quinta-feira, novembro 01, 2012

Na São Remo, o genocídio. Na imprensa, a hipocrisia


A polícia mais assassina do mundo e a política de militarização dos governos do PT e PSDB 

A Polícia Militar de São Paulo já ficou internacionalmente famosa por ser a segunda polícia mais assassina do mundo (a primeira é a do Rio de Janeiro!). Contudo, o que ela fazia antes empalideceu diante de sua atuação recente. A mídia, afoita, noticia dia e noite as mortes de policiais, mas omite números como o de que para cada policial morto, 41 civis são assassinados pela policia no Rio de Janeiro, isso no ano de 2007. Hoje, do jeito que a polícia de São Paulo está, esta proporção deve ser ainda maior. Por isso, quando se fala de "guerra civil", está se cometendo um equívoco: trata-se de genocídio sistemático de uma população que tem renda e cor: são os negros e pobres da periferia de São Paulo.

A operação saturação em Paraisópolis, que sitiou a favela com 600 policiais e o abuso sistemático de todos os direitos dos moradores, agora conta com um reforço de peso: a vitória de Haddad em São Paulo trouxe imediatamente a atenção do governo Dilma para fazer de São Paulo o novo foco de sua política de militarização das favelas com as UPPs, botando as forças de segurança nacional para reprimir cotidianamente os moradores. Dilma quer militarizar a Paraisópolis! 

Os moradores da São Remo que construíram e mantém a USP são atacados pela reitoria e o governo

Aqui ao lado da USP, na São Remo, onde moram muitos dos trabalhadores da universidade - e particularmente os que ocupam os trabalhos mais precarizados, os terceirizados - a situação é escandalosa. A história da favela da São Remo e do campus Butantã da USP estão umbilicalmente ligadas, pois aquela começou a ser erguida justamente pelos trabalhadores que construíram os prédios da universidade. Situada em um terreno que oficialmente pertence à universidade, não foi sem muita luta, contando inclusive com o importante apoio dos trabalhadores da USP, que os moradores da São Remo conseguiram se manter ali. Foi também graças à sua mobilização, ao lado dos moradores de outras partes do Butantã, Rio Pequeno etc, que se construiu o Hospital Universitário da USP (que, diga-se de passagem, a reitoria tem planos de privatizar através de uma OS, um tipo de privatização que Haddad apoiou enfaticamente em sua campanha). A universidade cresceu, as condições de emprego se precarizaram: implementou-se a terceirização na universidade, com trabalhadores que não tem acesso a direitos trabalhistas elementares. Um deles, o vale transporte. 

Muitas empresas contratam apenas pessoas que morem num raio de até dez quilômetros da universidade, pois assim não pagam o vale. Claro, há trabalhadores terceirizados que se deslocam de pontos extremos da cidade para a USP, e que são ainda obrigados a falsificar seu endereço para trabalhar em condições absurdas. Também por isso, são centenas os trabalhadores terceirizados da universidade que vêm das favelas da região: favela do jaguaré, Vila Dalva, São Remo... Muitos destes trabalhadores contavam com o circular como o único auxílio que tinham para se transportar até seus locais de trabalho. Rodas, com uma canetada, cortou os circulares e privatizou o sistema de transporte da USP através da implementação do BUSP (o transporte é feito pela SPTrans através das empresas privadas concessionárias e a "comunidade USP", da qual a reitoria faz questão de excluir os terceirizados, pode andar mediante o uso de um bilhete especial). Assim, da noite para o dia todos os terceirizados perderam o direito de andar de circular e ganharam alguns quilômetros a mais em seus trajetos diários. Isto representou também um outro ataque, pois os motoristas dos circulares foram desviados de sua função, e este cargo está extinto na universidade em nome da privatização. Para calar os estudantes diante disso, a reitoria estendeu o trajeto até o metrô (sendo que a própria reitoria vetou o projeto original do metrô que previa duas estações dentro do campus! Uma na Praça do Relógio e outra no HU).

Os trabalhadores terceirizados e moradores da São Remo já não tem direito a nada na universidade: não podem usar o CEPEUSP, as bibliotecas, nem sequer comer no bandejão. Apesar de terem construído a universidade e fazerem ela funcionar a cada dia, a universidade elitista e racista simplesmente os classifica como "elementos estranhos" (lembremos que um dos fundamentos para a demissão inconstitucional de Brandão, diretor do Sintusp, em 2008, foi ter defendido estes "elementos estranhos" à USP em suas mobilizações contra atraso de salários e direitos, uma das marcas inconfundíveis destas empresas parasitas na universidade). As humilhações e abusos a que estão submetidos estes trabalhadores cotidianamente foram escancaradas na greve da União em 2011.

Contudo, a reitoria não considera o suficiente manter esta semiescravidão para galgar os degraus dos rançosos e meritocráticos rankings internacionais: decidiram que era necessário tirá-los de suas casas, afinal, pega mal para uma universidade de excelência que todos vejam a pobreza e exploração sobre a qual ela se sustenta bem ali, a olhos vistos, colada no muro da universidade. Então veio o projeto de "reurbanização" da São Remo, que pretende desalojar todo mundo e fazer uma coisa, assim, mais USP pra ficar ali, né?

Nem todos sabem, mas a remoção já começou aos poucos! Com duzentas casas removidas, os moradores recebem um "auxílio" de 300 reais (como eu queria ver o Rodas morar com este dinheiro!). A resistência, por outro lado, também já está de pé, com o Sintusp e a Associação de Moradores da São Remo na linha de frente.

São Remo militarizada e a campanha reacionária da imprensa

Sob o pretexto do assassinato de um soldado da Rota, a polícia está mantendo um verdadeiro estado de sítio. De estudantes da  universidade que dão aulas nas escolas ao redor da USP, já soubemos de alguns casos de jovens, alunos seus, assassinados. Em geral, o único motivo é estarem na rua após o horário permitido pelo toque de recolher. O boletim do Sintusp de hoje noticia: "Uma companheira, funcionária da USP, que teve sua porta arrombada pelos coturnos dos soldados, pediu o mandato judicial e recebeu dois tapas no rosto de um policial que gritava: "está aqui!". Em várias outras casas, os policiais quebraram móveis, eletrodomésticos e, quando os moradores protestaram dizendo que eram trabalhadores, ouviram dos policiais que quem mora na favela e não paga IPTU é bandido"

Esta situação já perdura há semanas, mas agora se agravou muito com a ocupação das polícias civil e militar. Agora, a mídia está em polvorosa com sua campanha reacionária, em que unifica os "maconheiros da USP" com os "traficantes da São Remo" e clama histericamente pela polícia para reprimir ambos. Este artigo   de Dennis de Oliveira mostra bem a postura da mídia diante da São Remo. Os estudantes da USP, que no ano passado travaram uma luta exemplar contra a polícia, não podem se calar diante deste absurdo! Ontem, os estudantes da Letras começaram a dar uma resposta. Agora, é fundamental que cada estudante e cada entidade passem a construir a reunião de segunda-feira, às 16h, no Sintusp, em que estará presente a Associação de Moradores da São Remo, para podermos organizar uma resposta unificada e à altura da repressão policial que está ocorrendo! Todo apoio aos moradores da São Remo!


domingo, outubro 28, 2012

Professora Marilena, vamos aos fatos

Nesta semana, os petistas da USP realizaram um ato pró-Haddad. O ato foi encabeçado pelo próprio PT e pela Consulta Popular, que nesta eleição tem mostrado um papel vergonhoso de ser mais petistas que o próprio PT. Este post é para debater especificamente a fala da professora Marilena Chauí neste debate, que ao longo dos anos tem se mostrado como uma das maiores defensoras ideológicas do PT na USP (tendo chegado às raias do absurdo ao afirmar, durante a eleição de 2010, que o bolsa família era uma espécia de "via brasileira ao socialismo"). Então, antes de mais nada, aí vai a intervenção dela neste debate:



A Juventude às Ruas esteve presente no ato, panfletando sua declaração pelo voto nulo programático no segundo turno em São Paulo e com cartazes que diziam "não há mudança com Maluf nem com o dinheiro da OAS (empreitera que doou um milhão para a campanha de Haddad) e da burguesia". 




