terça-feira, dezembro 20, 2022

 E eu que esperava ansioso pelos 40km

O restaurante vegano 

As horas de espera 

O dia, rotina 

De ver ela 

As coisas, pequenas 

São tão imensas 

Da geladeira me olha a margarina 

E me pergunta se acabou essa era 

Se mais uma vida se enterra 

Sem ser vivida














sexta-feira, novembro 04, 2022

Bia Michelle


Me lembro nitidamente a primeira vez que vi essa força da natureza chamada Bia Michelle. Era um encontro estudantil, e minha organização política fazia uma reunião discreta - ao contrário do que gostaria - para debater. E do nada aparece uma galera umas três vezes maior que a reunião inteira, vindo em nossa direção, cantando alto palavras de ordem. Na frente, puxando o bonde, estava a Bia: ela trazia consigo toda a delegação do Pará. Até hoje me lembro da Dança do Carimbó com a letra que fizeram para criticar a precarização das universidades federais no governo Dilma (eles falavam do Parfor, um programa que conheci com sua música): "Ô dona Dilma que dança é essa que a gente dança só? O dona Dilma que dança é essa é do Parfor, é do Parfor..."

A Bia era assim: arrematava olhares e corações onde passava. A maioria a amava, e uma minoria ressentida certamente a odiava. Indiferente à sua presença, quase impossível. Nossa passagem naquele encontro estudantil foi marcada pra mim pela confluência dos que vinham comigo e ela e os estudantes paraenses. Depois, nunca mais quis perder aquela mulher na minha vida. 

Não demorou muito pra nos reencontrarmos, apesar do país imenso que nos separava então.

Quando, formada, a Bia quis ir pra SP, falei que ia ajudar ela a arrumar um lugar. Sem dúvida isso selou nossa amizade, porque ela nunca esqueceu como um quase desconhecido a ajudou a se instalar nessa cloaca do capitalismo onde a vida é tão dura. Dali pra frente, nada poderia nos separar. O plano era que ficasse provisoriamente na república onde morava minha namorada, Kaky, até ter um lugar definitivo. Elas até então não se conheciam, e fomos buscar Bia no aeroporto e a levamos pra lá. Mas elas se deram tão bem que ficou ali, e ali a Bia Michelle conquistou mais uns corações - e umas inimizades, porque também quando pegava rancor de alguém, era profundo como seus amores.

A Bia Michelle que conheci primeiro foi a militante, que na UFRA, onde se graduou em Sistemas de Informação, deu uma canseira das boas na reitoria. Mas, curiosamente, ela não deixou também de cativar até o reitor, que a conhecia pelo nome e a tratava com deferência e até simpatia - aprendeu a respeitar uma adversária que sem dúvida superava sua estatura.

Bia tinha o tino pra luta, e logo se organizou no que tinha mais de esquerda e combativo pela sua região: o PSTU, que dirigia o sindicato da construção civil e era forte no movimento estudantil. Mas Bia era arredia demais pra organizações onde não questionar os dirigentes é o tom geral: logo ela saiu, dando dor de cabeça pra sua antiga organização - ela sozinha era um polo organizador dos estudantes em luta, em torno do qual girava o movimento estudantil de sua universidade.

Nesse encontro nacional, no qual o PSTU teve que aturar a sua presença a contragosto, ela conheceu a LER-QI, organização em que militava. Passou a se aproximar politicamente, levando consigo toda a delegação paraense. Marcou presença ali como em todos os espaços por onde passava. Mas logo sua verve indomável se expressou: suas posições fortes logo viravam pechas na boca de quem não conseguia debater com essa mulher de inteligência e obstinação. Não se curvava, e por isso "não servia". Passou ali como um furacão, e logo se foi, carregando mágoa e deixando rancores. 

Felizmente minha amizade com ela era maior do que isso, e das pouquíssimas pessoas dali com quem quis manter contato depois disso, eu fui uma. Acompanhei o pão que o diabo amassou que ela comeu nessa cidade horrivelmente inóspita, imprópria para a vida humana, chamada São Paulo. Quem mora aqui sabe como é impossível se encontrar na correria do dia-a-dia, mas infalivelmente eu encontrava Bia em seus vários "aniversários" que fazia por ano no boteco sujo em frente ao Copan, onde morou por um tempo. A foto, aliás, é de um desses dias.

