segunda-feira, novembro 16, 2015

Mais uma despedida

Às vezes parece mesmo que nunca acaba de caber mais dor no coração.

E que mundo maldito é esse que nos deixa, depois de uma vida de luta, de superação, de persistência, que nos deixa largados no canto, acuados, sem ver saída em nenhuma parte.

Esse mundo nos tirou ontem a Márcia Melo. Nesse meu ano, a segunda pessoa que eu estimava e que tirou sua própria vida. No ano de uma de suas amigas mais próximas, também foi a segunda pessoa. Nesse mundo que cerca a gente de miséria por tudo o que é lado, foi mais uma entre milhares.

Essa distância e impotência sempre calam fundo no peito. A última vez que falei com a Márcia faz uns dois anos. Ela era uma pessoa especial. Quando a conheci, tinha dezenove anos. E foi uma das pessoas que, com uma sensibilidade, inteligência e percepção raras, me deu um pouco do que eu precisava para ser gente.

Márcia teve que virar gente grande cedo. Com catorze anos saiu de casa para enfrentar o mundo. Casou, teve filha, separou, criou a filha, casou de novo, teve filha, enviuvou, criou a filha. Na unha. Na raça. Sem ajuda do estado, sem ajuda dos homens, sem ajuda desse mundo.

Lembro das conversas, café e cigarro. Lembro, tudo em perspectiva nova, das brigas com a filha mais nova. Que mundo cão. Que uma mulher incrível como essa se encontre nesse beco escuro, que tome a decisão mais dura. Que nos deixe, assim. Eu, mais uma vez, fiquei aqui sem poder dar um adeus. Sem poder ter dito a Márcia que, apesar da distância, apesar da dureza do mundo, apesar da minha inabilidade tão humana em estar perto, eu a amava. Apesar de nunca ter lhe dito, que pedaço tão grande de sua influência mora em mim.

Ela me encorajou, desde sempre, a procurar meu próprio caminho. Ela procurou; lutou, sofreu, perseverou: ela fez por onde para achar o seu caminho. Há quem vá dizer com desdém, como sempre, que ela fugiu. Há quem vá dizer de lado, que nada tem com isso. É desse tipo de hipocrisia, de indiferença mórbida, de insensibilidade obtusa, que são feitas as dores do mundo. Esse mundo podre se regozija ao nos ver passando por alto o que tomba ao nosso lado.

Há uns cinco  ou seis anos, eu, jovem e despreparado para qualquer coisa, conversei com a Márcia quando ela se postava à beira do precipício e olhava, pensando no salto. Não sei que diferença fiz pra ela naquele momento; mas sei que ela não pulou, e que aquilo foi uma das marcas profundas que ela deixou em mim. Não sabia que o suicídio seria uma ferida tão longitudinal e perene na minha vida, sempre me colocando frente à dor desse mundo. Já intuía a sabedoria sofrida que se escondia naquela mulher tão jovem, tão velha, tão cansada, tão dura.

Onde o caminho de Márcia a levou? No que dependeu dela, sei que cada passo foi batalhado e valeu. Mas o peso desse mundo é demais para uma mulher, independentemente do quão incrível e forte possa ser, carregar sozinha nas costas. Essa morte é mais uma dor que carrego comigo. Que sei que há mulheres que levam em sua luta a inspiração desse combate duro, árido, mas sem trégua e vacilação, que foi a vida da Márcia. Nós a colocamos na conta de todo esse sofrimento, e não vamos perdoar ou esquecer. Nem vamos deixar de amar o que você foi para nós, mesmo que só nesses breves intervalos que conseguimos furar o cerco dessa lama que nos cobre.

E, nas últimas vezes que conversamos, foi sobre as lutas de 2013. Márcia se entusiasmou, sentiu a vida fluir com a tomada das ruas. Se separou de amigos, conservadores, espumantes raivosos. Ela estava ao lado da vida, da juventude, da luta. Nos aproximamos novamente com isso, e a força dela era mais uma vez uma inspiração, dessa vez no calor da luta. Sua morte é a contracara disso. É o sinal, paradoxal, de que Márcia não se resignaria a ser uma velha abandonada no canto, tratada como louca, tratada como quem não sabe do que a vida é feita. Ela não se resignou, mas não viu outra saída. É essa saída que temos que procurar; a saída desse beco escuro, desse mundo torpe.