Assim, pôde-se perceber, nitidamente, que nossa presença incomodou os petistas, e uma parte da fala de Chauí procurava combater justamente nossa posição pelo voto nulo. Mas vamos por ordem.

A professora ressalta que, em sua visão, há três formas de recusar a política: a primeira é uma concepção teológica do poder, de que o poder emana de uma fonte religiosa, divina, dogmática. Depois, mais à frente, ela afirma que Haddad combateria isto, pois não está com "os Malafaia da vida" (em referência a Silas Malafia, da Assembleia de Deus Vitória em Cristo, que declarou seu apoio a Serra). Ora, muito curioso isto, pois NO MESMO DIA do debate na USP, o candidato de Chauí que supostamente combate os "dogmas religiosos" dos "Malafaias da vida", apareceu publicamente recebendo apoio de 20 líderes religiosos de 11 igrejas e nove entidades evangélicas. Olha a cara de alegria do futuro prefeito ao receber os ensinamentos de Deus:



Em troca, Haddad prometeu dar um basta na lei do PSIU que proíbe que os crentes façam quanto barulho quiserem com a pregação de suas ideologia, ops, teologia da prosperidade. A lei do PSIU é escrota e reacionária, mas Haddad vai acabar com ela para garantir o apoio dos crentes. Me diga, professora, onde está o combate aos dogmas religiosos? Nos últimos dias, milhares de crentes receberam instruções de seus pastores para votar na "mudança" de Haddad. Denunciamos isto no ato, prontamente: pode-se ouvir, após Chauí falar o nome de Malafaia, a Juventude às Ruas gritando: "Edir Macedo!", falando dos aliados de Haddad.

Em seguida, Chauí volta sua artilharia retórica diretamente contra a Juventude às Ruas, recorrendo a Maquiavel e falando sobre os "moralistas" que olham "o céu dos princípios" para ignorar a "prática verdadeira que ocorre na terra". Por trás da excelente oratória de Chauí, que aprendeu muito com o mais brilhante conselheiro da monarquia, o que ela está dizendo é simplesmente isso: em política, não se deve ter princípios, mas sim entrar de cabeça na lama da política burguesa. É uma demagogia pomposa em defesa de uma política suja e sem princípios. O mesmo argumento pode ser utilizado para justificar o mensalão do partido de Haddad. 

Vamos então olhar mais de perto a "prática concreta" e sem princípios que defende Chauí: o PT, em seu discurso (ou seja, no campo "utópico" dos princípios) diz governar para os pobres (há algumas décadas seria para os trabalhadores, mas hoje acham este discurso já muito "ultrapassado" e os trabalhadores ficam só no nome do partido mesmo). Na "prática concreta", contudo, o PT militarizou os canteiros de obras em Jirau, Suape e outras obras do PAC, impedindo o direito de greve dos setores mais explorados e precarizados do proletariado brasileiro; cortou o ponto de grevistas do funcionalismo federal; autorizou o despejo de centenas de Guarani-Kaiowá (que, no campo dos princípios, bem como no Facebook, os petistas continuam defendendo e se comovendo, mesmo que seja o seu governo aquele que está fazendo isto). No campo dos "princípios", o PT defende a educação pública; mas na "prática cotidiana", Haddad transferiu milhões das verbas publicas para os empresários da educação através do Prouni (calcula-se que com a verba de cada vaga no Prouni poderiam ser abertas três vagas em universidades federais. No campo dos "princípios", Haddad e o PT defendem a saúda pública; mas na "prática concreta" ele garante manter a privatização da saúde em São Paulo através das chamadas "Organizações Sociais" (OS), que são empresas privadas que administram os hospitais públicos, e lucram muito com isso enquanto milhares de pessoas padecem nas filas. No "céu dos princípios", o PT combate as oligarquias reacionárias, as heranças da ditadura, luta pelos direitos humanos; mas na "prática concreta", se alia com Maluf, o governador biônico da ditadura que é responsável pela criação da vala clandestina do cemitério de Perus, onde foram enterrados centenas de jovens negros, pobres, trabalhadores e militantes de esquerda torturados e assassinados pela ditadura; o Maluf do "Rouba mas faz", "estupra mas não mata" (afinal, ele também é um homem que faz a "política concreta", e, segundo sua própria análise, perto do PT é um comunista, pois ele sabe o quanto os banqueiros e empresários lucraram nos anos de Lula e Dilma no poder). No "céu dos princípios" o PT é lindo, mas na "prática concreta" governa para os empresários, para a burguesia, ao lado dos Sarneys, Collors e Malufs que em seus "princípios" tanto combateram.

Para Chauí, provavelmente o "céu dos princípíos" é para a sala de aula. Lá ela diz, como no debate, que "está com o bem e com a verdade". Já em sua prática política, ela está no vale tudo dos partidos podres do regime. Para os marxistas o critério é distinto: nossos princípios são o guia de nossa prática política cotidiana, e não um palavrório para nos consolar de uma prática concreta mesquinha. Quem de fato exerce uma separação entre os princípios e o cotidiano é o PT e seus ideólogos, como Chauí, que se contenta em falar sobre o socialismo e manter-se na lama da política burguesa. Nós, pelo contrário, nos apoiamos em exemplos como o de Lênin, que por décadas travou uma luta incansável para construir uma ferramenta política dos trabalhadores que, no momento correto, soube tomar o poder das mãos da burguesia. Que fez uma política persistente, consciente e planejada. Ao estouro da Primeira Guerra Mundial, praticamente todos os "marxistas" da Segunda Internacional souberam, como Chauí, abandonar o "céu dos princípios" do internacionalismo proletário para fazer a "prática concreta" de apoiar as "suas" burguesias nacionais na carnificina imperialista. Lênin e Trotsky, ao contrário, soube guiar sua política concreta pelos seus princípios, e, mesmo isolados e em minoria, defenderam a política correta, do internacionalismo proletário. Se reuniram, em 1915, na conferência internacionalista de Zimmerwald, pouco mais de uma dúzia de revolucionários, que eram tudo o que havia restado de marxismo principista, que lutava pela unidade dos trabalhadores contra a burguesia. Souberam ser minoria e lutar contra a "prática concreta" do social-chauvinismo.