Bia tinha um coração do tamanho do mundo, e não era feita só de força: ela sofria, e muito, com os preconceitos dessa sociedade. Afundou em tristeza, mas a bicha era dura. Transformou tudo isso em luta. Foi reconhecida e ganhou espaços. Na EACH, onde fez seu mestrado, também foi ponta-de-lança de lutas importantes. Teve a coragem de mudar de área no meio da sua pesquisa, indo estudar e defender os direitos das pessoas trans. Ela sentia na pele as injustiçãs e não aguentava calada. Conseguiu fazer a proeza de juntar seu imenso conhecimento e talento em computação ao ativismo político de que estava impregnada até a medula, como modo de vida.

Bia era andarilha, e passou por cada região do país, deixando atrás de si um rastro de amigos sempre saudosos. A última vez que a vi pessoalmente foi em seu aniversário/despedida de São Paulo, quando foi morar em Porto Alegre, onde fazia seu doutorado em Ciência da Computação. A gente se falava principalmente quando ela não tava bem nesses últimos anos. Ela me pedia ajuda, e eu fico feliz que ela tivesse essa confiança em mim. Mas eu me preocupava, e a distância é terrível nessas horas. Algumas vezes me chamou, e algumas vezes prometi, ir ver ela em Porto Alegre. Dói demais saber que isso nunca vai acontecer. Bia era jovem demais. E uma dessas pessoas boas demais pra esse mundo tão ruim, que fica pior com sua partida. Pra mim, que a tinha nessa conta cada vez mais estreita e magra de gente com quem se pode contar, e em cujo caráter e amor se confia cegamente, fica muito pior. Bia deixa um rombo no coração de muita gente. E uma pequena medida do tanto que era querida por tantos se mostra no fato de que em uma tarde se conseguiu arrecadar 27 mil reais (tudo certamente juntado aos miúdos de tantos amigos pé rapados como nós) para ajudar a levar seu corpo para sua terra, junto à sua família, onde será enterrada no sábado.

Não tive o privilégio de conhecer a família de minha amiga, mas meu coração está com eles agora. Que dor imensa perder uma pessoa assim, dessas que não se encontra por aí. Que carrega em si a dor do mundo, e que, mesmo esmagada sob esse peso descomunal, te estende a mão e te chama a lutar, amar e viver. 

quinta-feira, abril 21, 2022

Suicídio

Eu tenho falado muito de suicídio, é verdade. 

Esse tema, que sempre foi meu, incomodava os sacerdotes da igreja que frequentei. 

"A vida é bela", dizia um de seus dogmas, repetidos como a Letra da Lei. A escritura, assim, literalmente interpretada, dizia para amar a vida - que, afinal, é bela. Quem atenta contra isso incorre em "desvio": um dos nomes do pecado nessa religião laica.

As leituras obtusas das linhas de antigos camaradas há muito falecidos fizeram da palavra morta a regra que conduz a vida. Mas a vida é viva, pulsa, se debate, e debate-se. A letra precisa ser viva, ou, de que adianta nossa vida se são os mortos que nos conduzem? Nenhuma revolução da vida foi conduzida por mortos ou por letras mortas.

A vida não é bela. Ela pode ser bela. Poderia... É fácil ler assim, com um pouco de traquejo, a letra antiga do camarada morto, e à luz da evidente falta de beleza da vida que se leva. Ele morreu lutando para que a vida fosse bela. A sua vida, a bem da verdade, não foi lá muito bela. Foi dura, com alguns momentos efêmeros de grande beleza (ainda que estes também duros). Foi uma vida de prisões, degredos, exílios, guerras, privações, assassinatos, traições, calúnias, conspirações, perseguições. Ela terminou num isolamento atroz, que seus camaradas só sentiram mais após sua morte. Viu camaradas, amigos, familiares, gerações de combatentes e pensadores sendo exterminados aos milhares. Foi uma das pessoas mais difamadas da história, tanto no país que ajudou a triunfar contra a opressão, como em todo o mundo.

Ele lutou, e muito, mas a vida não se fez bela. O seu planeta havia se convertido em uma prisão suja, para usar suas próprias palavras. A revolução que fez, enterrada em mentiras e sangue. 

A vida só se fez mais feia desde então. As prisões de outrora nem sonhavam em ser as prisões de hoje. O panóptico foucaltiano enrubesceria de vergonha diante da vigilância digital que se espalha, um panóptico universal em rede que circunda todo o globo numa teia invisível onde cada mosquinha está grudada. A escravidão de ontem, forçada a golpes de polícia, parece o instrumento rudimentar de um troglodita perto da servidão voluntária escrutinada milimetricamente pelos próprios servos, que não precisam mais das correntes, trocadas agora por suas identidades digitais que biopoliticamente registram suas informações mais íntimas, fornecendo-as numa instantânea identificação biométrica aos vigilantes. O grande irmão está aqui.

