quarta-feira, fevereiro 19, 2014

Exorcismo dos resíduos

Nesta semana comecei algo que há muito tempo adiava, e que provavelmente mudará minha vida bastante. E que, espero, possa ajudar outras pessoas a mudarem as suas. Eu comecei a estudar psicanálise, com o intuito - entre outros - de poder clinicar.

A aula inaugural, dada pela professora Teresa, com experiência de décadas de atendimento no SUS, me fez pensar muito sobre esta decisão e este mundo no qual me proponho a ajudar as pessoas a conhecerem e melhorarem seu sofrimento psíquico. Ela, que hoje trabalha no projeto "Braços Abertos" da prefeitura, falou muito sobre como é tentar ajudar as pessoas a partir das instituições públicas.

No começo da década passada, houve no Brasil uma reforma psiquiátrica. Algumas práticas medievais foram abolidas, entre elas os hospitais psiquiátricos onde os pacientes ficavam confinados como em presídios, frequentemente submetidos a torturas e maus tratos. Em seu lugar, vieram os CAPS (Centro de Atendimento Psico-Social), que são hospitais-dia. Ou seja, os pacientes não ficam internados, apenas os frequentam durante o dia. Houve inúmeras mudanças no sentido de humanizar o atendimento a pacientes psiquiátricos.

Contudo, o que a fala de Teresa revelou é que tais mudanças foram insuficientes em todos os sentidos. Estas mudanças não afetaram a lógica de um tratamento fundado em uma moral do produtivismo, na qual as pessoas são meramente as portadoras de uma mercadoria imprescindível para o capitalismo: sua força de trabalho. O olhar de nossa sociedade sobre o sofrimento psíquico está fundado neste valor - como colocar as pessoas "em ordem" para que possam novamente trabalhar, produzir, vender seu trabalho.

Claro, Teresa não colocou nestas palavras. Mas ela falou sobre o conflito entre a institucionalidade e o tratamento. Falou sobre os manuais que dizem que os pacientes devem ser acolhidos e tratados deste ou daquele jeito. Falou sobre a necessidade que se cria de distinguir a equipe de saúde (os "normais") dos pacientes (os "malucos") através de diferenças nas roupas, nos banheiros que usam, na comida que comem, nos talheres que usam. A falta de tempo para conhecer, entender, viver as diferenças psíquicas do paciente, passando com ele pelo tempo que seja necessário para que avance de acordo com seu ritmo e sua vivência. Todo este tempo é comprimido pelas regras da normatização da saúde mental, pela psiquiatria que medicaliza tudo de forma pasteurizada, para que os pacientes possam "melhorar logo" para produzir e não ser mais um "peso morto" para a sociedade.

A reforma psiquiátrica, ao mudar tudo externamente para manter a mesma lógica de funcionamento, inverteu o lado do confinamento. Ouvimos nossa professora contar sobre as pessoas que são confinadas do lado de fora do CAPS, como o paciente que, por se comportar de maneira inadequada, podia entrar apenas na hora de sua sessão. Ou outro, que por mais de seis meses vinha, tomando três ônibus, e sentava-se no meio fio, do lado de fora do prédio. E só foi atendido quando um estagiário passou meses a seu lado, do lado de fora do prédio. Ela falou sobre um morador de rua, que cobria-se com papelões, e morava em frente à secretaria de saúde. Confinado nas ruas. Quantos não estão confinados nas ruas? Confinados na solidão? Confinados na invisibilidade?

Teresa falou sobre a extrema especialização do tratamento psíquico, que levou a que, quando ela trabalhava com pacientes soro-positivos (portadores de HIV), se falasse sobre um "perfil dos portadores de HIV", da mesma forma que hoje se fala de um "perfil dos usuários de drogas". Toda a especialização torna-se, assim, uma padronização, que destitui o paciente de suas experiências singulares e trata-o como mais um na fila. Esta ideia da normatização às pressas e a todo custo ficou particularmente evidente quando Teresa falou sobre as entrevistas de triagem, feitas quando o paciente ingressa para seu tratamento no CAPS. O olhar viciado do médico, do psicólogo, passa a pensar, a cada palavra que é dita pela pessoa a sua frente, na única função: "para onde vou encaminhá-lo?". Tratamento de drogas, violência, etc. Cada problema tem um especialista para onde se encaminha o problema adequado à sua formação. Fragmenta-se um psiquismo, enquadra-se ele em um problema a ser resolvido, encaminha-se para o especialista correto. Próximo! Assim se monta o fordismo das patologias psíquicas na saúde pública brasileira.

