quinta-feira, agosto 29, 2013

Medicina, racismo e elitismo no Brasil: uma combinação de classe feita para matar



Me perdoem se for preconceito, mas essas médicas cubanas têm uma cara de empregada doméstica. Será que são médicas mesmo? Afe, que terrível. Médico, geralmente, tem postura, tem cara de médico, se impõem a partir da aparência... coitada da nossa população. Será que eles entendem de dengue? E febre amarela? Deus proteja o nosso povo.

- Michele Borges, jornalista em seu Facebook.

Eu estive lá, eu vi de perto quem são e como se formam as pessoas que se juntaram por um instinto de auto-defesa corporativa para chamar os médicos cubanos de “escravos”. Passei mais de um ano estudando medicina com estas pessoas, e posso afirmar que foi uma experiência que marcou minha vida. Me ensinou muito concretamente algo que eu viria a aprender teoricamente apenas alguns anos depois: que a sociedade em que vivemos é dividida em classes, com interesses antagônicos e irreconciliáveis.

Quando estive em uma faculdade privada de medicina, a Unisa, nos anos de 2003 e 2004 eu não era comunista. Estava muito longe disso. Era petista, acreditava que a única possibilidade que restava à humanidade era fazer do capitalismo o menos pior que ele pudesse ser. A verdade é que eu pensava assim porque havia crescido e passado toda a minha adolescência na bolha da pequena-burguesia, e isto me impedia de ver o mundo tal como ele é; contudo, todo tipo de alienação e limitação em minha visão política que eu pudesse ter por conta de minha condição de classe era algo que se relativizou muito quando entrei na medicina: para os parâmetros de lá, eu era um subversivo total. Eu não sabia disto até o primeiro dia de aula...

Meu primeiro “ato subversivo” na faculdade foi ter cabelo comprido. Segundo fui informado aos berros por um estudante do sexto ano, que insistia também que eu “não tinha direito” de olhar para seu rosto enquanto ele falava comigo porque eu era um “bixo”, o fato de eu ter cabelo comprido não apenas não era uma “postura adequada” para um profissional médico, como também um ato de arrogância, afinal “quem eu pensava que era” para não cortar o cabelo como todo mundo havia feito. Estas duas “acusações” me foram repetidas algumas dezenas de vezes nos meus primeiros dias na faculdade, quando eu era literalmente escoltado por dois seguranças privados entre os três que haviam sido contratados pela faculdade para “impedir trotes” depois que a Unisa foi processada pelos pais de uma caloura, e que outro calouro teve queimaduras na virilha após terem jogado querosene nele porque ele era um “bixo rebelde”. Quando me acusavam de “arrogante” porque eu supostamente “me achava melhor do que os que haviam cortado o cabelo”, a minha resposta era bastante simples: “mas eu acho que ninguém deve ser obrigado a cortar o cabelo”. Meus “superiores” da faculdade ficavam estupefatos...acho que nunca tinham pensado em uma possibilidade tão subversiva! Como assim? É a tradição! Você entra, toma trotes e depois os aplica. Assim você aprende quem manda e quem obedece. E você obedece para depois mandar. É a hierarquia.

O racismo nojento que se expressou nos gritos de “escravos” contra os médicos cubanos tampouco é incomum e para mim não foi novidade. Basta dizer que os trotes contra os calouros são aplicados até o dia 13 de maio, pois é o dia da “libertação dos escravos”. Na visão dos estudantes de medicina, é claro, apenas uma “piadinha inocente” com a carnificina secular à qual submeteram o povo negro.

Vou poupá-los de um tanto de histórias semelhantes que seriam suficientes para um livro e contar apenas mais dois episódios: um deles se deu quando eu cometi o erro de ir a uma “confraternização” da faculdade, fora do campus, onde eu estava totalmente à mercê dos imbecis, cuja opinião sobre mim àquela altura (minha fama de “pau no cu”, como eles diziam para se referir a quem não se adequasse às suas regras e hierarquias, já havia corrido os quatro cantos da faculdade) não devia ser nada melhor do que a que têm sobre os médicos cubanos. Depois de ser submetido a algumas rodadas de cerveja na cabeça, de ser obrigado a beber cerveja com meu próprio cabelo cortado dentro dela, de ouvir todo tipo de insulto gritado e cuspido em minhas orelhas, meus “superiores” me obrigaram a subir em uma mesa para entoar o glorioso hino da faculdade tantas vezes quantas fosse necessário até que todos os presentes se dispusessem a me acompanhar. Faço questão de dividir a letra com vocês:

Pessoal!
Xá! (o coro responde: Vasca!)
Xá! Vasca!
Xavasqui! Xavascá! Xavasqui e acolá!
Enfia o dedo nela que ela vai arreganhar!
O que? Arre-ga-nhar!
Na rima do pudendo (termo médico que designa a fissura formada pelos grandes lábios da vagina)
eu entrei mordendo!
É a Med Santo Amaro que está te fodendo!
Medicina! Santo Amaro! Hooool!