O lema dessa morte em vida é a "preservação da vida". A atomização do indivíduo isolado e cercado se erigiu sob os gritos de salvar o coletivo. Os venenos são chamados de remédios. A escravidão, de liberdade. A novilíngua, o duplipensar são regras desse admirável mundo novo.

Aqueles poucos que deveriam ser algum tipo de resistência, ou pelo menos tentar, deixaram de lutar e tomaram parte no exército servil, aplaudindo a condenação dos que não se sujeitaram voluntariamente. Adornam a sua própria servidão com frases bonitas tiradas dos que lutaram contra a tirania ontem. "A vida é bela", repetem numa rede social qualquer ao lado de suas fotos injetando os lucrativos venenos dos donos do mundo. A amarga ironia disso é só mais um pequeno enfeite na coroa dos tiranos.

Eu me pego pensando naquela frase apócrifa que diz que a resignação é um suicídio cotidiano.

Como não se resignar?

A impotência é a regra quando o mundo te esmaga. Descobrir-se potente é a luta do espírito, da carne a cada dia. "A vida é bela" significava ver a possibilidade de potência em meio ao esgoto, ao planeta que era uma prisão suja. A vitória que tiveram aqueles camaradas, aqueles poucos torturados, assassinados, foi não se resignar. Havia alguma beleza nisso, ainda que a vida estivesse muito longe de ser bela. Mas e agora, quando os que deveriam lutar louvam as grades de sua prisão?

Quando o mundo vence, permanecer vivo é se resignar? É se fazer cúmplice? Há alguma beleza, qualquer uma, em uma vida assim?

Penso em Adolf Joffé, que viveu segundo o sentido de sua vida: o trabalho e a luta pelo bem da humanidade, deixando a vida no momento em que teve consciência de não poder ser mais útil à sua causa. Pôde se convencer de que sua morte tinha também a beleza da luta.

Penso nos Guarani-Kaiowá. Na epidemia de suicídios entre os jovens. O que os mata é a potência de vida, cortada na raiz. Suicidar-se, então, é não se resignar com essa pálida sombra de existência, à qual não se pode chamar de vida.

Os profetas desse mundo sujo nos dizem que é preciso abrir mão da vida para sobreviver. 

Os jovens indígenas, que sabem que a vida não é útil, abrem mão de sobreviver porque não abrirão mão de suas vidas.

Às vezes o suicídio é a única porta de saída para a prisão suja que é esse planeta.


domingo, abril 10, 2022

dez anos. tudo piorou

Faz dez anos, e muita coisa mudou; antes eu queria que estivesse aqui para ver as coisas que tinham mudado. Hoje eu até penso que você teve sorte de não ver muita coisa que mudou.

O mundo ficou pior, e vai ficar pior. Isso não te surpreenderia. Não tinha como supreender gente como nós. 

Mas o pior é que algo disso ainda surpreende sim. 

Sua sensibilidade se ofenderia tanto com o embrutecimento que as pessoas passaram. Algumas delas gente que você conhecia e amava, e que hoje não reconheceria. Se tornaram duros, estúpidos, intolerantes. Seguem as ordens, se consolam consigo mesmos.

Sim, é claro que eu queria que estivesse aqui sofrendo comigo. Eu teria coisas novas pra te dizer, te ensinar também. Coisas que mudam um pouco nossa vida, tornam essa dor toda um pouco mais tolerável.

Hoje mais do que nunca faz falta alguém que te olhe, que saiba ouvir. A sua sensibilidade sempre foi rara, e hoje é quase impossível. Mas seria massacrada.

Eu tenho vontade de te seguir, cada dia mais.
Sinceramente, não tem valido à pena.
É um projeto falido.

E é sempre mais difícil ancorar um navio no espaço.

quinta-feira, janeiro 27, 2022

 "Às vezes, pra ter nascido preto e pobre nesse país era melhor nem ter nascido."