Uma entrevista de triagem jogou na cara de Teresa o absurdo desta prática. Uma mulher entre e lhe diz que sua família foi vítima de uma chacina. Que chegou em casa, viu seus filhos mortos no chão, o sangue espalhado por todas as paredes. Teresa parou, impactada. Fez ligações, procurou o lugar que melhor poderia tratar aquele caso tão grave, de uma violência tão brutal. Encaminhou-a. Anos depois, ela conta aos novos estudantes de psicanálise esta história. Ela não conta apenas uma, nem duas vezes; a mulher da chacina é uma constante em seu discurso, uma marca permanente da angústia. Por que eu fui incapaz de ouvir a mulher sobre a chacina? Esta pergunta ecoa na cabeça de Teresa há mais de vinte anos. Ela não foi capaz de lidar com o horror desta experiência, era dor demais para ela carregar, ela teve que passar para frente. Mas a verdade é que não pôde: o preço de encaminhar aquela paciente foi levar para sempre sua memória, a memória de uma pessoa com quem conversou uma vez apenas, e a sombra daquele horror tão brutal que havia vivido.

Décadas de atendimento na saúde pública trouxeram a Teresa muitas histórias de dores e sofrimentos. De pessoas que chegavam tão "estropiadas" no hospital, no CAPS, que ela não sabia nem por onde começar. E ela nos falou sobre como os terapeutas levam os resquícios de seus pacientes, de seus sofrimentos, de cada caso que veem. E sobre como ela escreveu sua tese como uma forma de exorcizar estes resquícios, uma sublimação de tanto sofrimento que se acumulava sobre seus ombros. Eu também escrevo para exorcizar meus resíduos. Mas Teresa sabe que isto não é suficiente; e ela fala, a cada vez que fala em público, ela relembra a mulher que lhe contou sobre a família morta na chacina. Um resíduo que ela carrega para sempre.

Isso me fez pensar muito sobre as minhas escolhas. Sobre os resíduos, sobre o sofrimento humano que carregamos nos ombros. O discurso de Teresa falava sobre as instituições, sobre os confinamentos, mas ele passava ao largo da causa estrutural de todos estes males - o mal fundamental que leva a que todas estas estruturas sociais operem assim; o capitalismo. Minha escolha de vida foi por enfrentar o sofrimento humano combatendo aquilo que hoje é sua maior fonte. E por isto decidi ser um revolucionário, para ir à raiz dos sofrimentos deste mundo.

Mas aconteceu disso não me ser suficiente. E fiquei pensando sobre os resíduos que carrego comigo, os resíduos que nunca conseguimos exorcizar. Quando ela falava sobre as instituições e seu funcionamento, eu me lembrava de quando fui a uma. Não era um CAPS, era uma clínica particular, onde fui visitar uma pessoa que amava, e que subitamente descobri internada. As regras, no entanto, não eram menos rígidas por se tratar de uma instituição privada. Não se entrava de celular, não se entrava com livros antes que fossem aprovados para leitura. Os horários de visita, de ligações, de refeições eram estritos. Nenhum tipo de envolvimento amoroso entre pacientes. Nenhum objeto perigoso nos quartos. Tudo sob controle. O controle dá segurança aos pacientes, e é parte do que muitos deles buscam na instituição. As memórias desta instituição me pesam sobre os ombros, um resíduo que não consigo apagar. A musiquinha que tocava ao telefone, que tocou quando liguei lá pela primeira vez, sem saber que ligava para uma clínica psiquiátrica onde minha namorada, cujo paradeiro eu não sabia há um mês, estava internada. Os almoços que passei lá, os rostos dos pacientes, os detalhes daqueles dias em que ia visitá-la.

A vida nos impõe seus caminhos. A decisão que tomei de lutar por um mundo onde se possam superar os sofrimentos não fez com que eles se atenuassem na luta de cada dia. E eu vi o sofrimento, inadiável, iniludível, carregar a Camila para a morte, sem que pudéssemos fazer o suficiente para mantê-la aqui. Sua escolha de vida era a mesma que a minha, era uma revolucionária. Os sofrimentos lhe tocavam profundamente; ela os entendia, porque ela também sofria. Um psicanalista de um livro que li disse que uma das coisas importantes para ser um terapeuta é ter sofrido. Eu acho pertinente esta observação. Cami sempre foi sensível ao sofrimento alheio, e quando ela estava internada eu a vi feliz. Ela sentiu-se em casa, tornou-se amiga de outros pacientes, sentiu em sua vida o sentido de tocar o sofrimento dos outros. Isto, a luta para penetrar o sofrimento psíquico de cada um, somava-se dialeticamente à luta pelo projeto coletivo de acabar com o sofrimento da humanidade. Mas este projeto não se concluiu, sua vida foi breve demais para isto.

