quinta-feira, setembro 27, 2012

Rodas, Sintusp, DCE e o CO sobre cotas

Na terça-feira, após a primeira reunião deliberativa do Conselho Universitário da USP (cuja sigla que o nomeia não é CU, como deveria, mas CO) que pautou a questão das cotas raciais, recebi um informe em primeira mão da discussão feita pela oligarquia da USP, o punhado de professores titulares que decide em nome de todos como gerir o orçamento de mais de 4 bilhões de reais da universidade.
O informe foi dado na reunião aberta da Juventude às Ruas pelo companheiro Pablito, diretor do Sintusp e representante dos funcionários no conselho (eles tem direito a dois!), e também militante da LER-QI. O que ele disse é escandaloso: diretores de unidade da universidade de "excelência", como da Faculdade de Filosofia de Ribeirão Preto ou da Escola Politécnica, dizendo que instituir cotas na universidade seria abrir uma ferida já cicatrizada na sociedade, ou ainda que o racismo no Brasil é mais cordial (sic!) do que em outros lugares. Apoiavam-se, como argumento "teórico", na obra de Gilberto Freyre, cuja ideologia reacionária da "democracia racial" é há décadas tratada com a devida seriedade como algo mistificador e absurdo pelos professores que merecem tal título. Ao lado desse, informou Pablito, desfilavam os argumentos mais sem fundamentos e do senso comum que possamos imaginar, como o bom e velho mantra da burguesia branca de que as cotas rebaixariam o nível das universidades; fato que, diga-se de passagem, já foi comprovado como falso não apenas pelo bom senso, mas também por pesquisas feitas com estudantes cotistas em diversas universidades. Um membro do conselho levou este argumento elitista e escroto ainda mais longe: disse que os estudantes vinham de escolas violentas, sem estarem acostumados ao clima de civilidade da USP, e que poderiam apresentar comportamento agressivo e inadequado ao ambiente universitário. Vê-se logo que, para a aristocracia anacrônica da USP, os negros e pobres são como animais enfurecidos e desordeiros, que devem ser mantidos apenas para limpar a sujeira dos prestigiados intelectuais da universidade. O informe do companheiro foi seguido pela notícia de que mais três jovens moradores da São Remo, favela que fica ao lado da universidade e de onde vêm grande parte dos trabalhadores mais precarizados desta, foram brutalmente assassinados pela polícia. Os "nobres conselheiros" que colocaram a nu suas posições racistas, certamente devem concordar com o "nobre governador" da Opus Dei, Alckmin, que afirmou quanto a mais uma chacina promovida pela PM: "Quem não reagiu está vivo". Ou seja, os jovens "violentos" e inadequados ao "ambiente universitário", só poderiam terminar assassinados pela polícia, cuja função é patrulhar o campus justamente para evitar que a "elite intelectual" do país tenham seus trabalhos acadêmicos perturbados pela ralé. Ainda bem que a polícia faz seu trabalho de exterminá-los cotidianamente!
Este informe da discussão do CO me deixou perturbado, furioso. Mas, ontem, ouvi outro informe sobre a mesma reunião, desta vez dado por Babi, estudante da Letras, diretora do Caell e DCE, e militante do MES/PSOL. O informe dizia que muitas posições se expressaram na reunião, diversas contrárias às cotas, mas muitas outras favoráveis. Que havia uma grande conquista, de um seminário sobre cotas a ser promovido pela universidade. Mas que o "único problema" é que a composição da mesa estava muito "aberta", porque eles não queriam nenhum estudante, e que o movimento tinha que se organizar para poder participar do seminário. Será que ela estava falando da mesma reunião que o Pablito foi? Para o DCE (ou pelo menos para o MES), a reunião foi uma "vitória" porque pautou as cotas, e o "único problema" é a mesa do seminário que a reitoria vai organizar!