Havia umas tantas outras músicas que expressavam a sofisticação humana dos meus colegas. Vou reproduzir apenas mais uma, em homenagem à coruja loka – singelo símbolo da Atlética (o grande órgão venerado pelos estudantes):

A coruja bota no seu cu!
E goza, e goza, e goza na sua boca!
Loca! Loca, loca, loca, locaaa!
Coruja loca!

Em seguida, após eu passar pelo ritual de iniciação, a pose de oficial do exército foi deixada de lado por um dos veteranos, do sexto ano, que veio conversar comigo “sinceramente”. Disse-me que eu não podia ter aquele tipo de postura, que agora sim eu estava agindo de acordo, que nós precisávamos de união. “Você já ouviu falar da máfia de branco?” Ele disse. “Nós somos a máfia de branco. Se você precisar de ajuda, somos nós que estaremos lá para nos ajudarmos. Numa prova, quando tivermos que colar, somos nós que nos apoiaremos. Se acontecer alguma coisa com um paciente, somos nós que vamos ter que acobertar. Por isto precisamos ficar unidos”.

Sim, é isto: é uma corporação no sentido forte do termo. Eles defendem seus interesses. Por isto se unem para repelir os médicos cubanos que estão entrando em “seu território”. Por isto se unem para defender o Ato Médico para tirar os outros profissionais da saúde do “seu território”. Por isto fazem rituais de iniciação medievais, tais como se faz na polícia ou no exército, tais como os do Capitão Nascimento, para iniciar os “seus” em “sua corporação”. Eles realmente se consideram melhores do que todos os outros seres humanos, e não há exagero aqui. Apenas uma vez consegui conversar com estudantes de outro curso no campus, que abrigava todos os cursos de biológicas. Eles não sabiam que eu era estudante de medicina. Quando lhes disse, imediatamente queriam interromper a conversa: já conheciam este tipo de gente. Apenas se abriram novamente quando lhes confessei que eu também tinha desprezo pelos meus colegas de curso e vice-versa.

Há outra ocasião que quero compartilhar: a visita ao hospital ligado à universidade, o Hospital Geral do Grajaú (HGG), e a visita à unidade do Programa de Saúde da Família (PSF) conveniado com a universidade. No hospital, pela primeira vez fui bem tratado por uma estudante do sexto ano. Era uma moça que talvez não tivesse contato ou não se importasse tanto com a minha “fama”. Ela me recebeu bem, me explicou tudo, foi extremamente gentil. Então, chegaram os pacientes. O HGG é hospital de referência da região, onde vão parar todos os casos minimamente graves. A estudante estava no último ano de seu internato, período em que é “obrigada” a atender no hospital. A rudeza com a qual ela recebeu o paciente me deixou atônito. Pegando a sonda que estava nele e a examinando rapidamente junto a uma papelada, ela identificou que já havia recebido o paciente e que indicara que ele marcasse uma consulta no ambulatório de especialidades da faculdade. “Eu não te mandei ir lá marcar a consulta? Por que você não foi? Por que voltou aqui?” O paciente, certamente intimidado em sua condição de trabalhador e pobre diante do poder implícito do jaleco e do título da “doutora” da “máfia de branco”, respondeu humildemente que ele havia tentado marcar a consulta, mas que eles tinham vagas somente para dali a três meses, e que ele precisava limpar a sonda antes disso, e que não tinha condições de esperar tanto. Perguntava se ela poderia fazer alguma coisa por ela. Mesmo que ela quisesse muito, o que estava longe de ser o caso, não poderia: esta é a principal agonia que eu antevia na minha profissão depois de estar formado - a impossibilidade de ajudar meus pacientes mesmo que fosse um médico competente, porque simplesmente não há nenhuma infraestrutura mínima para realizar o trabalho.