Hoje, também, os revolucionários são uma pequena minoria. E, como em momentos passados na história, desdenham de nossa "incapacidade" de fazer política concreta, ou seja, de "estar com as massas" custe o que custas, seja lá com que política for. Ao discurso de Maquiavel de Marilena Chauí, os revolucionários opõem o discurso de Lênin, em "O que fazer?": "É preciso sonhar, mas com a condição de crer em nosso sonho. De observar com atenção a vida real, de confrontar a observação com nosso sonho, de realizar escrupulosamente nossas fantasias. Sonhos, acredite neles"

Como disse a própria Chauí, a terceira maneira de se abster de fazer política é se dobrar diante da ideologia burguesa, "aceitar a tirania, a ditadura do imaginário dominante e não me colocar a altura de quebrá-lo, de rachá-lo de ponta a ponta". Sim, nos propomos exatamente a fazer isto, e não há nada mais distante de enfrentar o imaginário dominante do que votar em Haddad e "lavar as mãos". Chauí dá, como exemplo deste imaginário dominante, "a ideia de que a política é a ação de técnicos modernos, responsáveis e competentes que se apropriam de todo o espaço público para agir em nome dos interesses privados da classe dominante".

Vamos ver então um programa que apresenta um "técnico competente":




O discurso de Chauí é ideológico, porque falsifica o que é Haddad, seu projeto de governo, sua campanha. Para ganhar as eleições em São Paulo, Haddad se mostra como o "técnico competente" que vai resolver tudo com seu "Arco do Futuro", uma panacéia digna das grandes obras que "foi Maluf que fez". Os problemas, na campanha de Haddad, deixam de ser políticos para serem técnicos. Em verdade, o "Arco do Futuro" de Haddad irá beneficiar empreiteiras como a OAS, que "doou" (ou, mais precisamente, investiu) um milhão de reais na campanha de Haddad.

O argumento que cooroa a exposição de Chauí é o corporativismo universitário, que chama o voto em Haddad porque este é "professor da USP". Que importa isto para os trabalhadores e a população pobre de São Paulo?! Nada, e Chauí bem sabe disto, mas como está fazendo a "política concreta" na USP, irá recorrer ao sentimento corporativista dos estudantes ali presente para votar em um candidato que "nos represente". O Ministro da Educação, que ela reivindica que "paralisou" a privatização de Paulo Renato, foi o que privatizou as verbas públicas através do ProUni. A única coisa que Haddad "paralisou" foram as dezenas de universidades federais que entraram em greve neste ano contra a política de ensino precário de Haddad através do Reuni, em que os estudantes não tem salas de aula, bibliotecas, bandejões, alojamentos, professores (e estes não tem salários decentes).

Professora Chauí, nos mantemos no campo dos que lutam contra uma política que mantém milhões em uma vida de miséria, enquanto mantém a riqueza nas mãos de poucos. É isto que o PT, por vias distintas (e muitas vezes mais eficaz) daquelas do PSDB, tem feito ano após ano. Combatemos também os intelectuais vendidos, que tem colocado seu prestígio e seu mérito a serviço de produzir ideologia a serviço da dominação burguesa. É isso, infelizmente, que o discurso de Marilena Chauí fez nesta última semana, e tem feito ao longo de anos. Nossos princípios nós não abandonamos.





segunda-feira, outubro 22, 2012

Os mandatos operários de Cléber e Amanda: uma oportunidade que não deve ser perdida

No primeiro turno das eleições municipais, se expressou um sintomático crescimento da esquerda (que analisamos mais detidamente na declaração da LER-QI). É necessário, em primeiro lugar, fazer a distinção entre PSOL e PSTU. Aquele, teve um expressivo aumento eleitoral, dobrando o número de vereadores, conquistando uma prefeitura e elegendo seu primeiro vereador na maior cidade do país. O PSTU, por outro lado, teve vitórias muito menos expressivas, do ponto de vista quantitativo, elegendo dois vereadores em capitais (Amanda Gurgel em Natal e Cléber Rabelo em Belém).

A trajetória acelerada e sem freios do PSOL rumo a ser "sócio menor" do regime burguês apodrecido

Contudo, do ponto de vista qualitativo não há comparação possível. O PSOL dá passos cada vez mais firmes rumo a ser nada mais do que mais um partido de um regime podre, a ala esquerda da miséria que a "democracia" burguesa pode nos oferecer. "Mas será que você não está exagerando? O PSOL participa de lutas, de movimentos sociais etc" poderiam objetar-me. Bom, como marxista, que procura olhar para as coisas (e aí também os partidos) como de fato são (e não como dizem ser!) e extrair as lições de uma realidade necessariamente contraditória, afirmo com toda a certeza que o PSOL segue um caminho decidido para ser uma perna bamba e "socialista" do regime burguês. Mesmo que muitos em suas fileiras, até os de suas alas mais à direita, como é o MES (Movimento de Esquerda Socialista), reinvidiquem Marx, Engels, Lênin, Trotsky, Rosa e Gramsci, sua prática nada tem a ver com os ensinamentos e a vida destes revolucionários. Colocam em prática aquilo que Lênin já apontou em 1917: "Os grandes revolucionários foram sempre perseguidos durante a vida; a sua doutrina foi sempre alvo do ódio mais feroz, das mais furiosas campanhas de mentiras e difamação por parte das classes dominantes. Mas, depois da sua morte, tenta-se convertê-los em ídolos inofensivos, canonizá-los por assim dizer, cercar o seu nome de uma auréola de glória, para 'consolo' das classes oprimidas e para o seu ludíbrio, enquanto se castra a substância do seu ensinamento revolucionário, embotando-lhe o gume, aviltando-o. A burguesia e os oportunistas do movimento operário se unem presentemente para infligir ao marxismo um tal 'tratamento'. Esquece-se, esbate-se, desvirtua-se o lado revolucionário, a essência revolucionária da doutrina, a sua alma revolucionária. Exalta-se e coloca-se em primeiro plano o que é ou parece aceitável para a burguesia. Todos os sociais-patriotas (não riam!) são, agora, marxistas." Tristemente, o PSOL está muitíssimo mais próximo dos detratores em vida de Lênin, como os mecheviques e os socialdemocratas alemães, do que de Lênin e sua doutrina...

É exatamente naquela fatia que Lênin classificou como "os oportunistas do movimento operário" que se encaixa o PSOL (ainda que possam existir indivíduos que são exceção, mas que no conjunto do partido não apenas não fazem diferença como colocam suas posições de esquerda para "lavar a cara" dos oportunistas de carreira; a estes, só resta abandonar o partido ou subordinarem-se às direções oportunistas). São oportunistas porque sua reivindicação fajuta de Lênin, sua atuação no movimento operário, estão sempre subordinados a melhor eleger parlamentares, a melhor aparecer como o partido da "ética" e "contra a corrupção". O que "esquecem" os oportunistas do PSOL é que, neste mesmo texto de Lênin supracitado, ele aponta, com vastas citações de Marx, a impossibilidade de um Estado burguês "ético" e sem corrupção. Isso porque, como afirma Lênin (baseado em Marx): "O Estado é o produto e a manifestação do antagonismo inconciliável das classes.O Estado aparece onde e na medida em que os antagonismos de classes não podem objetivamente ser conciliados. E, reciprocamente, a existência do Estado prova que as contradições de classe são inconciliáveis." E, apontando o que faziam os oportunistas de sua época: "De um lado, os ideólogos burgueses e, sobretudo, os da pequena burguesia, obrigados, sob a pressão de fatos históricos incontestáveis, a reconhecer que o estado não existe senão onde existem as contradições e a luta de classes, "corrigem" Marx de maneira a fazê-lo dizer que o Estado é o órgão da conciliação das classes. Para Marx, o Estado não poderia surgir nem subsistir se a conciliação das classes fosse possível.".