Eu levo os resíduos de seu sofrimento comigo. Teresa sempre se perguntará porque teve de encaminhar a mulher cuja família morreu numa chacina. Eu sempre carregarei comigo muitas perguntas e muitas dores da morte da Cami, em quem penso a cada dia de minha vida. A dor que carrego me aproxima do sofrimento humano, me impele, me faz querer ser parte de encarar a dificuldade de socorrer aqueles a quem a institucionalidade capitalista não dará atenção, e sempre confinará - seja nos muros de seus hospitais psiquiátricos, seja para fora de seus CAPS, ou em qualquer outro tipo de marginalidade. Quero ser uma pequena parte da luta por instituições novas, em que a dura e árdua luta de cada dia não nos torne cegos, incapazes de ter tempo e espaço para a dor do próximo. Para que possamos, no decorrer de nossa luta, nos tornarmos mais humanos, mais capazes de solidarizar-nos com a dor alheia, mais capazes de suportar em nossos ombros os resíduos que, enfim, serão também mais uma motivação para lutarmos por um mundo onde se sofra menos.

sábado, fevereiro 15, 2014

O assassinato de Santiago e as saudades do Estado Novo

Uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade.
- Joseph Goebbels, ministro da propaganda nazista.

Santiago Andrade: a única morte de um trabalhador que comoveu toda a burguesia do país
Não se fala em outro assunto no país. Não há nada mais importante, mais comovente, mais mobilizador para este Brasil do que um cinegrafista que morreu, vitimado por um rojão. O Jornal Nacional se "comove", a Dilma se "comove". Por que é uma morte que "comove" tanto, se neste país a vida - especificamente a de trabalhadores como Santiago Andrade - é um artigo tão barato? Se somos campeões em mortes por acidente de trabalho, em mortes pela violência policial, e não há toda esta comoção? Onde estava esta comoção quando morreu Douglas em BH, durante protesto na Copa das Confederações, ao tentar fugir das bombas da PM? Ou quando morreu uma gari em Belém por inalar os gases desta polícia? Ou quando foi "suicidado" Kaique? Quando mataram Amarildo? Quando a bala de borracha da PM cegou o repórter Sérgio Silva, e pouco depois o jovem Vitor? Quando morreu atropelado um camelô, no mesmo protesto em que Santiago foi atingido, ao ser atropelado quando fugia das bombas da PM? Quando morrem operários na construção dos estádios da copa? Quando foi baleado Fabrício no ato contra a copa em São Paulo? Quando "justiceiros" amarraram e torturaram um jovem negro a um poste no Rio? Tantas mortes, tanta injustiça, e tão pouca comoção na imprensa e nos governos! De onde ela vem, bem agora?

Em primeiro lugar, é bom lembrar que este não foi o primeiro assunto que tomou unanimemente os meios de comunicação neste ano. Primeiro foram os rolezinhos, que deixaram a burguesia de cabelo em pé, chegando a pautar uma reunião ministerial extraordinária do governo de Dilma. A pauta do governo, então, era "entender" o que queriam os jovens, enquanto a parte mais reacionária da burguesia pedia sangue, através, por exemplo, de sua mais nova testa-de-ferro, a porta-voz da escandalizada "burguesia socialite", a """""jornalista""""" Rachel Sheherazade. O "entender" do governo quer dizer, na realidade, colocar em prática uma das especialidades do PT: cooptar; ganhar os organizadores dos rolezinhos com cargos e dinheiro, e receber em troca todos os votos que estes podem angariar. E mandaram lá o primeiro escalão do governismo em matéria de cooptação e formação de burocratas juvenis - no caso, o PCdoB, partido que dirige o braço do governo petista no movimento estudantil, a UJS, que implementa sua política através da UNE, financiada com alguns bons milhões de dinheiro do Estado. Só que desta vez o tiro saiu pela culatra... Cooptação ou repressão, são apenas duas formas distintas da burguesia tentar segurar o rojão. A atenção que foi dispensada aos rolezinhos era o prenuncio do pavor da burguesia diante de uma inelutável verdade: este país já não é o mesmo depois do ano passado, e está um bocado mais difícil para os de cima seguirem governando, explorando e oprimindo como antes. Era preciso fazer algo.