A estudante conseguia habilmente ser gentil quando se dirigia a mim, de forma atenciosa perguntando se eu queria ajudar a trocar a sonda, e estúpida, rude, impaciente quando se dirigia ao paciente que “não entendia nada” das “ordens médicas”. Não posso deixar de lembrar dos médicos cubanos, negros, como os pacientes maltratados daquela interna. Negros “com cara de empregada”, a quem gente que paga alguns milhares de reais por mês para estudar numa faculdade privada de medicina está acostumada a tratar como uma categoria inferior de seres humanos. Assim que o paciente deixou o consultório, ela desabafou comigo: “Ainda bem que só faltam seis meses para eu sair daqui!”. Em seguida, se tudo desse certo, ela faria residência e abriria seu consultório particular, para nunca mais precisar encostar ou se dirigir a um negro ou um pobre na condição de paciente, e eles voltariam a ocupar o lugar invisível de subalternos que a médica desejava para eles em sua vida.

Quando fomos ao PSF, passamos em pequenos grupos de estudantes do primeiro ano nas casas da favela do Grajaú junto com a agente comunitária, recrutada entre os moradores dali mesmo. Imaginem vocês aqueles estudantes que provavelmente nunca entraram em um ônibus na vida, andando em uma favela. Depois de tantas visitas e tantas casas, a agente desabafou conosco: “Ainda bem que vocês estão vindo aqui, para ver como é. Nós precisamos muito de mais médicos aqui. O pessoal se forma e vai embora, nunca mais volta e nós ficamos sem médicos para nos atender.” Ela se afasta, um colega compartilha seus sentimentos íntimos conosco: “Ah, me desculpa, mas eu nunca trabalharia aqui.” Ele continuou seu discurso, mas acho que meu cérebro, após estes anos, preferiu bloqueá-lo de minhas memórias para me poupar um pouco. Hoje, lembrando disso, penso nos médicos que chamam os negros cubanos que deixaram seu país por um salário de R$10 mil reais, cuja metade será paga ao ministério da saúde de Cuba, de “escravos”. Quem trabalharia por esta miséria? Na visão deles, apenas os médicos negros, “escravos”, com “cara de empregada”. Será que eles sabem que isto é muito mais do que ganha a maior parte dos trabalhadores do Brasil? Será que eles se importam? O que meus colegas disseram já responde a estas perguntas.

Eu poderia continuar escrevendo muito, muito mesmo, sobre o que há de podre na medicina. Foram estas coisas que me fizeram largar o curso ainda no segundo ano. Eu não seria capaz de conviver com esta gente, com seu modo de pensar, de viver. Talvez eu ficasse deprimido, talvez fizesse um atentado ao estilo “jovem americano” entrando na faculdade e fuzilando a todos. Preferi sair. Amadurecendo minha visão política nos anos seguintes pude perceber as causas sociais que levam os médicos e a medicina a serem assim. Talvez esta experiência pessoal tenha ajudado a me empurrar um pouco mais rápido para o socialismo. O que sei é que trazer um punhado de médicos cubanos pode escancarar a mentalidade podre de nossos médicos, mas pouco ou quase nada pode fazer para ajudar a que o povo pobre e trabalhador a ter acesso a condições mínimas de saúde. E, sem dúvida, a mudança desta situação não virá pelas mãos de Dilma nem de nenhum governante a serviço deste Estado. Virar a medicina brasileira de cabeça para baixo é uma tarefa para a revolução operária e socialista.

segunda-feira, agosto 05, 2013

#Partiu Zanon!








