sábado, fevereiro 16, 2013

Carta aberta de um estudante denunciado e suspenso, aos calouros da Letras


Caros calouros,

Queria antes de tudo dar as boas vindas a vocês a esta universidade. Vocês estão entrando em um curso que, apesar de seus imensos problemas, tem muitas coisas boas para quem souber aproveitar. Digo isto com a propriedade de quem ingressou no curso há algum tempo, fez a graduação e a licenciatura, e hoje cursa a pós-graduação. Estudar em uma universidade como a nossa deveria ser um direito de toda a população; afinal, todos a financiam através do ICMS – um imposto regressivo, ou seja, os pobres pagam proporcionalmente mais do que os ricos. Mas, como disse Kant: Todo direito que não é universal torna-se um privilégio. E, infelizmente, é esta a realidade das universidades públicas no Brasil hoje: são um privilégio para poucos.

Assim, acredito que quando ingressamos aqui assumimos também uma grande responsabilidade; de lutar para que esta universidade seja, de fato, pública em todos os seus sentidos. Isso significa questionarmos desde seu acesso – hoje negado à imensa maioria do povo trabalhador, dos pobres, dos negros, pelo vestibular, que nada mais é do que um filtro social travestido de uma prova que atestaria o “mérito” ou a “capacidade” de estudarmos aqui. Mas também questionarmos todo o resto: o conhecimento aqui produzido, seus critérios, a serviço de que(m) ele está, a forma como tudo é decidido na universidade e até mesmo o acesso ao espaço físico do campus Butantã.

Quando entrei aqui, conheci esta responsabilidade e, a partir de meu contato com o movimento estudantil, o movimento de trabalhadores, as greves em defesa da educação, fui progressivamente vendo a importância destas lutas e a necessidade de participar delas. Posso dizer que aprendi tanto ou mais fora das salas de aula do que dentro delas, vendo como se dá na prática a disputa por um projeto de universidade (ou, se quisermos usar um termo bastante expressivo, mas que é escondido de nós porque afirmam de maneira cínica ser “ultrapassado”, fui vendo como se dava a luta de classes dentro da universidade).

Foi por causa desta responsabilidade que fui preso, no dia 8 de novembro de 2011, junto a outras 71 pessoas, que incluíam estudantes, funcionários e apoiadores, na reintegração de posse levada a cabo na reitoria da USP por 400 policiais fortemente armados. A ocupação da reitoria da USP era contra a presença da polícia militar no campus, e os motivos dos estudantes foram sistematicamente deturpados pela mídia, pela reitoria e pelo governo. Alckmin, após nossa prisão, disse que precisávamos de uma “aula de democracia”.

Antes de entrar na USP eu acreditava, como talvez a maioria de vocês ainda acredite, que a polícia servia para proteger as pessoas. Contudo, descobri já no meu primeiro ano que seu papel é bem distinto: em uma sociedade dividida em classes sociais, onde alguns sobrevivem da exploração do trabalho de muitos, ela serve para manter as coisas tal como são: os pobres em seu lugar. Não à toa, a polícia de São Paulo é uma das mais assassinas do mundo. Aqui na USP ela entrou para reprimir o movimento estudantil e de trabalhadores, para legitimar medidas autoritárias e arbitrárias como a demissão inconstitucional (pois foi feita sem sequer um processo no ministério do trabalho e por motivos políticos) do diretor do Sindicato de Trabalhadores da USP (Sintusp), o Brandão; ou a expulsão recente de seis estudantes que lutavam por mais vagas na moradia, um direito elementar de permanência estudantil que é a única forma de garantir o acesso de muitos à universidade. Contudo, fora da universidade a polícia é ainda pior; logo aqui ao nosso lado, na favela da São Remo, vizinha à USP, podemos ver exemplos cotidianos disso. No carnaval de 2007, Cícera, uma trabalhadora terceirizada da  lanchonete da Faculdade de Educação, recebeu uma “bala perdida” de um policial e morreu. A prova do crime “sumiu” dos arquivos da polícia e seu assassino foi inocentado pelo Estado. Neste ano, o adolescente Genilson, de apenas 15 anos, que era aluno de uma amiga minha em uma escola do Rio Pequeno, foi assassinado pela polícia também na São Remo. São pequenos exemplos de uma prática cotidiana de uma polícia que vem matando uma média de 16 pessoas por dia nos últimos meses, em especial a juventude pobre e negra das periferias (os mesmos que não podem estudar na USP).

Porque eu sou contra a presença desta polícia no campus, porque eu sou a favor da democratização da universidade, porque eu sou contra a violência praticada pela polícia nas periferias, porque eu defendo a liberdade de organização política de estudantes e trabalhadores, eu estou sendo acusado de forma completamente injusta pela reitoria e pelo ministério público. Aplicaram-me uma suspensão de cinco dias – e a outros colegas de quinze – com base no “código de ética” e em um decreto (52.906 de 1972 no Estatuto da USP, recomendo a leitura) que data da ditadura militar e proíbe na universidade manifestações políticas e “atentados à moral e aos bons costumes”. A aberração jurídica da denuncia do ministério público é gritante, com acusações absurdas de formação de quadrilha. Pois é assim que tratam agora quem não se cala e se manifesta contra o que é injusto.

Escrevo esta carta para vocês por alguns motivos: para esclarecer os motivos destas punições e a arbitrariedade e injustiça da acusação que pesa sobre mim e tantos outros; para chamar a que vocês, ingressando na universidade, não se esqueçam que hoje têm acesso a um privilégio que deveria ser um direito, e assumam a responsabilidade por isso; que saibam que o primeiro passo para lutar por democracia nesta universidade é a defesa dos que hoje são perseguidos por lutar por isso. E, por fim, e talvez mais importante: para que não tenham medo. Este é o principal objetivo de nossos acusadores: calar a voz dos que lutam. Intimidar, assustar e acuar todos os que possam protestar contra as arbitrariedades, autoritarismo e injustiça. Não se calem, não se resignem, não se tornem apáticos, e nem sejam cooptados pelos “privilégios” de estudar na USP. Por isso, chamo todos a se mobilizarem contra as punições hoje em curso, pela reintegração dos estudantes já expulsos e de Brandão.

Coloco-me à disposição para conversar com todos os que queiram.

Fernando Pardal.