terça-feira, maio 22, 2012

A dor e as cicatrizes


Toda cicatriz começa com uma ferida. Quanto mais profunda for a ferida, mais marcante será a cicatriz. Uma marca, irremovível, que muda para sempre sua feição; que deixa à mostra, visível e exposta, uma parte de você. Que coloca ali aos olhos do mundo uma pergunta: de onde vem esta marca? O que ela representa? O que ela muda?
As feridas podem ser omitidas. As cicatrizes não, estão estampadas em nosso corpo. Cobrimo-las com roupas, adereços. Para trabalharmos, para podermos estar em uma sociedade que finge não haver feridas, para evitarmos as perguntas, cobrimo-las com band-aids, com mentiras.
Feridas em nosso psiquismo deixam cicatrizes também; algumas, ainda que mais visíveis e indisfarçáveis, são mais fáceis de cobrir com mentiras. Quem vê nossa mente em funcionamento raramente se pergunta como suas marcas surgiram. Nossos segredos são nossas feridas, nossas cicatrizes estão ali: visíveis e invisíveis para quem quer que nos veja. A nossa história nos torna, em um mundo doente e distorcido, tal qual um retrato de Dorian Gray, uma forma disforme por baixo de uma fachada de mentiras.
Quando a morte em sua nudez me rasgou uma ferida pulsante e aberta, algumas pessoas me abriram a história de suas cicatrizes. Como as crianças que comparam seus ferimentos, eu ouvi sobre as feridas, invisíveis em um mundo onde há tanta dor, que quase toda ela nos passa despercebida.
Aline, no dia em que bebia para aplacar a dor – o álcool, no fim das contas, assim como todas as drogas de hoje, só pode ter tamanha popularidade explicada pelo anestesiamento do corpo e da mente que ele promove – me revelou, com um sorriso torto, entre uma cerveja e outra que servia em nossa mesa, sua própria ferida; invisível. Eu lhe abri a minha primeiro: uma pessoa que amava de uma forma ainda inaudita havia morrido, colocando para fora em um último ato de sofrimento o seu silêncio final; enfim, as dores sobrepujaram a força para vencê-las. Aline revelou-me que havia tentado pôr fim às suas próprias dores também; cinco vezes. Me deparei com o choque de pensar nas cicatrizes invisíveis que desfilam todos os dias diante de nossos olhos anestesiados. Pouco depois, ainda com a ferida aberta, ouvi uma palavra de consolo com uma lógica absurda, tanto quanto o próprio mundo que a gerou. “Você vai conseguir passar por isso. Eu já passei quatro vezes.” Uma pessoa que amo, que viveu perto de mim a vida inteira. Quatro pessoas de sua família cometeram suicídio. Andou com suas cicatrizes coladas aos meus olhos por décadas, e eu simplesmente não vi as feridas que as causaram. Por onde quer que se repare, não com os olhos anestesiados pela demente naturalização da dor de um mundo torpe, mas com os olhos de quem possa vislumbrar um mundo onde possamos ser humanos de fato, veremos as cicatrizes deixadas por tantas e tantas feridas. Ignoramo-las, dia após dia, para podermos prestar atenção ao que é desimportante e que nos permite sobreviver. E agradecer – pois não nos resta outra saída – a cachaça de graça que a gente tem que engolir.
Quero sentir no corpo a dor que me mata por dentro. Foi isso que ela me disse uma vez. Sentia dor demais para caber dentro de si; dor demais para uma pessoa. Cicatrizes cobriam sua pele, cobriam sua vida. Eu me marquei com seu nome, querendo me ferir, querendo deixar em mim a cicatriz de sua morte, de sua vida apagada por um mundo triste. Ela ia ao encontro da dor, foi à Bósnia ver até onde pode chegar a barbárie humana. Um mundo tão doente, em que não vemos as feridas e nem mesmo as cicatrizes, uma verdadeira máquina de destruição humana em curso. Campos de estupro em massa, cerca de 70% da população masculina dizimada. Uma cicatriz gigante, que rasga a feição de um povo, de gerações. Ela foi, para ver o sofrimento de perto.
Uma cicatriz, hoje quase apagada, foi nossa primeira aliança. A cicatriz que fiz em mim, hoje ainda uma ferida, fechando-se, foi meu presente de despedida. Para mim mesmo, pois seus olhos fechados, matéria inerte em decomposição, já não veem mais nada. A dor foi boa, pois eu sentia no corpo a dor que me mata por dentro. Mas foi curta e passou. A ferida no corpo está cicatrizando. A ferida em minha mente permanece aberta, pulsante. Uma parte da dor foi enterrada com ela; uma parte que a ninguém era acessível. Outra, nos deixa de herança; uma herança difícil de administrar.
O desafio é permanecer de olhos bem abertos. Ver as feridas, as cicatrizes. Questioná-las, enfrentá-las. E não deixar que elas nos paralisem. Não deixar que elas nos matem. Fazer das cicatrizes a pintura de guerra contra o mundo que as fabrica em uma escala imensurável. Nossas cicatrizes são pequenas diante do mundo. E o mundo, pequeno diante de tantas feridas. Perdemos batalhas a cada dia. E destas derrotas, precisamos pavimentar o caminho para vencer. Não para nós mesmos, já desfigurados por tantas marcas. Mas para aqueles que ainda não foram marcados, feito gado, com o ferro em brasa de um mundo que se apropria daquilo que poderíamos ser para nos levar ao abatedouro. Quero tomar suas cicatrizes para mim, para erguê-las como uma bandeira vermelha de indignação. Sua voz, mesmo extinta, não se calará diante de tanta dor. Carrego estampada na mente a frase de nosso camarada, que não teve poucas cicatrizes em sua luta: “aqueles que lutam com mais energia e persistência pelo novo são os que mais sofreram com o velho.” E a vida dela, a morte dela, minha cicatriz.

Momento num café


Quando o enterro passou
Os homens que se achavam no café
Tiraram o chapéu maquinalmente
Saudavam o morto distraídos
Estavam todos voltados para a vida
Absortos na vida
Confiantes na vida.
Um no entanto se descobriu num gesto largo e demorado
Olhando o esquife longamente
Este sabia que a vida é uma agitação feroz e sem finalidade
Que a vida é traição
E saudava a matéria que passava
Liberta para sempre da alma extinta