Os oportunistas "clássicos" da Segunda Internacional formularam com todas as letras esta concepção, de que o Estado poderia "conciliar" as classes e, desta forma, seria possível atingir o socialismo por vias pacíficas e por meio de reformas graduais. A história demonstrou seu erro diversas vezes. Aqui ao lado, no Chile, temos um exemplo trágico e inesquecível no reformismo de Salvador Allende, um reformista honesto que acabou por preparar o ascenso do fascismo em seu país entregando um ministério a Pinochet, que mais tarde seria o autor do golpe militar, para "acalmar" a burguesia raivosa. Foi mais um fracasso da concepção do Estado como órgão conciliador das classes. Hoje, o PSOL repete a mesma concepção, ainda que, nos discursos, muitas vezes diga que não. Enquanto os revolucionários honestamente dizem que bebem na fonte dos grandes dirigentes do movimento comunista que nos antecederam, os oportunistas sempre afirmam estarem inventando "o novo". Allende falava da "via chilena" para o socialismo, sem lembrar que esta via fora em primeiro lugar a do oportunismo alemão; o PSOL diz que é um "partido novo", requentando estas mesmas táticas.

Mas, enquanto afirma ser um "partido necessário", vemos que sua trajetória não é mais que uma paródia dos grandes partidos de massa reformistas. Antes que possuam alguma expressão, sua degeneração oportunista é patente. Primeiro foram as doações da Taurus e Gerdau (fabricante de armas e monopólio do aço - analisamos esta doação neste artigo ) para a campanha de Luciana Genro à prefeitura de Porto Alegre, que vão contra um princípio elementar do marxismo: a independência de classe (como defender os interesses dos trabalhadores sendo financiado pela burguesia?). Também votaram seus parlamentares diretamente contra direitos dos trabalhadores, quando votaram a favor do Supersimples. Agora, até mesmo seu verniz de "ético" e "anti-corrupção" vai por água abaixo, quando um membro da sua Direção Nacional, Martiniano Cavalcante, comprovadamente recebeu 200 mil reais de Carlinhos Cachoeira (Vale lembrar que Martiniano é da corrente interna MTL, a mesma que dirige a oposição ao Sintusp em São Paulo, e que ele chegou a disputar a vaga de candidato a presidente com Plínio de Arruda Sampaio, sendo apoiado pelo MES). Em cidades como Macapá e Belém, o PSOL está recebendo apoio do DEM, PTB, PSDB. Seu ex-candidato a presidente recentemente declarou apoio a Serra, enquanto a direção municipal não vê nenhuma diferença entre o voto nulo e o voto em Haddad... o que sobra para o PSOL? E deixamos a pergunta para os que ainda tem esperança neste partido: o que poderia frear este curso acelerado rumo a ser um novo "mini PT"?
Veja o apoio de Lula ao candidato do PSOL em Belém:

 

O PSTU tem nas mãos a chance de colocar seus mandatos a serviço da luta de classes, mas para isso deve mudar a perspectiva destas vitórias táticas!

Deixando claro porque o PSOL, ainda que seu avanço eleitoral contraditoriamente represente algo progressista, NÃO é uma alternativa para os trabalhadores, passemos ao PSTU e seus novos vereadores. O PSTU é um partido operário, não recebe dinheiro da burguesia, defende em seu programa a revolução socialista e a ditadura do proletariado. Só por isso, já tem um abismo de distância com o partido pequeno-burguês e oportunista que é o PSOL. Contudo, não é de hoje que discutimos como o PSTU se distancia da herança revolucionária de Trotsky, apoiando candidaturas de conciliação de classes e justificando com todo tipo de malabarismo teórico. Sobre isso, vale ler este artigo, que desenvolve bem as questões de princípio envolvidas.
Agora, o PSTU rompe a frente eleitoral em Belém, sob o pretexto de que recebe o apoio de Lula. Para o PSTU, magicamente isto foi um salto de qualidade em relação a receber dinheiro da burguesia e fazer frente com o partido que é uma base sólida de sustentação do governo e uma das maiores "patas" da burocracia sindical no país, o PCdoB de Aldo Rabelo. Veja abaixo o vídeo do vereador eleito do PSTU explicando a ruptura:


E aí, se convenceu? Eu não...ele diz que havia um "critério de classe" na composição da frente. E onde vai a grana do empresariado que apoiou no primeiro turno neste tal "critério de classe", que só para o PSTU existia? Infelizmente, tenho que concordar com um colega da Letras, ex-militante do PSTU, que coloca esta postura do PSTU como extremamente oportunista, diante do fato de que seu objetivo central, a eleição de Cláber, está atingido. Não pode haver outra explicação, pois o curso oporunista da campanha de Edmilson seguiu plenamente coerente; quem não teve a coerência necessária a um partido operário foi o PSTU. Além disso, sob que base se justifica o voto crítico que continuam chamando em Edmilson? Cléber se cala quanto a este fator, nada secundário.

Contudo, estas contradições não anulam a notoriedade da eleição, de Cléber, mas, principalmente, de Amanda Gurgel. Com estes dois mandatos operários, os companheiros do PSTU estão convocados a transformar a tribuna do parlamente burguês num espaço de denuncia incansável do regime, do capitalismo, de apoio às lutas de todos os setores explorados e oprimidos, dos trabalhadores e da juventude. Mas será que o PSTU está neste caminho? Neste ponto, queria apontar a seguinte contradição. Este é o discurso da vitória de Amanda Gurgel, até pouco tempo a capa de entrada do site do PSTU:


Este discurso foi pronunciado para a militância do PSTU. Bem classista, né? Denuncia o regime, fala que é um mandato coletivo a serviço das lutas, diz que o parlamento é o território inimigo, que "o nosso lugar é a luta". Que diferença do discurso que Amanda tem feito para as massas, no horário eleitoral.


Onde está a crítica feroz ao regime ao dizer que "precisamos de mudança na câmara" e "contra o poder econômico temos a força das ideias". Na campanha de Belém, PSTU vai mais longe com o Slogan "Belém para os trabalhadores", como se uma eleição pudesse fazer Belém estar de fato a serviço dos trabalhadores! Isso é o contrário de como os revolucionários devem usar o parlamento, como diz Lênin, para acabar com as ilusões da massas de que ali se pode obter grandes "vitórias". 

A conquista de um lugar no parlamento, espero que os companheiros do PSTU a coloquem a serviço de um programa classista. Como exemplo, coloco o mandato dos deputados trabalhadores da fábrica sem patrões, Zanon, na Argentina. Veja a diferença de seu programa eleitoral:



Um recorte de classe, que defende a expropriação do petróleo sobre controle operário, coloca o mandato ligado a sua luta na fábrica. Espero que Amanda e Cléber passem a fazer este tipo de discurso, para ajudar a avançar a consciência dos trabalhadores (o que, muitas vezes, significa chocar-se com ela!)

Seguimos entusiasmados e ansiosos com os primeiros mandatos operários e independentes na tribuna burguesa do Brasil neste século, enquant avança uma crise internacional. Que o PSTU coloque estes mandatos a serviço da luta de classes, e isso será um grande trunfo nas mãos da classe trabalhadora! Uma nova trincheira, que pode ser útil na guerra de classes desde que usada como um posto avançado no território inimigo para lutar por nossas posições, sem recuar um passo sequer!
Avante!


terça-feira, outubro 09, 2012

Lo que importa: uma elegia a Camila Radwanski




“Há os que lutam um dia, e são bons;
Há os que lutam um ano, e são melhores;
Há os que lutam muitos anos, e são muitos bons;
Porém, há os que lutam toda uma vida; estes são os imprescindíveis.”
- Bertolt Brecht

“Cuando yo muera, no me llores en la tumba fria.
Buscame en las luchas del pueblo, soy viento de libertad”
- Anônimo

Minha geração nasceu em uma época triste; uma época de ceticismo, descrença e desesperança. Crescemos e formamos nossa consciência em um tempo em que se dizia que o pior do mundo era o único mundo possível. Nos ensinaram a crer nisso. Nos ensinaram que o melhor era pensar em nós mesmos, em nossa sorte. Que a vida era cada um por si.