 Posso dizer sem muito receio de errar que o período no qual cresceu minha geração foi um dos mais tristes e sombrios desde que se iniciou a história do capitalismo. Está certo que em relação a momentos como as guerras mundiais ou a crise dos 30, ou mesmo os primórdios do capitalismo industrial, grande parte das pessoas sofreu menos privações materiais ou sofrimento físico. Mas é uma geração da qual a burguesia roubou algo muito mais valioso do que qualquer privação material poderia impor: a possibilidade de acreditar em um mundo distinto, em um futuro melhor para a humanidade; s possibilidade de se ver enquanto sujeito da história e da superação da miséria da humanidade. A mim, pelo menos, nada parece mais assustador do que a ideia de que a história acabou – que, por incrível que pareça, teve nas décadas passadas seu breve período de apogeu e triunfo.
            Digo isto para tentar explicar um pouco que seja o que alguns jovens desta geração, alguns dos quais estas ideias pareciam inacreditáveis, podem sentir diante de uma  pequena – porém fundamental – trincheira no combate a esta derrota que a possibilidade de um futuro sofreu enquanto nascemos e crescemos. A trincheira da qual eu falo é fruto de um combate árduo que já dura mais de uma década, protagonizado por algumas centenas de operários e com o apoio imprescindível de uma camada mais ampla de estudantes, desempregados, indígenas, presidiários, donas de casa, enfim, de todo um setor da população que corretamente reconheceu na luta destes trabalhadores o seu próprio combate por uma vida mais digna. Trata-se de um pequeno exemplo da luta de classes – aquela que queriam nos fazer acreditar que havia desaparecido – na qual a classe que gesta dentro de si o futuro – o proletariado – conquistou para si e para os demais explorados e oprimidos do mundo, uma vitória.
            Foi na crise de 2001 na Argentina que isto começou. Com a queda de cinco presidentes, a revolta de amplos setores da classe média, uma crise econômica profunda e generalizada, centenas de fábricas foram ocupadas. O capital tratou mais uma vez de demonstrar sua força, maleabilidade e poder não apenas de repressão – acabando com diversas ocupações com o aparato policial – mas também de cooptação – tratando de impor a que muitas ocupações se tornassem cooperativas e os seus trabalhadores passassem a ser pequenos empreendedores, pequenos patrões e capitalistas. Em Zanon, fábrica de cerâmica localizada na província de Neuquén, no sul da Argentina, a história foi outra. Os trabalhadores ocuparam a fábrica, colocaram-na para produzir, resistiram bravamente todas as investidas da polícia, conquistaram o apoio do povo pobre, dos estudantes e dos indígenas. Um pequeno exemplo mostra a grandeza da luta: os presidiários de um presídio local decidiram apoiar a luta, e para isto fizeram greve de fome para doar sua própria comida aos trabalhadores de Zanon em luta.
            A fábrica virou patrimônio do povo, doando sua produção para a construção de hospitais e escolas que o governo se recusava a construir. Aumentou o número de postos de trabalho, empregando uma parte dos desempregados que apoiaram a luta dos operários. Estudantes da universidade se aliaram aos trabalhadores ajudando-os a gerir os aspectos da produção dos quais eram tolhidos no sistema patronal da divisão do trabalho entre o intelectual/técnico e o físico/produtivo, colocando de pé, assim, um verdadeiro pacto operário-universitário que mostra o potencial transformador da universidade quando ela coloca seu conhecimento a serviço dos trabalhadores. Os indígenas do povo Mapuche apoiaram os operários cedendo-lhes a matéria-prima, argila, que se encontrava em seu território e que antes era roubada pelo proprietário da fábrica.
            Após dez anos de luta, o povo de Neuquén e os operários de Zanon (rebatizada como FaSinPat – sigla para Fábrica Sem Patrões) conseguiram dobrar até mesmo o sagrado direito burguês da propriedade privada, e impuseram que se reconhecesse legalmente a expropriação da fábrica. Mas sua luta vai muito além dos limites de uma fábrica, pois os operários aprenderam no curso de sua luta que é necessário lutar por muito mais, que as injustiças não se iniciaram e não terminam nos portões de Zanon, e que tampouco é possível derrotá-las restringindo a luta. O primeiro passo foi retomar o Sindicato Ceramista de Neuquén das mãos da máfia que o controlava, uma verdadeira corja de burocratas sindicais que sustentavam-se fartamente fazendo do sindicato um mantenedor dos interesses patronais. Em Neuquén, como em qualquer parte do mundo, a tarefa de expulsar os burocratas dos sindicatos é fundamental para retomar um dos principais