Globo dedica um editorial do Jornal Nacional à sua "comoção" pela morte de Santiago

A burguesia tem seus métodos. Cada fração dela tenta agir de uma forma - cooptar, reprimir etc. - para atingir seus fins. E, inclusive, eles se estapeiam pelo poder, como vemos com PT e PSDB, por exemplo. Mas, por instinto de classe, quando o deles está na reta, eles podem se juntar em torno de alguma tática em comum contra seu maior inimigo - os trabalhadores e os explorados. E a morte do cinegrafista da Bandeirantes foi um prato cheio para que uma classe que tem medo do futuro pudesse tentar erguer algumas barricadas ideológicas que protejam sua velha e carcomida dominação. A barricada ideológica consiste em tentar convencer os oprimidos e explorados de que a violência que os ameaça é a dos outros oprimidos e explorados, e não a deles, opressores e exploradores. De que a violência que os ameaça não é o desemprego, os baixos salários, a falta de condições de atendimento nos hospitais, a precariedade das escolas, os ônibus caros e lotados, o metrô-lata-de-sardinha que quebra a cada dia mais, a polícia que mata todo dia na quebrada. A violência que os ameaça é um cara com um rojão, que matou um cinegrafista e pode matar qualquer um. E, veja só, este cara com um rojão não é só um: são milhares! Eles saem às ruas, putos da vida porque enfrentam todos os dias a mesma merda que você passa - transporte lotado, trabalho duro o dia inteiro pra enriquecer o patrão, exploração até arrancar o couro, racismo, machismo, homofobia e uma vida dura - e saem com rojões assassinos que podem acertar qualquer um, inclusive... você! E não para por aí: eles não são amadores - estes assassinos com rojões são recrutados por partidos organizados que os aliciam com 150 reais para que eles saiam matando aleatoriamente. Veja bem, tome cuidado: da próxima vez que você estiver puto com o ônibus caro e lotado, lembre-se que você poderia estar sendo assassinado por um manifestante com um rojão! Melhor agradecer!

E, pra sua sorte, nossos governantes já têm todas as providências prontas para serem tomadas: mais polícia, mais armas, mais leis que qualifiquem as pessoas que saem nas ruas dizendo que o ônibus é uma merda como o que eles realmente são - terroristas! É, isso mesmo: o blogueiro Paulo Henrique Amorim bem que já vinha dizendo que os black blocs eram terroristas. A FIFA e a Dilma bem que já tinham aprovado aquela leizinha esperta para a Copa que garantia que não só estes terroristas, mas também os terroristas trabalhadores que fizessem greve recebessem a sua lição. Agora, é só aprovar mais esta nova lei e o povo trabalhador não vai mais ter o que temer: os vagabundos de rojão vão todos pra cadeia; os que reclamarem de qualquer coisa vão todos para a cadeia. E você, bem, você já pode voltar pra sua vida tranquila e segura: um salário que não chega até o fim do mês, um emprego que você não sabe até quando vai ter, um busão caro onde você vai e volta esmagado por três horas, uma polícia que pode te matar ou te descer o cacete porque você é preto e pobre. Ufa! Não tem mais nada a temer!

Então, vamos lá, repetir algumas coisas que já estão aí sendo ditas por muita gente, mas infelizmente é muita gente que não tem nem a Rede Globo, nem a Folha de São Paulo pra dizer estas coisas, então é bem possível que você ou as pessoas que você conhece ainda não tenham ouvido porque suas vozes não chegam muito longe (como a deste precário blog). Primeiro: você já viu o vídeo do cara que soltou o rojão e comparou bem de pertinho com a foto do cara que foi preso na Bahia? Ok, pode ser que ele tenha se bronzeado bastante, mudado de cabelo, colocado um óculos, sei lá... as pessoas mudam, né? Tá, então vamos para outra coisa: você sabe quem é o advogado que está defendendo eles? É um cara que defende pessoas ligadas às milícias no Rio de Janeiro. Sim, as mílicias, sabe, aqueles grupos formados por policiais que dominam territórios na cidade onde controlam o tráfico, cobram "proteção" das pessoas, regem bairros e favelas inteiras com métodos do fascismo. Bom, e como este cara que defende grupos de extrema direita formados por policiais foi defender manifestantes que estavam em um ato de esquerda? Pelo "amor ao trabalho", diz ele. Que bonito, né? Outra coisa: o primeiro cara preso, que entregou seu colega a quem deu o rojão, tem o mesmo advogado do outro. Você não acha esquisito? Um cara é preso, seu advogado diz pra ele assim: "entrega seu amigo que eles aliviam pra você". Tá, o cara vai lá e entrega. O outro é preso e fala "bom, aquele advogado que falou pro meu amigo me entregar pra polícia parece um cara gente fina. Acho que vou querer que ele me defenda também." Em seguida, vem um monte de declarações bombásticas, uma mais ridícula que a outra: que eles são envolvidos com o deputado Marcelo Freixo do PSOL. Olha, eu não tenho lá muita afinidade política com o Freixo, mas posso te dizer que ele é bem conhecido por... combater as milícias no Rio! Coincidência, né? Depois dizem que os manifestantes recebem 150 reais para "quebrar tudo". Isso já ultrapassa o limite do ridículo. Qual o sentido de pagar alguém para ir a um ato quebrar tudo? O que um partido ganha com isso? Acusam os partidos legalizados que participam das manifestações, PSOL e PSTU, de "comprar" manifestantes. A troco de quê? Quem comprou? Será, pense você, que o advogado dos milicianos - cujo principal adversário político neste momento é o Freixo - não poderia, por acaso, orientar seus "clientes" a dizer que eles foram aliciados para que a pena sobre eles fosse mais branda? Eu vou a manifestações há pelo menos dez anos, eu conheço muito bem PSOL e PSTU porque eles são meus principais adversários políticos todos os dias na universidade e fora dela há um bom tempo. Eu sei muito bem os podres que são capazes de fazer. E, acredite, não só eles não pagariam a ninguém pra ir na manifestação, como se o fizessem não faria sentido algum. Será que é tão difícil acreditar que as pessoas saem às ruas porque elas acreditam em algo? Por que querem mudar este mundo de merda?