Hoje, ao escutar o rádio, tive a oportunidade de ouvir ainda um terceiro informe, diretamente de João Grandino Rodas, no programa "Palavra do REItor". Segundo Rodas, a discussão no CO foi de "altíssimo nível", e, evidentemente se expressaram posições diferentes, mas "com muito respeito", diferente do que ocorre, inclusive, em plenário muito mais "excelsos" (que, para quem não fala a língua excelentissississimamente rebuscada do professor doutor Rodas, quer dizer ilustre) do que o CO. Rodas disse que há anos a questão da inclusão é pautada e debatida nas instâncias da USP (sic), tendo sido pautada já inclusive em um CO "não deliberativo" e agora em um "deliberativo" (e neste momento fez questão inclusive de explicar a diferença). Disse que após o debate de "alto nível" houve um "consenso" de que a "solução" (ele usou esta palavra) neste momento era construir um seminário. Em seguida, Rodas fez um tremendo elogio à civilidade do debate, muito rico e frutífero, e fez aí questão de elogiar a banda da Educafro, que do lado de fora da reitoria tocava animadamente. Disse que eles colocaram sua posição de maneira a contribuir para todos, e disse que ataques pessoais ou a pessoas devido ao cargo que ocupam em nada contribui para o debate. Falou que inclusive está pensando em chamar a Educafro para um espaço onde possam se apresentar para a universidade (vale lembrar a posição absurda da Educafro, que chamou apoio à candidatura de Rodas a REItor porque ele disse que iria pautar as cotas). De sua maneira pomposa, prolixa e grandiloquente, Rodas falou sobre como é importante pautarmos os debates de maneira atual, moderna, com respeito e etc.
Segundo a visão do magnífico REItor, certamente os negros escravizados teriam sido bem mais "modernos" e civilizados se tivessem manifestado seu desejo de liberdade com uma banda na porta da Casa Grande, ao invés de construir quilombos e resistir em armas às bandeiras. Não é à toa que, a despeito de suas diferenças, a estudante do MES e o REItor compartilhem da visão de que a discussão foi muito boa e avançou muito, enquanto Pablito, trabalhador e negro, ressaltou o reacionarismo absurdo dos professores da USP.
A discussão sobre cotas é difícil de ser feita nos termos corretos, e esta dificuldade é principalmente devida ao fato de que por décadas o movimento negro no Brasil (mesmo a parte que não foi diretamente cooptada pelo petismo e a institucionalidade mais mesquinha) tem como grande bandeira central a questão das cotas. Nos EUA, as cotas foram garantidas há décadas porque ali havia um movimento negro fortíssimo e organizado, com setores que tinham posições muito mais avançadas do que aqui. Mas as cotas não foram conquistadas porque eram suas principais bandeiras. Foi uma forma da burguesia fazer uma concessão que é também uma cooptação. Hoje, nos EUA, vemos uma fração da burguesia que é negra, e são os descendentes diretos da política de cotas. Mas em que pessoas como Condoleeza Rice ou Barack Obama fazem com que o povo negro seja mais livre? Eles são negros governando para o capitalismo racista dos brancos, e mantendo a exclusão da maior parte do povo negro (absolutamente necessária para o capitalismo) completamente intocada. É progressivo que uma parte dos negros possa entrar na universidade através das cotas? Sim, claro! Mas pensemos o seguinte: neste ano são cerca de 10.000 vagas na USP, com cerca de 155.000 inscritos na Fuvest. Vamos supor que a USP adotasse as cotas aprovadas pelo STF, de 50% para negros. Seriam 5.000 negros a mais na USP. Das 145.000 pessoas que ficariam, ainda assim, do lado de fora da universidade, quantos porcento são negros? Quantos porcento são filhos de trabalhadores? A educação é um direito que temos que defender através da luta, e não negociar as migalhas que a burguesia está disposta a nos dar. Temos que lutar para que todos os negros tenham direito a estar nas universidades, a ter uma escola decente no ensino fundamental e médio. A riqueza para isso já temos há muito tempo. A questão é decidir qual é a nossa luta: nos pautaremos pela miséria que achamos mais fácil arrancar da burguesia, ou pelo que é justo, necessário e possível conseguirmos através da luta e organização do povo negro ao lado da classe trabalhadora e da juventude?

