sexta-feira, maio 08, 2020

A goiabada e o futuro

Arranco dela uma fina fatia e,
sentado à mesa, como devagar
sonhando com um futuro
pleno de goiabadas,
discussões e textos,
beijos e planos,
à meia luz.

Fecho os olhos e tento sentir
a mesa da sala, o peso no colo,
o cheiro e o toque na penumbra
num colchão ao chão sobre o qual
todo o futuro parecia inesgotável
e morava, o mundo inteiro, no fundo dos seus olhos

Arrancar finas fatias de goiabada,
como quem consome as lascas doces de um futuro
que ficou ali, guardado na geladeira,
junto com os planos de retomar o que ficou
congelado.

Comer, engolir uma fatia desse futuro
como esse sonho, que raciono em pequenas doses de esperança
tal qual o náufrago que, na ilha deserta, come apenas o necessário a cada dia
projetando no futuro o seu resgate incerto antes que acabem suas provisões
pequenas fatias de esperança e goiabada, que como para adoçar os dias,
que como para aguentar a vida, mais um pouco apenas, porque, quem sabe,
esse futuro ainda pode estar ali, escondido no horizonte,
como as velas de um grande barco que surge sabe-se-lá-de-onde
para o resgate que parecia impossível.
E, pensando no amor incerto,
lembro-me do grande poeta,
que nunca cessou de cantar o amor e o futuro,
unindo-os em um só sonho de liberdade e vida:

Vosso Trigésimo Século
ultrapassará o exame
de mil nadas,
que dilaceravam o coração.
Então,
de todo amor não terminado
seremos pagos
em inumeráveis noites de estrelas.
Ressuscita-me,
nem que seja só porque te esperava
como um poeta,
repelindo o absurdo quotidiano!
Ressuscita-me,
nem que seja só por isso!
Ressuscita-me!
Quero viver até o fim o que me cabe!
Para que o amor não seja mais escravo
de casamentos,
concupiscência,
salários.
Para que, maldizendo os leitos,
saltando dos coxins,
o amor se vá pelo universo inteiro.
Para que o dia,
que o sofrimento degrada,
não vos seja chorado, mendigado.
E que, ao primeiro apelo:
– Camaradas!
Atenta se volte a terra inteira.
Para viver
livre dos nichos das casas.
Para que doravante
a família seja
o pai,
pelo menos o Universo;
a mãe,
pelo menos a Terra.


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