Mas esta historinha da carochinha, bem mal contadinha mas mesmo assim reproduzida como verdade em cada jornal e canal de televisão deste país - devidamente acompanhada por um montão de lágrimas de crocodilo pela morte de um trabalhador que não ganhou sequer o mínimo de segurança para trabalhar por parte de seus patrões - me lembrou de uma outra historinha parecida, de tão mal contada, e com uma solução já prontinha também. Foi em 1937. Nosso querido presidente da república, o "pai dos pobres", Getúlio Vargas "descobriu" um plano dos comunistas para... dominar o país! Veja só, este plano da Internacional Comunista (sic!) previa incendiar prédios públicos (será que eles usariam rojões?), saques, destruição, sequestro de governantes e figuras importantes, enfim, transformar o país num caos! Era o Plano Cohen, vindo de Moscou para aterrorizar a população de bem. Mas, ainda bem, o "pai dos pobres" tinha a solução para isso: uma leve ditadurazinha, com suspensão dos direitos civis, das eleições, uma constituição nova feita a gosto do ditador. Houve quem não gostasse, claro, sempre há os que querem baderna. Mas os integralistas, por exemplo, foram imediatamente fazer uma manifestação para apoiar o Vargas. Felizmente, triunfou a ordem, e a ditadura do Estado Novo de Vargas foi até 1945, tranquilamente prendendo, torturando e assassinando comunistas, operários, enfim, todos aqueles que não concordassem que o país ia muito bem, como, aliás, vai até hoje. Em 1945 o general Goes Monteiro revelou publicamente que o plano Cohen era uma farsa, (Uau! Quem diria!!!) montada pelo governo para justificar sua ditadura.

E, ainda bem, hoje também podemos contar com a eficácia da polícia civil, que concluiu a investigação em tempo recorde. Podemos contar com a confissão destes marginais - devidamente assessorados por seu advogado defensor de milicianos e amante de seu trabalho - que acabaram nos revelando que por trás de toda esta baderna estão os terríveis comunistas (nossa, mas eles não cansam?). E ainda bem que, como nos anos 30, a solução já está pronta, na forma de uma maravilhosa lei contra o terrorismo. Tudo o que cabe a nós, cidadãos de bem, é apoiar nossos governantes neste decidido combate aos maus elementos da nação! Tudo pelo progresso e contra os vândalos!


sábado, fevereiro 08, 2014

Militantes (para você que não me respondeu)

O partido exige-nos uma entrega total e completa. 
Que os filisteus continuem buscando sua própria individualidade no vazio; 
para um revolucionário, doar-se inteiramente ao partido 
significa encontrar a si mesmo.  Sim, nosso partido nos toma por inteiro. 
Mas, em compensação, nos dá a maior das felicidades, a consciência de participar 
da construção de um futuro melhor, de levar sobre nossas costas 
uma partícula do destino da humanidade e de não viver em vão.

- Leon Trotsky, discurso de fundação da IV Internacional, 1938

Os homens fazem a sua própria história, 
mas não a fazem como querem, 
não a fazem sob circunstâncias de sua escolha
 e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente,
 legadas e transmitidas pelo passado.

- Karl Marx, O dezoito de Brumário de Luis Bonaparte, 1852

Me convenci de que o socialismo não só era possível, mas também necessário, há dez anos. Contudo, demorei ainda mais cinco nos para chegar à conclusão de que não basta querer o socialismo e defendê-lo em minhas atitudes individuais ou minhas ideias - é necessário ter uma estratégia fundada na teoria e provada na realidade para que possamos chegar nele, e fazer de cada dia uma escrupulosa batalha para que possamos traduzir esta estratégia em táticas, em ações feitas em função de um plano maior, para que consigamos derrubar um inimigo que é imenso, e que não vai ceder sem dar todas as suas forças para resistir à queda.