Essa sua frase me assombra. Foi a única vez que conversamos de verdade sobre como esse mundo pesou sobre você, que sei que foi muito mais dor do que posso medir. E acho que talvez você nunca tenha dito pra ninguém desse jeito. Esse mundo é um lixo, e você sabia que eu também sabia disso, mesmo sem ser preto e pobre. Eu odiava ele com todas as minhas forças por estar fazendo aquilo com você, e você sabia. Não tudo, não até o fim, porque a gente é proibido até de dizer. Eu engulo minhas dores hoje como sei que você engoliu tanto, como aguentou calada para sobreviver. 

Eu segurei sua mão e a gente chorou. Que calvário esses assassinos fizeram você passar. Por mais alguns milhares de dólares de lucro. É isso que sua morte foi para eles. 

Você não queria morrer. Eu vi seu medo. Sua dor. Você não queria morrer... queria outra vida. Como Lima Barreto.

Já faz um mês e as palavras ainda me entalam nos dedos, na garganta. Como as lágrimas nos olhos. É um ódio e uma tristeza incomensuráveis, que tenho medo de sentir porque acho que vou explodir ou desmontar.

Toda a minha impotência se fez sentir enquanto eu assisti você definhar, e ser assassinada. Como eu disse um dia, o que eles fazem é levar a tanto sofrimento que a morte vem com cara de alívio. Foi o que outros sentiram. Eu não. Não estou aliviado. Estou puto. Destruído.

Não pude te ver. Me corrói pensar em você lá sozinha, internada como disse tantas vezes que não queria mais. Forçada a "sobreviver", com aqueles cínicos te largando naquele antro, te injetando com lixo. Mais um leito a desocupar em breve. Um número. Sem ninguém poder entrar pra te ver. As "medidas sanitárias" que também tiveram seu quinhão. Mais veneno nas suas veias, para sua própria proteção. E eu vendo, como um pateta. Sem agir, sem falar, sem nada. 

As histórias de horror que você contou do hospital, e que só eu ouvi. Você viu as pessoas sendo torturadas, fugindo, morrendo. O ódio que você aprendeu a ter daquele lugar, a descrença nas promessas de merda que te fizeram. A rejeição ao assassinato que queriam te acelerar com a maldita intubação. 

"Ninguém se cura com esse tratamento". Sim, eu só podia concordar. Porque você já sabia que eu sabia disso. Você estava já ciente, mas não conformada. Aqueles vermes que te comiam viva em busca do último centavo. "Não gasta dinheiro com isso", que dor de ouvir suas palavras resignadas frente a meu ridículo esforço, patético, tentando parar a máquina de morte que já tinha feito seu trabalho.

Eu queria ter lutado mais. Me desculpe... Minhas mãos são tão pequenas. Queria te abraçar e te levar pra longe dali, como quis desde o começo. Que ódio de pensar no que te fizeram. Que ódio de pensar no lugar que esse mundo porco te reservou.  

Eu vivo aqui, mas me sinto mais morto aí. Acho que você tem razão: era melhor nem ter nascido.

Não há descanso em paz. 

sexta-feira, setembro 24, 2021

 Mais um dia em que não vivi

quinta-feira, setembro 23, 2021

 K. conta a história de um pai em busca de sua filha, desaparecida e assassinada pela ditadura.

Às tantas, uma amante de um torturador oferece suas informações. Ela fala sobre ter se apaixonado por um torturador, o que ocorreu quando foi pedir um passaporte falso para salvar o irmão, Zinho, militante perseguido pela ditadura.

"Mas o que importa é que virou paixão. E aí não interessa se o cara é um bandido, se é casado ou solteiro, ou o que seja; não sei se a senhora já viveu uma paixão, se a gente nega, ela só aumenta, vira doença, arrebenta com a gente.

[...] O crime não é se apaixonar, o crime é se negar, um crime contra si mesma"

Há muitos crimes em se apaixonar. Contra si mesmo e contra os outros. Às vezes nossa paixão é um crime contra a pessoa por quem nos apaixonamos; contra quem amamos. É sem saída. Ela diz, no romance, que se nega, ela vira doença e arrebenta com a gente. E diz, também, que ter vivido essa paixão a tornou um monstro para os que a amavam.

"Já estou queimada mesmo, repudiada pelos meus irmãos, sem poder ver meus sobrinhos; marcada como se fosse com ferro quente na testa, como se marcam as ancas do gado no Paraná. Essa marca vai ficar para sempre. Assim como a senhora vai carregar a sua dor até o dia em que morrer, eu também vou carregar essa marca até o dia em que morrer. Meu consolo é que eu salvei Zinho."

Não há saída. Eu vivo em pedaços.