terça-feira, setembro 11, 2012

5 meses: você é minha dor

Foram 5 meses desde sua morte. Nos dois anos que estivémos juntos, ficamos no máximo um mês sem nos ver. Resolvi hoje escrever como se fosse para você, ainda que nunca vá ler minhas palavras. Já pensei muitas vezes sobre o conforto das pesssoas que acreditam em qualquer tipo de sobrevivência, se eu seria mais feliz com esta ilusão. Acho que as pessoas precisam de conforto, sim, todas elas. Mas esta possibilidade de acreditar na sua existência simplesmente não existe para mim; até me sinto meio idiota escrevendo para "você". Isso não significa que eu não tenha algo para me apegar, para me confortar da terrível perda. Já sabe: é pensar que a sua breve vida e a minha estão a serviço de algo maior; que um dia a humanidade vai sair de sua pré-história, e que sua morte e sua vida não terão sido em vão.
Acho que nestes cinco meses a grande questão tem sido entender sua morte. Não no sentido mais, digamos, "simples", de pensar porque você resolveu acabar com sua vida. Isso não é tão misterioso para mim, ainda que as causas do seu sofrimento sejam (como até para você). Entender sua morte é fazer com que ela faça um sentido maior, se encaixe em algum lugar minimamente aceitável para tornar a perspectiva de nunca mais te ver menos insuportável. 
Há duas partes nisso, acho: é possível encontrar um lugar para a sua morte. Mas isso não faz dela algo simples ou confortável. A dor, como eu já entendi há algum tempo, permanece. Entender a sua morte é entender como esta dor vai fazer parte da minha vida daqui pra frente.
A dor muda, tem vários lados, várias formas. Ainda é muito difícil para mim, mas espero que um dia consiga, lembrar de você e me alegrar. Ficar feliz de poder ter compartilhado o tempo que tivemos juntos. Ainda não sou capaz; sua lembrança é terrivelmente dolorosa, ela me lembra da sua ausência com muita intensidade. Mas já há algo que sou capaz de fazer e que antes era apenas uma vontade: transformar esta dor em motivação. Sentí-la como minha própria ferida do que é o capital e a sociedade em que vivemos.
Nunca pretendi, e aliás sempre combati, aqueles que viram na sua morte uma expressão crua e mecânica da torpeza do capitalismo; é reduzir demais a sua dor, não entender suas múltiplas causas e determinações. Mas também é impossível entendê-la sem ver a podridão deste mundo. E sem pensar que se as coisas fossem outras, poderíamos ter te ajudado muito mais.
Há algumas pessoas, tão longe, que tem me ajudado a entender o lugar disso: Tala e Natalia. Me surpreendeu a falta que elas sentem de você. São pessoas que carregarão, como eu, sua memória a cada dia. Que sentem sua falta a cada dia, ainda que há muitos anos não pudessem mais conviver com você. Não é à toa. São pessoas que conviveram com você ali onde era mais árduo; que acharam em você a possibilidade de um outro mundo, uma outra vida, de gente que não era como aquela expressão mais profunda da degradação moral e humana que o capitalismo impõe às classes dominantes também. Você é um símbolo, que elas vão carregar pra sempre. Você é uma esperança, que vive para além de si mesma.
Para mim também: foi, é e será uma dor e uma esperança. A dor de ainda viver em um mundo tão torpe; a esperança e a motivação para seguir lutando e mudá-lo. Sei que você viu em mim também a motivação para lutar, que viu em mim a possibilidade de mudar coisas que te incomodavam até mesmo entre camaradas. Que apostava em mim. E eu vou dar o melhor de mim para honrar sua memória, que é também a memória de tantas e tantos que tombaram em combate.
Eu te amo, para sempre. Aos cinco meses, carrego sua dor comigo todos os dias; mas também sua esperança. Elas nunca vão me abandonar.