Não fui eu, nem muito menos a organização na qual milito que inventamos a estratégia que adotamos nesta guerra. Na verdade, não foi nenhuma mulher ou homem isoladamente. Esta estratégia é, ela mesma, o fruto da luta de milhões de trabalhadores, explorados, lutadores, que deram suas vidas em combate contra o capital. Há, dentre estes, alguns que tiveram a oportunidade de poder sintetizar com grande sucesso os erros e acertos, a teoria e a estratégia que pode nos ajudar a avançar. Dentre estes não podemos esquecer os nomes de Marx, Engels, Lenin, Trotsky e Rosa. Todos estes, em maior ou menor grau, passaram apuros e sofreram riscos e privações para poder nos legar este conhecimento, esta luta. Trotsky e Rosa foram assassinados por gente que não matou apenas a eles, mas também estrangulou os partidos que ajudaram a construir com a militância de suas vidas. Marx viu sua filha morrer de fome; Lenin viveu na clandestinidade e sofreu um atentado que quase o matou. São esforços e privações que estão muito além do que hoje sofremos.

Nem por isto tornar-se um revolucionário hoje é uma tarefa fácil.Quando pela primeira vez tomei contato com a organização na qual eu milito hoje, a Liga Estratégia Revolucionária - Quarta Internacional, nem me passava pela cabeça a ideia de dedicar minha vida à construção de um partido revolucionário, não só no Brasil, mas em escala mundial. Me parecia, como ainda parece à maioria da humanidade hoje, uma ideia absurda, maluca, completamente desprovida de inteligência ou de entendimento sobre a realidade. Era um punhado de gente - literalmente um punhado - a maioria alguns estudantes de origem pequeno-burguesa, que se propunha a nada menos do que derrubar o Estado e instaurar uma ditadura da classe trabalhadora. "Que viagem!", pensava eu.

Eu não vou me propor aqui a tentar explicar para ninguém porque esta ideia não me parece mais absurda, porque não tenho a pretensão de convencer alguém em um post de blog: a mim, foram necessários cinco anos para que me convencesse. E não foram poucos destes que hoje chamo de camaradas - alguns que infelizmente já não estão mais em nossas fileiras - que conversaram comigo pacientemente. Mas não foram apenas eles que me convenceram: foi principalmente o fato de que eventualmente tive a humildade de admitir para mim mesmo que eu não sabia nada da história da luta da classe trabalhadora, e que tudo o que eu repetia como um papagaio era fundado em duas coisas - a primeira, como já disse acima, no aparente absurdo da ideia que eles propunham. A segunda, em repetir os preconceitos e falsas verdades que haviam me enfiado goela abaixo sem que eu nem percebesse.

E eu li, li, e li. Procurei ler aqueles que estiveram nas revoluções, que participaram e escreveram sobre elas. Li os anarquistas, e descobri uma carência de fundamentos teóricos que levaram a práticas trágicas. Li John Reed e descobri que antes disso nada sabia sobre os dez dias que abalaram o mundo, ou sobre quem era e o que faziam aqueles que se denominavam bolcheviques. Mas não me contentei com esta versão apenas e fui ler o que diziam os inimigos dos trabalhadores: li mais de mil páginas do historiador liberal inglês Orlando Figes, que procura sustentar - através de uma minuciosa pesquisa extremamente bem documentada - a posição de que os bolcheviques eram assassinos sanguinários. Li as polêmicas de Marx e Bakunin, de Rosa e Bernstein, de Lenin e os mencheviques, de Trotsky e os stalinistas, e também com os liberais. Li os autonomistas: John Holloway e sua teoria de mudar o mundo sem tomar o poder; Hakim Bey e suas zonas autônomas; Cornelius Castoriadis e sua crítica quase metafísica ao trotskismo. Li Malatesta, Kropotkin, Maurício Tragtenberg., Makhno, Victor Serge. E li ainda muito pouco.

E, ainda sim, a leitura não foi tudo o que bastou para me convencer. Uma das coisas que aprendi lendo - e depois fazendo - com Marx, foi que a prática é o critério da verdade. E que podemos ler uma montanha de coisas e isto não torna nossa prática revolucionária. Mas ao longo dos anos conheci a prática de muitas correntes que se propõem a atuar na realidade para transformá-la. Nunca tive o espírito diletante, antes peco pelo contrário, fazendo antes de pensar o suficiente. E foi assim que comecei a ser um ativista, em 2004, entrando de cabeça em uma greve que em um mês foi capaz de limpar da minha cabeça uma porção do lixo que dezenove anos de liberalismo burguês haviam enfiado e marcado na minha concepção de mundo. O que ficou, no entanto, foi suficiente para me afastar do marxismo e me jogar em uma agrupação populista semi-autonomista, o Movimento Terra, Trabalho e Liberdade (MTL). Nesta agrupação, acompanhei com desconfiança o processo de fundação do PSOL. Fui vendo, ao longo dos anos, a tragédia do PT - um partido feito por trabalhadores em luta contra a ditadura que foi traído por um punhado de burocratas social-democratas - ser repetida na farsa do PSOL - um pequeno racha daquele dirigido por parlamentares que repetiam sua estratégia de "socialismo" parlamentar. Vi a sua messiânica Heloísa Helena defender leis que atacavam os trabalhadores, militar ao lado da Igreja contra o direito das mulheres decidirem sobre seu próprio corpo, e em seguida abandonar o barco porque ela perdia seu espaço de caudilha dentro dele e procurava ventos mais à direita. Mas, muito antes que tudo isto se concretizasse, já tinha abandonado os companheiros do MTL em seu projeto fracassado ao sentir que não era este o caminho.