Não foi a primeira vez que o mundo tornou-se sombrio para os que tinham esperança. Em todos os momentos em que isso ocorreu, os revolucionários foram tão fundamentais quanto sempre. Para nadar contra a corrente, para manter viva a chama-piloto que poderia incendiar o mundo quando ele se enchesse de indignação novamente. Para semear para o futuro a colheita que nunca veriam.

Camila foi desta geração. Nasceu e cresceu em uma camada social privilegiada, cercada pelos filhos dos ricos, pelo quais não passava a pobreza do mundo. Mas eram parte da miséria também, pois não é só aos trabalhadores, aos explorados que atinge a miséria. A pobreza de nossa época é psíquica, é moral, é subjetiva, e de todos os tipos. Os meios mais abastados materialmente sofrem também desta miséria, que enche a vida de um vazio insuportável.

Ela nunca se ligou aos que optavam por uma vida de mais do mesmo. Por seus caminhos tortuosos e difíceis, Camila penou pela miséria do mundo, a conheceu e sofreu com ela. Não se conformava, não aceitava, não abaixava a cabeça. Era uma pária naquele meio, como os que anseiam por mudança verdadeira têm sido uma pária neste mundo recente. Era uma estranha no ninho que procurava, com seus próprios meios, lutar contra uma vida de miséria. A miséria material, esta ela não conheceu. As outras, estavam com ela o tempo todo; viveu mergulhada nesta miséria psíquica de nosso tempo. Por formas e caminhos para os quais ainda não dispomos de instrumentos para mapear, ela foi profundamente golpeada por esta miséria; forjou sua própria subjetividade na luta contra isto.

A luta revolucionária, para alguém que penou tanto ao se deparar com tanta brutalidade, é um caminho quase natural. E ela fez disso seu sentido. Quando a conheci, cada fibra do seu ser já era tomada pela ambição revolucionária, de virar esta miséria de ponta-cabeça a golpes duros e bem orientados. Não há quem me convença de que não foi isto que a orientou durante a parte mais difícil e mais gratificante de sua vida; de que foi esta meta que a manteve viva, pulsando, lutando até o último segundo.



O sofrimento do mundo penetrou nas veias da Camila. Tornou seu psiquismo doente, abalado, destroçado em alguns aspectos. Como o corpo de um trabalhador que exerce as funções mais penosas se gasta, se destrói aos poucos, tornando-se uma máquina rota muito antes do tempo, assim penso que aconteceu com o psiquismo desta pessoa a quem tanto amei. Não tenho meios para prova-lo, mas é o que sinto. Que a podridão do mundo, a mesma que a encheu de vigor para lutar, é a que lhe dava pesadelos e vozes, enchia seus dias de dor e tristeza.

Ela não se rendeu. Do pouco e intenso tempo que a conheci, esta é uma certeza que carrego. Cada gesto seu era uma preparação para o futuro revolucionário. Quando muitos em volta acreditavam que Camila estava longe da luta, eu discutia com ela cotidianamente e em detalhes os nossos planos, os equívocos, o que era necessário mudar para avançar em nossa pequena organização revolucionária. Através de meus pensamentos e ações, em cada conversa nossa, ela aportava para a construção de uma organização que se prepara para mudar o mundo. Em cada conversa nossa, ela preparava a si mesma para poder se colocar de corpo e alma a serviço da revolução; de resto, a vida não valeria o esforço de ser mantida.

Nos anos que precederam, Camila foi ativa de diversas formas nesta luta. Quanto aos sonhos que tinha para um mundo melhor – do que gostaria de fazer se fosse livre – também soube colocá-los a serviço desta luta. Queria fazer cinema, fotografar, criar. Fez com isto, por exemplo, esta belíssima foto para a capa da segunda revista Estratégia Internacional Brasil, publicação da LER-QI.



Quando estudava na PUC, participou da criação do grupo de mulheres Pão e Rosas, que se colocava a tarefa de lutar contra todas as formas de opressão que as mulheres sofrem, mas tomando em suas mãos em primeiro lugar as demandas das mulheres trabalhadoras e a partir de uma perspectiva marxista. Em toda a sua militância, a questão da luta contra a opressão às mulheres e aos homossexuais sempre foi um dos aspectos que destacou sua atuação. Não apenas porque Camila sofreu estes dois tipos de opressão na pele, mas fundamentalmente por seu instinto de sempre se ligar aos setores mais explorados e oprimidos, uma marca dos melhores revolucionários.

Um dos legados importantes que nos deixa para continuarmos nossa luta são as traduções que fez para o livro “Lutadoras: histórias de mulheres que fizeram história”, para nossas revistas, jornais etc. 



Vinha sendo pioneira em abrir a discussão em nossa organização com mais profundidade sobre os direitos dos LGBTTI e a opressão contra este setor da sociedade. Uma de suas contribuições que me marcou foi o texto escrito junto com a camarada Fernanda sobre a aprovação do casamento igualitário para homossexuais na Argentina: “Casamentohomossexual é aprovado na Argentina: E no Brasil, quando vamos arrancar estedireito?”

A sua condição de saúde, contudo, sempre foi um obstáculo muito concreto ao seu desenvolvimento pleno como militante revolucionária, e isso era algo que a deixava profundamente triste. Seguiu lutando, como pôde. Recentemente, vinha discutindo mais solidamente como voltar à militância plena e organizada na LER-QI. Sempre que a encontrava este assunto não faltava nas nossas conversas, era uma angústia sua e minha pensarmos como poderia atender a todas as exigências de uma vida militante. Andava propondo de militar a partir de nossa editora, tomando mais tarefas de tradução, porque isso era algo que poderia fazer em casa, mesmo se não estivesse bem. Enfim, em cada palavra sua, na forma como tratava a LER-QI como “nós”, mesmo quando estava afastada, tudo deixava claro que a luta revolucionária era o pilar fundamental para lutar por uma vida que, apesar de todos os percalços, mantinha de pé a luta para seguir adiante.

Além da saudade imensa e incontornável de sua presença insubstituível, Camila deixa um bocado de lições aos revolucionários. Que, se Trotsky dizia, nem só de política vive o homem, podemos dizer até mesmo que nem só de política vive um partido. É necessário, e isso aprendia com Camila sempre, sabermos ouvir e entender as pessoas. Aprendemos, ao olhar sua vida e sua luta para se dedicar até o fim à revolução, o que é verdadeiramente ser um revolucionário. O que a matou, no fim, foi ver-se impossibilitada de entregar-se tão completamente quanto era seu desejo. “Lo que importa”, dizia seu álbum de fotos com retratos de lutas nas quais tomou parte, com obras de arte em homenagem à revolução. Camila sabia que, em um mundo devastado e quando nós mesmos nos encontramos devastados, o que realmente importa é lutar por um mundo novo e uma humanidade livre; é entregar nossa vida a esta causa, que é o melhor que uma pessoa pode fazer hoje. Ela deu sua vida a esta causa, integralmente. Traduziu em cada fibra do seu ser o sentido das palavras de Trotsky em seu discurso de fundação da IV Internacional: “O partido exige-nos uma entrega total e completa. Que os filisteus continuem buscando sua própria individualidade no vazio; para um revolucionário, doar-se inteiramente ao partido significa encontrar a si mesmo. Sim, nosso partido nos toma por inteiro. Mas, em compensação, nos dá a maior das felicidades, a consciência de participar da construção de um futuro melhor, de levar sobre nossas costas uma partícula do destino da humanidade e de não viver em vão”.