instrumentos de lutas dos trabalhadores. Para assegurar que o sindicato permanecesse assim, o estatuto do sindicato foi reformulado de forma a que seus dirigentes não gozassem de privilégios, e que tivessem o limite de um mandato sindical para que depois retornassem a seus postos de trabalho nas fábricas. Como ensinou Marx há um bocado de tempo, nossa consciência está em primeiro lugar determinada pelas nossas condições materiais de vida. Um dirigente sindical que receba um salário bem maior do que aquele que recebia na fábrica, e ainda por cima possa se manter por décadas fora da linha de produção se reelegendo indefinidamente como dirigente sindical, tem todos os motivos para se tornar um burocrata, que passará a vender os interesses dos trabalhadores aos patrões em nome de garantir seus próprios privilégios materiais. É o caso de quase todos os ratos parasitas da CUT, Força Sindical e outras centrais sindicais vendidas em nosso país.
            Vários anos depois, os operários deram mais um passo na luta contra seus inimigos de classe, desta vez conquistando um posto avançado dentro de território que, por sua própria natureza, é do inimigo: o parlamento de Neuquén. A partir da conformação de uma Frente de Esquerda e dos Trabalhadores (FIT, na sigla em espanhol), composta pelo PTS (organização irmã da LER-QI, na qual eu milito aqui no Brasil), pelo PO e pela IS, se elegeram dois operários de Zanon para revezarem o mandato entre si e com mais um companheiro da IS. O primeiro ano foi ocupado pelo operário de Zanon, o companheiro Alejandro López, que não é de nenhum partido. Atualmente, está na bancada parlamentar Raul Godoy, também operário de Zanon e dirigente do PTS. Da mesma forma que no sindicato, o mandato parlamentar não poderia significar um privilégio material, e Godoy recebe o mesmo salário que recebia na fábrica, doando o restante para um fundo de lutas dos trabalhadores. Propôs também um projeto de lei que ficou conhecido nacionalmente, de que todos os parlamentares recebessem o mesmo salário que uma professora do ensino básico. Para nós, esta é uma atuação exemplar, que denuncia a podridão do regime político da burguesia e contrasta enormemente com o péssimo exemplo do parlamentar do PSOL Jean Wyllys, que recentemente defendeu publicamente o salário de R$ 26.000 que recebem os parlamentares aqui, como “justo”. Godoy também esteve recentemente na Grécia, conversando com os operários da fábrica Vio.Me – sob controle operário desde 2004 – para apoiar sua luta com a experiência de Zanon.
            Isto é apenas um pouquinho da história da luta de Zanon. Que por sua vez é ainda uma pequena, minúscula, vitória dos trabalhadores em sua luta contra o capital. Mas para nós, revolucionários que dedicamos nossas vidas a esta luta, a luta de Zanon é um grande exemplo. É isto que explica o plano de dez jovens que decidiram viajar em dois carros até o sul da Argentina para conhecer de perto esta experiência. Em Porto Alegre, os companheiros fizeram uma grande campanha financeira, organizando festas e arrecadações para poder custear sua viagem. E eu, quando fui convidado a fazer parte da viagem como parte da delegação da LER-QI, me senti privilegiado pela oportunidade de ir pessoalmente pela primeira vez ver o exemplo que meus camaradas do PTS dão em conjunto com os operários independentes em Zanon.
            Revezando-nos em cinco motoristas, partimos pelas estradas em uma comitiva de dez pessoas, entre paulistas e gaúchos; militantes da LER-QI e companheiros independentes; professores, estudantes e metroviários; todos com o objetivo comum de buscar o exemplo e a inspiração para seguirmos em nossas cidades e no dia-a-dia na luta coletiva e histórica de milhões de mulheres e homens contra o sistema de exploração e miséria em que vivemos.
            Mas no meio do caminho havia uma lebre. Eu, que estava dirigindo o carro, não me lembro de nada devido a uma pancada na cabeça. Só sei do que me contaram, que quando fui desviar da lebre, certamente por impulso, o carro capotou, ficando completamente destruído e ferindo três companheiros. Pelo estado em que o carro ficou, somos todos unânimes em afirmar que tivemos bastante sorte. Comigo, apenas uma mão quebrada e dois pontos na outra, além da batida na cabeça. Valéria teve um corte no rosto, uma pancada na cabeça e uma clavícula fraturada; também não foi nada muito grave. Mas, infelizmente, nossa companheira Paula teve ferimentos mais graves: fraturou a bacia e a vértebra lombar, L2, que por sorte não atingiu sua medula. O acidente na estrada da província de La Pampa, quando faltavam cerca de 400 km para chegarmos a Zanon,  transformou nossa viagem drasticamente.