O lixo burguês que me foi enfiado na cabeça, como falei, não se dissipou todo de uma vez - nem se dissipará por inteiro enquanto eu viver, afinal, não posso ser uma pessoa que não pertence a seu tempo. Uma das piores heranças desta porcaria ideológica era o individualismo, a ideia de que somos algo tão especial que imaginar que alguém possa ter algum tipo de autoridade sobre você é uma aberração. É a individualidade mais burguesa que se possa imaginar, a ideia da auto-suficiência. E foi vítima dela que virei um anarquista e fui militar no Movimento Passe-Livre, onde tudo se decidia por consenso e imperava a mentira de que não há dirigentes (cujo resultado é criar pequenos burocratas que dirigem sem serem legitimados pelo coletivo). A esta ideia do "indivíduo livre" somavam-se outros preconceitos que me colocaram lá: de que os partidos inibem a criatividade, a individualidade, transformam seus adeptos em repetidores de palavras dos dirigentes, sem espírito crítico ou capacidade de pensarem por si próprios. Esta ideia é ima gêmea daquela da individualidade "a todo custo", e que remete profundamente às ideias que os românticos - primeiros artistas da época burguesa - criaram lá no século XVIII e XIX.

Mas a realidade é persistente, e foi me mostrando o quão mesquinha era este tipo de militância, e que tinha em si a mesma prepotência que eu carregava quando era um adolescente petista: substitui a história por mistificações e preconceitos - quem diria, burgueses. Foi mais um ano ali para que eu aprendesse isto. E depois, quantas experiências me foram necessárias: a luta em solidariedade ao povo de Oaxaca, que numa pobre província do México conseguiu se organizar para derrubar seu governo, tomar as emissoras de televisão e criar seu governo próprio, dirigido por organizações sindicais e populares. A esquerda brasileira, por incrível que pareça, parecia um túmulo: ninguém falava disto. Os sindicatos dirigidos pelo PSTU calavam; os parlamentares do PSOL calavam. Apenas um pequenino grupo, quase inexistente, colocou suas pequenas forças para fazer de tudo o que pudesse para apoiar aquela luta. E eu me juntei a eles. Era a LER-QI. Depois, em 2007, a greve da USP me mostrou na prática como se portavam os "libertários" autonomistas que dirigiam tudo como um punhado de "burocratinhas mirins". E a realidade me ensinou a necessidade da auto-organização, tal como eu lera nos escritos sobre a revolução russa. E, naquele momento, apenas uma pequenina organização - quase sem influência na greve - defendia esta importante tradição. Esta era a LER-QI.

Foram anos que me mostraram como a teoria e a prática distintas, revolucionárias, se fundiam, não sem erros - e muitos! - em uma das organizações políticas que conheci. E, quem diria, era uma organização pequenina, cheia de estudantes e ainda engatinhando para ter trabalhadores em suas fileiras. Fruto de uma expulsão do PSTU em 2000, que, juntando-se à tradição de camaradas argentinos do PTS, fundaram em apenas cinco pessoas esta organização. Sim, era penosa a escolha de militar em uma organização tão pequena. Mas não era por acaso que era numa organização tão pequena se expressava o melhor da tradição revolucionária, e olha que eu não estava em qualquer lugar deste país tão grande: eu estava na USP, um lugar bastante propenso a servir de ninho para organizações de esquerda. A tradição do trotskismo principista, que representa em nossa época a continuidade dos melhores ensinamentos de séculos de luta da classe operária e dos explorados de todo mundo, teve que nos ser importada da Argentina, e coube a este punhado de cinco camaradas, que não se intimidaram diante da absurda dificuldade de sua tarefa, tentar transformar estas ideias em força material. E, como disse Brandão, um dos fundadores deste grupo, no recente encontro de trabalhadores que fizemos e que reuniu 800 pessoas, se em doze anos aqueles cinco puderam chegar a estes 800, podemos fazer em muito menos tempo que estes 800 possam ser milhares.