Aos seis meses de sua partida, continuamos carregando, hoje e sempre, a tristeza infinita por sua morte; mas esta dor é herdeira de sua certeza: se esta vida vale a pena ser vivida, é para lutar com todas as forças para que ela se transforme em algo distinto.

Camila Radwanski presente! Hoje e sempre!


quinta-feira, outubro 04, 2012

A arte revolucionária e independente não pode ser "reduto" nem de Serra e nem de Haddad!




Foi divulgado no Facebook um e-mail de um membro da Cia Os Satyros de teatro que mostra o que todos já sabem: sua ligação orgânica e umbilical com o PSDB e, particularmente, com Serra. Eis a peça:

"Assunto: [psdbcultura] socorro!
Enviada: 03/10/2012 21:25

Queridos,
Sexta vai ter uma manifestação aqui na Roosevelt, organizada a partir do Face. Na verdade, eles se dizem apartidários, mas cheguei a noticia de que vêem em nome do PT. Precisamos fazer alguma coisa e com urgência. Não sei, talvez nos reunirmos pessoalmente. Amanha, vcs poderiam? Tipo na hora do almoço? Podíamos nos encontrar na Roosevelt. É importante!!! E urgente!!! Socorro!

SAtyros Um, meio dia, pode ser?
É muito, muito importante.
Inclusive, não irei a minha aula na USP só por causa disso, ok?

Vamos acabar com "eles" e mostrar q a arte é reduto do Serra!

Podem trazer pessoas, vamos nós organizar!!!

No inicio tb não dei bola.
No convite, inclusive, eles afirmam q é "apartidário", embora seja contra Russomanno.
No entanto, to vendo um bando de petistas se organizando.
Acho q precisamos nós unir.

Ivam Cabral
Enviado via iPad"


Isto, em si, não é novidade. Todos sabem que há uma troca de favores por ali. A SP Escola de Teatro, feita por Serra, é fruto direto desta maracutaia. E a própria existência dos Satyros é uma demonstração da lamentável servilidade a que podem chegar certos "artistas" em sua tentativa de conseguir as migalhas da "elite ilustrada". E a Praça Roosevelt, por sua vez, virou o símbolo desta mediocridade. De arte, não sobra muito por ali, com uma ou outra honrosa exceção. O que há de sobra é gente querendo "ver e ser vista" com sua produção artística servil e insossa; querendo pagar de "intelectual e artista". A última vez - última mesmo! - que pisei no teatro d'Os Satyros foi para ver "Os 120 dias de Sodoma". Só para algum leitor da Veja entediado, que resolveu trocar sua novela habitual por um programa mais "intelectual", aquela imbecilidade pode representar algo interessante. Pobre Marquês de Sade, que teve sua obra transformada em bibelô para colorir as noites da burguesia paulistana. Não se poderia esperar algo distinto de quem quer requentar as fórmulas prontas de ontem para ser louvado pela mediocridade intelectual de hoje. Este é o único tipo de "artista" - estes que fazem o teatro de Miguel Falabela na escala do semiamadorismo - que poderia proferir o excremento verbal de que "A arte é reduto do Serra". É o servilismo artístico em sua expressão política.

Contudo, o que me incomoda muito mais é um expressivo setor do movimento de teatro de grupo em São Paulo, muitos com uma produção artística muito rica e interessante, e que no plano teórico reivindica o marxismo, afirma se colocar politicamente ao lado dos explorados, mas que chega na hora da eleição, mal saem de sua peça "revolucionária" e se colocam a fazer uma campanha deslavada para o petismo. Muitos dos mesmos que ontem ocuparam a Funarte, exigindo políticas públicas para a cultura e contra o corte de verbas que reduziu o orçamento da arte de 0,2% para 0,06% do PIB, hoje saem a defender o voto no mesmo partido que fez este criminoso ataque à já indigente verba cultural. Grupos que nas suas peças combatem a ditadura e seus resquícios, mas que depois colocam isto na gaveta para votar e chamar publicamente o voto em Haddad, que está abraçado ao governador biônico da ditadura Paulo Maluf, que colocou a "Rota na rua" e foi um dos responsáveis pela criação do cemitério clandestino de Perus, onde se enterraram sabe-se lá quantos lutadores e militantes assassinados e torturados brutalmente pela ditadura. São estes grupos de teatro que dizem defender uma cultura universal, popular, para os trabalhadores e o povo, mas chamam voto no Haddad que foi um dos grandes privatizadores da educação através do ProUni, e promoveu a precarização das universidades com a expansão sem verbas do REUNI.

Passa da hora dos grupos de teatro que reivindicam o teatro épico de Brecht, fundado no materialismo dialético de Marx e Engels, entenderem de uma vez por todas que este teatro revolucionário é fruto indissociável de uma luta política à morte contra a burguesia, pela independência política da classe trabalhadora, pela revolução socialista e pela ditadura do proletariado! É hora de tomar em suas mãos o marxismo não apenas como uma formulação estética ou uma declaração de posições em abstrato que se desmancham na primeira prova concreta da realidade! O marxismo é, antes de mais nada e sobretudo, a ferramente política de luta da classe trabalhadora na longa batalha pela emancipação da humanidade. Negociar alguns editais ou leis progressistas com o partido que se tornou o principal sustentáculo da burguesia no Brasil, levando a cabo ataques severos à classe trabalhadora, com corte de pontos de grevistas, repressões às greves nas universidades e canteiros de obras, conluio com as oligarquias centenárias do latifúndio e a grande burguesia monopolista do capital financeiro é dar as costas para o marxismo! É dar as costas para a luta para a possibilidade de uma arte verdadeiramente independente e livre! Para uma sociedade em que todos possam efetivamente ter tempo, educação, disposição para fazer e desfrutar da arte, sem a opressão e a exploração que sufocam a humanidade hoje.

A arte não é reduto da burguesia reacionária que está representada nas eleições por Serra e Russomano. Tampouco pode ser reduto da burguesia "light" que faz uma ou outra concessão com a mão esquerda enquanto golpeia os trabalhadores, a juventude, os artistas, as mulheres, os negros e homossexuais com sua mão direita, aliando-se aos setores mais reacionários da sociedade. Olhemos para trás, companheiros artistas, para aqueles que nos inspiram no campo artístico, e aprendamos também com suas atitudes políticas, que em nenhum momento se dissociaram de sua arte: Maiakóvski foi um ardente combatente ao lado dos bolcheviques, o único partido que foi capaz de permanecer fiel aos interesses da classe trabalhadora e do socialismo e levar a revolução à vitória; Brecht extraiu seu teatro dialético em grande medida de suas experiências ao lado da classe trabalhadora, tendo sido delegado no conselho operário de Munique, um órgão equivalente ao soviete, que organizava de forma independente da burguesia os trabalhadores; André Breton se aliou ao Partido Comunista Francês pela luta antiimperialista na guerra de Marrocos, mas rompeu com este por ver que não apenas sufocava a arte com a mordaça do "realismo socialista", mas também pelo beco sem saída de suas políticas de aliança com a burguesia "democrática" contra o fascismo. Foi aliado da luta pela política operária independente mesmo quando esta esteve em minoria na Oposição de Esquerda e na IV Internacional. Escreveu com Leon Trotsky o manifesto "Por uma Arte Revolucionária e Independente", cujas linhas ainda tem muito a ensinar para os trabalhadores da cultura de hoje como travar uma luta por uma arte livre e emancipada.

