sábado, abril 14, 2018

As flores ceifadas de nosso jardim

Seis anos. Mais uma vez queria lhe dizer coisas que não posso. Digo-as à tela, a essas páginas esquecidas.

Durante esse ano minha dor e a ausência inescapável tiveram uma companhia, triste e inesperada. Nas palavras de quem sofreu talvez a mais dura das perdas, a perda de uma filha. Uma pequena flor, um broto arrancado, sem florescer, a raiz arrancada de uma Violeta que não pudemos ver crescer.

E quantas vezes não chorei na dor da partida da Violeta, na dor impossível de uma mãe que tão subitamente se vê sem a criança que acalentou com toda sua dedicação. Quantas vezes não vi nessa dor um espelho da minha.

O amadurecer de uma dor, o luto, é uma coisa que não se mede. Me indigno ainda e sempre com as réguas de uma medicina que quer marcar os dias e contar os prazos de nossa dor. 15 dias, é o tempo que nos é permitido sofrer (e olhe lá, porque você precisa trabalhar enquanto sofre).

Essa medida imensurável é um mistério que nos engole: quanto tempo vai demorar pra que eu consiga voltar a viver? E é uma ambiguidade terrível, que nas palavras da Marília vi tal como em mim mesmo. Será que poder viver novamente não é uma traição? Se a dor se transforma, não estou deixando para trás algo que deveria estar marcado a ferro e fogo, e sempre, e tanto? A gente se marca na pele para dizer que estamos marcados na alma. Uma marca que não se apaga.

E a gente sabe que não vai esquecer, que não vai passar. E não demora muito pra entender que a dor não vai embora. E olha um pouco indignado pro mundo, indignado porque, diferente da gente, ele não parou de girar. As pessoas vão vivendo suas vidas. No primeiro mês, todo mundo falava, todo mundo lembrava. Depois vai passando, vai ficando uma dor só nossa. E é como se tivéssemos parado no tempo.

De certa forma, sempre vamos ficar parados no tempo. Quando me pego chorando por um luto que já tem seis anos, como se tivesse sido ontem o dia da partida, já não me surpreendo que um pedaço meu ficou nessa dor. Que eu inteiro fiquei nessa dor, que não passa nem vai passar. A dor pode matar, e se a gente deixar ela nos leva embora. Eu vi, de longe, os seus pais partirem. E sempre me perguntei o quanto disso não era a dor que ficou. A dor que você já sabia que ia deixar pra trás quando partisse.

Eu vejo a força da Marília na luta por seguir a vida. Sem conseguir sorrir do mesmo jeito, mas sem se dobrar diante da dor. Uma coragem imensa, na qual me inspiro. Às vezes a gente já nem sabe mais porque resiste, mas resiste. Tem um pedaço de vida na gente que teima em viver.

Escrever é uma forma de tentar sobreviver. E mais uma vez eu vi muito da minha dor, nos textos que iam tentando dar forma, dar sentido pra esse sofrimento. Todos os dias. Depois a cada mês. Depois, uma hora, acaba passando um dia sem. E aí a gente até se sente culpado. Como se estivesse esquecendo. Como se tivesse deixando pra trás aquela dor, que, parece, é a única coisa que sobrou pra gente se apegar. Se perdermos a dor, perdemos tudo que nos restou. A gente quase se sente culpado por estar vivo. E por ter deixado escapar um sorriso em algum momento. Como pude sorrir? Como pude deixar de escrever naquele dia, mesmo tendo lembrado, como pude deixar pra depois? Ou não escrever? A gente sente às vezes que se não fala disso está deixando o mundo esquecer, e deixando o que ainda temos daquela pessoa partir.

Às vezes dá vontade de não ter continuado. Às vezes a gente ainda é só dor. E, não, passar ela não passa. Mas é como se se diluísse nessa coisa chamada tempo, que queira ou não vai se infiltrando e comendo pelas beiradas. Quando arrancam as flores do nosso jardim, ele nunca mais é o mesmo. A gente pode plantar outras. A gente pode regar aquele espaço vazio com as palavras que destilamos dessa dor. A gente faz o possível para viver. Mas mesmo com o tempo se infiltrando, aos poucos, por entre essa dor que tudo toma. Mesmo com as coisas da vida lutando até arrancar um sorriso. Mesmo que de fora olhem e digam que a gente já tá melhor, quando a gente olha para dentro muitas vezes a certeza é de que não estamos. É como tentar diluir óleo jogando água no copo. Eles não se misturam. Permanece ali, inteiro. Escondida, mas viva, está essa dor.

Conseguir viver, apesar de tudo, talvez seja nossa melhor homenagem. Essas flores arrancadas de nosso jardim sempre terão ali seu lugar, onde nada mais vai crescer. Mas cultivamos sementes de esperança e de vida. E elas crescem também por vocês.



The powers that be
That force us to live like we doBring me to my kneesWhen I see what they've done to you

Well, I'll die as I stand here todayKnowing that deep in my heartThey'll fall to ruin one dayFor making us part

I found a picture of you, o-o-oh, o-o-ohThose were the happiest days of my lifeLike a break in the battle was your part, o-o-oh, o-o-ohIn the wretched life of a lonely heart


Now I'm back on the train, yeah
O-oh, back on the chain gang