Não, eu não queria ter que partir de tão longe, mas os homens não fazem a história como querem, mas sim como lhes foi dado fazer a partir da herança do passado. O passado recente é de derrotas colossais da classe trabalhadora. Por isto partimos de tão longe. E isto, sim, implica em sacrifícios. Não como os daqueles que foram assassinados ou viveram na clandestinidade. Pelo menos ainda não. Mas queremos preparar mulheres e homens à altura deste tipo de tarefa, deste tipo de sacrifício. Pessoas que tenham a consciência de que nosso sacrifício pessoal, ou daqueles que amamos, é um preço pequeno a se pagar por uma esperança que seja de emancipar a humanidade desta espessa camada de miséria que a cobre. Miséria material, moral, espiritual, intelectual, física. Uma miséria que as futuras gerações não merecem, como nós não teríamos merecido.

E, sim, às vezes abrimos mão de nossos fins de semana; pode até ser, em alguns casos, de quatro domingos por mês. Temos que construir bases materiais para nossa militância, formas de divulgar nossas ideias. A burguesia tem o mundo à sua disposição: as televisões, os provedores de internet, a posse das redes sociais, os jornais, as imprensas, as escolas, as igrejas...enfim, tudo. Nós, com muito custo, com uma parte do salário de cada um de nossos militantes, conseguimos colocar de pé nossas casas socialistas, onde fazemos reuniões, palestras, debates, cursos, festas. Conseguimos, com muito suor, manter um site, alguns blogs (como este), nosso jornal, que levamos e tentamos vender àqueles em que temos a confiança de que podem estar ao nosso lado para defender estas ideias. Estes jornais, quando os vendemos, não tiramos lucro algum dele; pelo contrário: é nossa contribuição financeira voluntária que é capaz de fazer com que estas ideias se materializem em papel, que levamos clandestinamente para vender nas fábricas, que vendemos aos nossos contatos nas universidades, escolas, locais de trabalho. Nossos militantes passam madrugadas em claro, entre um dia de trabalho e outro, para poder diagramar, escrever, revisar este jornal. Ele é, para nós, com todas as suas debilidades, um motivo de orgulho. E nos orgulhamos de levá-lo embaixo do braço para vender àqueles em que confiamos que poderemos discutir estas ideias.

Discutimos, pacientemente, com cada pessoa próxima a nós porque achamos que podemos e devemos mudar nossas vidas, nosso mundo. Que vale a pena militar em uma pequena organização com a ambição de construir um partido mundial que possa derrubar cada Estado burguês que oprime a humanidade em cada canto deste planeta. E também lutamos, aos tropeços, com tantos erros, com tantas dificuldades, para poder mudar em nós mesmos o que queremos mudar no mundo inteiro. Para poder fazer de nossa organização um pequeno embrião de uma sociedade distinta, onde as pessoas possam se relacionar de forma diferente. Isto implica em desenvolver a habilidade de se auto-criticar sempre que possível. Em fazer balanços duros de nossos erros, de ver onde carregamos ainda os preconceitos que queremos destruir. Em como podemos ajudar nossos camaradas. Aprender a ouvir críticas e saber que elas não servem para nos desmoralizarmos, mas para podermos ser pessoas melhores. E que nos tornamos pessoas melhores para poder lutar mais para mudar este mundo.

Erramos, e muito. Somos jovens, poucos, inexperientes. E as críticas que recebemos, se feitas de boa fé, são para nós um grande presente, pois nos permitem avançar e revolucionar a nossa organização e a nós mesmos, que somos os tijolos que constroem seu edifício. Contudo, também temos que nos acostumar a ouvir calúnias, críticas feitas com o propósito de destruir, de desmoralizar, críticas feitas por ressentimento ou mesquinhez. E, infelizmente, às vezes temos que ouvir estas críticas de pessoas que julgamos que poderiam estar ao nosso lado nesta luta. Às vezes, são golpes duros. Às vezes vemos um camarada valioso abandonar a militância. São muitos os motivos que podem levar a isto e temos que ser serenos para avaliar os nossos problemas, as pressões da vida, poder aprender com nossas derrotas também. E não nos derrubarmos. Como disse Che, um camarada que deu sua vida pela luta, mesmo que com uma estratégia incorreta, precisamos aprender a ser duros; mas sem perder nossa ternura jamais. É difícil. Muitos de nós endurecem e perdem a ternura. Muitos não conseguem endurecer. Mas continuaremos tentando. Continuaremos combatendo todas as críticas feitas para nos destruir, aprendendo com os adversários de boa fé, e avançando para dar a contribuição que pudermos nesta difícil e imprescindível tarefa de emancipar a humanidade. E seremos cada vez mais.