A arte que queremos tem que ser revolucionária e independente! E para isso deve ser independente de todas as frações da burguesia: não é reduto de Serra, nem de Kassab, nem de Haddad ou Marta Suplicy! A arte deve ser o reduto de apoio ativo e incondicional às lutas dos trabalhadores por uma sociedade sem classes! Retomemos o lema da FIARI: "A independência da arte para a revolução; A revolução, para a libertação definitiva da arte!"

A greve dos "quarteirizados" da Façon


 
Na terça-feira estive no galpão da companhia Alstom, companhia contratada pelo metrô de São Paulo como "parceira" na expansão do metrô. Para quem não sabe, a Alstom está envolvida em um escândalo de propinas nas licitações do metrô, um caso bastante exemplar de como funciona a democracia dos ricos, na qual o transporte público é um lixo para a população em nome de garantir os interesses dos polpudos lucros das empresas.
A Alstom contrata empresas terceirizadas para suas obras; uma destas é a empresa Façon, cujos trabalhadores estão há dois meses sem receber salários e há um ano sem o pagamento de seus direitos, como INSS e FGTS. A empresa declarou falência, alegando não poder pagar, diante do que os trabalhadores entraram em greve e ocuparam um galpão com materiais da Alstom. Para quem acompanhou a greve dxs terceirizadxs da União no ano passado na USP, ou o conflito da BKM, ou inúmeras outras lutas de terceirizados que se desenvolveram na universidade com o apoio ativo do Sintusp, a manobra da Façon não é novidade: os patrões, além de ignorarem direitos elementares dos trabalhadores, ainda decretam falência para se esquivarem de pagar salários, recisão de contrato etc.
Desde o primeiro dia, a LER-QI, a corrente Metroviários pela Base e a Juventude às Ruas foram prestar apoio ativo à luta dos trabalhadores da Façon, sendo consequente com o programa revolucionário de unidade da classe trabalhadora, de aliança operário-estudantil e com a estratégia de se ligar aos setores mais explorados e oprimidos da classe, que são aqueles que estarão na linha de frente da luta revolucionária, pois como disse Marx "nada tem a perder senão seus grilhões". Foi buscando fortalecer esta aliança que levamos um dos companheiros em greve à plenária da juventude, para que contasse sobre sua luta. É também com este espírito que temos acompanhado de perto esta luta, pensando em como, com nossas modestas forças, podemos contribuir para que triunfe.
O Sindicato dos Metroviários, hoje dirigido por PSOL, PSTU e independentes, também compareceu à greve. A princípio tímido, temeroso de causar "conflitos" com a direção do sindicato "oficial" dos trabalhadores da Façon (o Sindicato dos Trabalhadores da Construção Civil, dirigido pela burocracia patronal da Força Sindical, a mais pelega de todas as centrais), o Sindicado dos Metroviários aos poucos ganhou confiança porque os próprios trabalhadores da Façon lhes afiançaram a palavra, colocando de canto os burocratas da Força.
 

Quando estava na assembleia dos trabalhadores da Façon, ouvindo os informes sobre a reunião com a(s) empresa(s), o que mais me espantou, contudo, foi a tremenda cordialidade entre a burocracia da Força Sindical e a direção dos metroviários. A princípio me perguntei: por que um burocrata sindical está sendo tão amável com o Altino, militante do PSTU e presidente do Sindicato dos Metroviários? Ao longo da assembleia, contudo, foi ficando claro: para um desinformado, seria difícil apontar quem era o militante de um partido operário que reivindica a tradição do trotskismo, e o burocrata vendido de uma central sindical atrelada desde sua origem aos interesses patronais. O discurso deles era extremamente parecido e se focava exclusivamente nas questões legais e nas reuniões com a empresa, dizendo que era necessário seguir na luta mas que deveriam ter paciência, de que precisávamos negociar e ver como conseguir o pagamento dos salários. A única diferença foi que, em determinado momento, Altino abriu a palavra para Marisa, metroviária que é candidata a vereador pelo PSTU, e que travou uma luta pela denúncia do programa Zorra Total em seu quadro que incentiva o assédio sexual às mulheres nos vagões. Mas mesmo isso foi aceito com tranquilidade pelo burocrata: ele disse como era importante que Marisa se elegesse, que ela representava "a vanguarda da classe operária", e era uma lutadora.
A questão é que a forma de atuar nos sindicatos do PSTU gera muito pouco incômodo à burocracia, aliás, pinta-lhe até de democrática por estar tão aberta à oposição. Daí tanta cordialidade. Nestes momentos de luta, fica claríssima a distinção do PSTU entre um discurso vermelho, radical e socialista para seu jornal ou propaganda, e uma prática sindical rotineira e completamente adaptada aos limites da legalidade burguesa nos momentos de conflito. Na luta dos correios, quando a burocracia do PCdoB/CTB acabou com a greve de forma vergonhosa, a oposição do PSTU, que tem bastante peso, sequer abriu a boca para se pronunciar. Mais uma greve de calendário, para cumprir tabela...
Na sua intervenção na assembleia dos trabalhadores da Façon não havia nenhum incentivo à auto-organização dos trabalhadores, a medidas para conseguir apoio democrático e discutir com a população e outras categorias, a discutir a necessidade de efetivação dos terceirizados, à necessidade de unificação da classe, a discutir o avanço da crise e a necessidade de preparar os trabalhadores para novos ataques da burguesia. Mas não sejamos injustos: Altino convocou os trabalhadores da Façon para que comparecessem ao ato dos trabalhadores efetivos do metrô pela bandeira de aumento na PR. Na prática, o PSTU tem levado os setores mais precarizados e explorados para apoiar a luta dos setores com mais direitos, mais estabilidade e mais tendência à acomodação; um sindicalismo classista e combativo deveria travar a luta pelo oposto, colocando a estrutura do sindicato a lutar com vigor para que a categoria encampasse as bandeiras dos terceirizados, por sua efetivação! Mas, se sequer na linha amarela, os terceirizados mais próximos dos metroviários efetivos, esta luta é levada a sério, que dirá na luta dos "quarteirizados" da Façon! A luta ali se dá com o apoio formal e sentando com o ministério do trabalho para negociar as reivindicações...
Quanta diferença da luta dos terceirizados da União, em que o Sintusp (fundamentalmente a partir de sua ala trotskista de militantes da LER-QI) atuou ativamente não apenas para apoiar os trabalhadores em suas medidas de luta, como o piquete à reitoria da USP, mas também para incentivar sua auto-organização através da democracia operária, com assembleias, comissões etc. Buscando apoio dos estudantes nos cursos da USP, que foram fundamentais para a conquista dos salários; levando a discussão da necessidade de incorporação de todos os terceirizados sem concurso público; organizando com eles o bloco José Ferreira (em homenagem a um jovem trabalhador morto pelas condições de trabalho na Faculdade de Medicina) para participar do primeiro de maio na praça da Sé. Um sindicato como o dos metroviários, muito maior e num setor muito mais estratégico para o capital, teria condições de apoiar de formas muito mais efetivas.
É necessário que a partir destes exemplos os revolucionários avancem no debate em torno de suas práticas, táticas e estratégia para nos armarmos para a luta de classes e para os grandes conflitos que estão por vir. É preciso que lutemos por um sindicalismo revolucionário, para forjar o melhor da vanguarda de nossa classe em cada greve que, como disse Lenin, são nossas "escolas de guerra".

