segunda-feira, abril 20, 2020

bananinha



Outo dia achei uma bananinha em meio às minhas coisas. Aquelas: doce de banana, cozida, com açúcar em volta. Ela estava junto com uma goibada, de tamanho semelhante, de mesma origem: o bandejão.

A goiabada, eu comi, numa hora dessas de tristeza e jejum prolongado. A bananinha não.

Ela era um presente. Não desses que tem data certa, obrigação ou etiqueta social que te induz a dar, pensar no que a pessoa quer ou comprar algo genérico que serviria a qualquer pessoa em qualquer data, e, por obrigação social, pelo bem da circulação de mercadorias, pela manutenção da economia e para atestar a eficácia das estratégias de marketing que rechearam nossos calendários de datas "especiais", se dá.

Não era, mesmo porque nessas datas não se dá uma bananinha. Em um Natal, se uma mãe presenteia sua filha ansiosa por uma Baby Alive com uma bananinha, ela sem dúvida se frustraria. Não era a bananinha que a menina desembrulhava no Youtube, nem que a amiga exibia lhe fazendo inveja. Não, ninguém produz nas mentes das crianças uma cuidadosa ânsia por bananinha, sustentando a roda da mercadoria e do desejo.

Nem, na verdade, se dá uma bananinha de aniversário à sua mãe, ou mesmo de dia das mães. Nas propagandas, aquelas emocionantes que dizem quão importante são as mães, ninguém se emociona com uma bananinha. Os perfumes, roupas, chocolates caros são os objetos de desejo, só eles mostrarão quão especial é sua mãe.

A bananinha, esse pequeno doce industrializado e embalado em plástico, foi produzido pela "Castelo de Chaves", indústria e comércio de alimentos, em Jacupiranga, interior de São Paulo. Banana, açúcar a ácido fosfórico a compõem. Produzida sem nenhum carinho, e não pelas mãos de uma dedicada vovó, ela foi feita numa linha produtiva industrial por operários explorados, de quem se extraiu a bananinha e a mais-valia. Vendida em lotes para a Universidade de São Paulo, ela chegou ao bandejão, onde foi distribuída por outros peões, dessa vez os trabalhadores do Restaurante Central, num almoço como outro qualquer. Um estudante, uma bananinha. Muitos não pegam a bananinha: não gostam do doce. Outros a pegam, e a comem indiferentes.

Essa não. Ela foi pega, guardada. Depois, foi dada de presente. Como quando você vê uma coisa bonita, e isso te alegra, porque te lembra de uma pessoa que você ama. E você guarda aquela coisa, como quem zela por um amor. Porque se lembra do brilho de um olhar, um detalhe qualquer, que ninguém mais notaria, quando a pessoa viu uma coisa daquela. Como quem lembra de uma preguiçosa tarde de sábado, num restaurante, quando uma pessoa comprou uma bananinha. Um doce, de uns 2 reais.

Sabe quando você lembra de como uma pessoa mexe sua mão quando fala, do barulho que ela faz quando fica sem jeito ou te desdenha, ou do jeito que a boca dela mexe quando sorri, e você suspira? Assim, às vezes, são as pessoas com uma bananinha. E ela, quando te é dada de presente, vale mais do que qualquer desejo fabricado escrupulosamente por um publicitário. Naquela bananinha está concentrada a mais autêntica declaração de amor.

Um amor é repleto de bananinhas, quando é sentido de verdade. Porque por toda a parte aparecem as "bananinhas": a pessoa que ocupa seus pensamentos é cheia de detalhes, prontos a serem percebidos, e tudo ao redor irá te lembrar dela. Os pequenos presentes do dia-a-dia, as pequenas coisas que se faz. Mensagens, poemas, canções, olhares, piadas internas, jogos. A paixão é feita de bananinhas. E, por isso, as comemos, sem pena; hoje há uma bananinha, cujo gosto é muito melhor do que a de uma comprada por aí ou ganhada de um trabalhador do bandejão. Amanhã haverá outra a nos manter incandescente a alma.

Mas quando as bananinhas cessam, aí as coisas mudam. Cada bananinha é um pequeno tesouro de um passado perdido, de quando ainda se era feliz. Como num casamento onde já não há amor, e se olha para uma foto em que os olhos brilham se encontrando, e toda a intensidade daquela paixão, toda aquela felicidade tem o efeito de uma lança em brasa entrando no peito. Às vezes, nesses casos, é a dor por um amor que já morreu. Mas essa, não: a bananinha é a dor de ainda sentir a alma em brasa. De ainda esperar navios.

Na sua embalagem, meio apagada, mal se lê uma data de validade que parece dizer: 12/20. Ao ler isso, dói ainda mais pensar que o ácido fosfórico talvez tenha maior poder conservante do que minhas ações desastradas, e que a bananinha industrializada pode durar mais do que o amor.

Eu não consigo comê-la, é patético. Tenho vontade de segurar a bananinha e chorar, lembrando de quando me foi dada. Lembrando da tarde de sábado em que alguém me amava tanto a ponto de prestar atenção num detalhe ínfimo, de que eu gostava de bananinha. Que alguém me amava tanto a ponto de ficar feliz ao ganhar uma sobremesa qualquer, porque poderia guardá-la para dar de presente. E que seria o melhor presente.

Não consigo deixar de lembrar de quando perdi uma pessoa que amava em um trágico suicídio. Ela deixara na minha casa uma pasta de dente, que não conseguia usar, nem jogar fora. Ridiculamente, repetia para mim mesmo que "ela não é a pasta de dente", tentando avançar com passos de formiguinha em meu luto. Um dia, a pasta de dente se foi. Já nem me lembro como.

No inconsciente não há tempo, dizia Freud. Um trauma da infância pode ficar ali, congelado, como um fóssil preservado embaixo da terra, por anos, até vir à tona e rebentar em suas poderosas consequências como se o acontecimento fosse hoje. O recalque o preserva, os sintomas o transformam. Não sabemos o tamanho de nossas dores, nem tampouco importa tanto o tempo em que a sentimos. Um mês pode te parecer um nada. Já há mais de um mês amargamos a devastação de uma pandemia, e no entanto esse mês mudou a cara do mundo, e está criando traumas em nossa sociedade que podem rebentar com a força devastadora de um retorno do recalcado.

Uma bananinha se ganha em um dia. O significado dela não está nesse dia. Mas um mês é o suficiente para ganharmos bananinhas que podemos passar uma vida inteira sem conseguirmos digerir.

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