada dia a sua?

Quando o gato quebra coisas que amo, ele não sente remorso. Ele não entende que destruiu algo importante para a pessoa que o ama e que a cada dia cuida dele. O gato destrói coisas como quem me assiste tomar banho empoleirado. Tudo ele faz com a idêntica inocência de um gato. Eu não sei o que ele sente quando minha cara de dor constata que algo que valorizo foi destruído por suas ações de gato; provavelmente, nada semelhante a arrependimento.

Mas eu não sou um gato, e a cada dia sofro porque minhas ações humanas destroem coisas importantes para a pessoa que amo. E eu sinto remorso e arrependimento. Não sendo um gato, eu possuo a humana capacidade de medir as consequências de minhas ações, e também de sofrer por ter agido de forma a trazer dor para uma pessoa que amo. E, ao contrário dos gatos, com o olho da memória, empoleirado, assisto você sorrir. Ouço as palavras de amor que você me dizia antes que minhas ações humanas lhe ferissem. 

E penso que queria ser um gato, cujas ações são sempre inocentes, e que dia após dia pode se empoleirar para assistir a quem ele ama tomar banho. Gatos que não magoam e não se arrependem em sua triste solidão, como quem perdeu um pedaço de si que não consegue reaver.

sexta-feira, agosto 13, 2021

 Não há uma noite tranquila

Pela janela o cinza cobre o céu e as calçadas,

nas manchetes e nas postagens, as mentiras cobrem as fotos, as falas, a vida,

dentro de mim o sujo de minhas ações, a hipocrisia cobre minha vontade de viver.


Não há uma noite tranquila porque o mundo é ruim,

e eu não sou melhor do que ele para poder me erguer e lutar.


Não há uma noite tranquila porque o que há de preservável nesse mundo

- a flor que nasce no asfalto e fura o tédio, o nojo e o ódio -

meu pé bruto trata de tentar pisoteá-la com sua estupidez.


Sonho com outra vida, com outra realidade menos menos morta

e bebo deste cálice.

terça-feira, agosto 10, 2021

 não há no que se segurar.

O resto de vida que senti naquele dia foi apenas para realçar o gosto da morte no resto dos dias. E para me mostrar que me debater não serve para ajudar a ficar na superfície, mas sim para ajudar a levar ao fundo os que tentam me estender a mão.

Melhor afundar sozinho. 

Eu já estou perdendo a possibilidade de nadar. Meus músculos estirados têm cãimbras. Minha vontade já gasta não consegue retesá-los. O desespero se torna a cada dia apatia. E a vaga memória de que há algo que pode nos segurar, há esse toque, se torna dor, porque tocar é ferir.

Não quero ferir. 

Não quero.

Não.