            Recebemos prontamente toda a ajuda dos poucos camaradas do PTS que militam em Santa Rosa, capital de La Pampa, que em plena campanha eleitoral se desdobraram em mil para nos ajudar. Imediatamente também a LER-QI e o PTS enviaram camaradas para ajudar em tudo o que fosse possível. Paula foi informada que precisava fazer uma cirurgia para colocar uma prótese no lugar da vértebra fraturada, que deveria ser feita o quanto antes pois qualquer movimento indevido poderia atingir sua medula, trazendo graves conseqüências e podendo mesmo deixá-la paraplégica. Contudo, se há uma coisa que não vale nada no capitalismo, é a vida de uma pessoa que não tem dinheiro. E este é o caso da minha companheira Paula, cuja cirurgia foi adiada já por três vezes, com o hospital inventando mil histórias absurdas e mentirosas, como de que a prótese precisaria vir de Buenos Aires, o que foi desmentido pelo próprio hospital ao cônsul brasileiro em uma ligação telefônica.
            Desde os primeiros momentos, Paula mostrou a força, a firmeza e a coragem de uma verdadeira revolucionária. Apesar da angústia de ficar presa à cama, praticamente imóvel, apesar das fortíssimas dores que sente e que os anestésicos só são capazes de aliviar parcialmente, apesar dos absurdos que o sistema público de saúde a está submetendo, Paula encara a sua situação de forma valente, apesar dos momentos inevitáveis de angustia, tristeza e desespero. Insistiu aos companheiros que estavam em condições que seguissem a viagem até Zanon para conhecer a fábrica, mesmo chorando porque não poderia ir com eles. Combinei, ao pé do seu leito, que não deixaremos de ir até lá quando ela estiver melhor. Em meio a sua dor, Paula não deixa em nenhum momento de sentir e manifestar gratidão pelos companheiros que estão se esforçando para ajudá-la, em especial a Silvia que desde o começo está ao seu lado no hospital, e sua mãe, que sem falar uma palavra de espanhol também está lá a seu lado.
            Em Porto Alegre, ocorre uma emocionante demonstração da solidariedade entre os lutadores, com o Centro Acadêmico de História da UFRGS, onde Paula estuda, organizando uma campanha financeira, e uma vigília no consulado da Argentina para pressionar os burocratas a que realizem logo a cirurgia da Paula. Aqui em São Paulo nós da LER-QI também estamos organizando uma comitiva para ir ao consulado. O cartunista Latuff também se solidarizou e fez uma charge denunciando o enorme descaso dos governos brasileiro e argentino com a situação da Paula.
            Se não pude conhecer Zanon nesta viagem, pude aprender muito mais na prática sobre a solidariedade de classe. A sensibilidade, a disponibilidade e a atenção dos camaradas do PTS, sejam os companheiros de La Pampa, seja do companheiro Juan que veio de Neuquén nos ajudar, é uma lição revolucionária. Sem nunca terem visto Paula  e nem nenhum de nós na vida, os camaradas fizeram de tudo para nos ajudar. Os laços que unem os revolucionários, e que os unem aos seus companheiros de classe, podem ser muito mais fortes do que qualquer amizade. O que nos une é um projeto de vida, uma luta em comum. Aprender a ser mais humano, contudo, é uma tarefa difícil neste mundo, e os camaradas sem dúvida me ajudaram muito nisto.
            As maiores lições e exemplos, contudo, quem deu foi a Paula, deitada em sua cama no hospital. Para além de todo o carinho que Paula tem com todos os que a ajudam, ela mostra uma grandeza de espírito imensurável ao não deixar que a dor que a aflige feche seus olhos para a exploração dos que estão ao seu redor. Em seu leito, escreveu no seu perfil no Facebook: “a situação dos enfermeiros e enfermeiras aqui é durissíma, chegam a trabalhar 5 dias direto, o hospital sempre lotado de situações horríveis, o meu caso não é nem de longe o mais grave, o esgotamento desses trabalhadores é visível, a galera que faz a limpeza do hospital é terceirizada, não preciso dizer que sendo assim trabalham pra caralho ganhando uma miséria e são na maioria mulheres, juntando lixo hospitalar que é perigosíssimo, e limpando os quartos e banheiros todos os dias correndo o risco de pegar infecções. Digo tudo isso porque essa luta que todas e todos vocês estão travando ultrapassa a pressão para que se agilize minha cirurgia que é urgente, mas nos demonstra a desumanização de todo um sistema, o quanto essa merda explora, mata, não está nem aí e oferece o mínimo para o ser humano poder seguindo sendo explorado, mal tratado em nome do lucro das figuras ilustres que estão bem confortáveis nesse momento tendo resolver um caso de descaso.”
            Quando leio isto penso que precisamos urgentemente de mais Paulas no mundo. Quando tudo isto passar, Paula ainda irá em algum momento conhecer Zanon. Mas, na verdade, o que há de melhor em Zanon já está dentro dela. E me orgulho de sua luta hoje e das que iremos travar lado a lado no futuro: a mesma luta dos operários de Zanon, da classe trabalhadora mundial e dos explorados deste mundo.