quinta-feira, setembro 27, 2012

Rodas, Sintusp, DCE e o CO sobre cotas

Na terça-feira, após a primeira reunião deliberativa do Conselho Universitário da USP (cuja sigla que o nomeia não é CU, como deveria, mas CO) que pautou a questão das cotas raciais, recebi um informe em primeira mão da discussão feita pela oligarquia da USP, o punhado de professores titulares que decide em nome de todos como gerir o orçamento de mais de 4 bilhões de reais da universidade.
O informe foi dado na reunião aberta da Juventude às Ruas pelo companheiro Pablito, diretor do Sintusp e representante dos funcionários no conselho (eles tem direito a dois!), e também militante da LER-QI. O que ele disse é escandaloso: diretores de unidade da universidade de "excelência", como da Faculdade de Filosofia de Ribeirão Preto ou da Escola Politécnica, dizendo que instituir cotas na universidade seria abrir uma ferida já cicatrizada na sociedade, ou ainda que o racismo no Brasil é mais cordial (sic!) do que em outros lugares. Apoiavam-se, como argumento "teórico", na obra de Gilberto Freyre, cuja ideologia reacionária da "democracia racial" é há décadas tratada com a devida seriedade como algo mistificador e absurdo pelos professores que merecem tal título. Ao lado desse, informou Pablito, desfilavam os argumentos mais sem fundamentos e do senso comum que possamos imaginar, como o bom e velho mantra da burguesia branca de que as cotas rebaixariam o nível das universidades; fato que, diga-se de passagem, já foi comprovado como falso não apenas pelo bom senso, mas também por pesquisas feitas com estudantes cotistas em diversas universidades. Um membro do conselho levou este argumento elitista e escroto ainda mais longe: disse que os estudantes vinham de escolas violentas, sem estarem acostumados ao clima de civilidade da USP, e que poderiam apresentar comportamento agressivo e inadequado ao ambiente universitário. Vê-se logo que, para a aristocracia anacrônica da USP, os negros e pobres são como animais enfurecidos e desordeiros, que devem ser mantidos apenas para limpar a sujeira dos prestigiados intelectuais da universidade. O informe do companheiro foi seguido pela notícia de que mais três jovens moradores da São Remo, favela que fica ao lado da universidade e de onde vêm grande parte dos trabalhadores mais precarizados desta, foram brutalmente assassinados pela polícia. Os "nobres conselheiros" que colocaram a nu suas posições racistas, certamente devem concordar com o "nobre governador" da Opus Dei, Alckmin, que afirmou quanto a mais uma chacina promovida pela PM: "Quem não reagiu está vivo". Ou seja, os jovens "violentos" e inadequados ao "ambiente universitário", só poderiam terminar assassinados pela polícia, cuja função é patrulhar o campus justamente para evitar que a "elite intelectual" do país tenham seus trabalhos acadêmicos perturbados pela ralé. Ainda bem que a polícia faz seu trabalho de exterminá-los cotidianamente!
Este informe da discussão do CO me deixou perturbado, furioso. Mas, ontem, ouvi outro informe sobre a mesma reunião, desta vez dado por Babi, estudante da Letras, diretora do Caell e DCE, e militante do MES/PSOL. O informe dizia que muitas posições se expressaram na reunião, diversas contrárias às cotas, mas muitas outras favoráveis. Que havia uma grande conquista, de um seminário sobre cotas a ser promovido pela universidade. Mas que o "único problema" é que a composição da mesa estava muito "aberta", porque eles não queriam nenhum estudante, e que o movimento tinha que se organizar para poder participar do seminário. Será que ela estava falando da mesma reunião que o Pablito foi? Para o DCE (ou pelo menos para o MES), a reunião foi uma "vitória" porque pautou as cotas, e o "único problema" é a mesa do seminário que a reitoria vai organizar!
Hoje, ao escutar o rádio, tive a oportunidade de ouvir ainda um terceiro informe, diretamente de João Grandino Rodas, no programa "Palavra do REItor". Segundo Rodas, a discussão no CO foi de "altíssimo nível", e, evidentemente se expressaram posições diferentes, mas "com muito respeito", diferente do que ocorre, inclusive, em plenário muito mais "excelsos" (que, para quem não fala a língua excelentissississimamente rebuscada do professor doutor Rodas, quer dizer ilustre) do que o CO. Rodas disse que há anos a questão da inclusão é pautada e debatida nas instâncias da USP (sic), tendo sido pautada já inclusive em um CO "não deliberativo" e agora em um "deliberativo" (e neste momento fez questão inclusive de explicar a diferença). Disse que após o debate de "alto nível" houve um "consenso" de que a "solução" (ele usou esta palavra) neste momento era construir um seminário. Em seguida, Rodas fez um tremendo elogio à civilidade do debate, muito rico e frutífero, e fez aí questão de elogiar a banda da Educafro, que do lado de fora da reitoria tocava animadamente. Disse que eles colocaram sua posição de maneira a contribuir para todos, e disse que ataques pessoais ou a pessoas devido ao cargo que ocupam em nada contribui para o debate. Falou que inclusive está pensando em chamar a Educafro para um espaço onde possam se apresentar para a universidade (vale lembrar a posição absurda da Educafro, que chamou apoio à candidatura de Rodas a REItor porque ele disse que iria pautar as cotas). De sua maneira pomposa, prolixa e grandiloquente, Rodas falou sobre como é importante pautarmos os debates de maneira atual, moderna, com respeito e etc.
Segundo a visão do magnífico REItor, certamente os negros escravizados teriam sido bem mais "modernos" e civilizados se tivessem manifestado seu desejo de liberdade com uma banda na porta da Casa Grande, ao invés de construir quilombos e resistir em armas às bandeiras. Não é à toa que, a despeito de suas diferenças, a estudante do MES e o REItor compartilhem da visão de que a discussão foi muito boa e avançou muito, enquanto Pablito, trabalhador e negro, ressaltou o reacionarismo absurdo dos professores da USP.
A discussão sobre cotas é difícil de ser feita nos termos corretos, e esta dificuldade é principalmente devida ao fato de que por décadas o movimento negro no Brasil (mesmo a parte que não foi diretamente cooptada pelo petismo e a institucionalidade mais mesquinha) tem como grande bandeira central a questão das cotas. Nos EUA, as cotas foram garantidas há décadas porque ali havia um movimento negro fortíssimo e organizado, com setores que tinham posições muito mais avançadas do que aqui. Mas as cotas não foram conquistadas porque eram suas principais bandeiras. Foi uma forma da burguesia fazer uma concessão que é também uma cooptação. Hoje, nos EUA, vemos uma fração da burguesia que é negra, e são os descendentes diretos da política de cotas. Mas em que pessoas como Condoleeza Rice ou Barack Obama fazem com que o povo negro seja mais livre? Eles são negros governando para o capitalismo racista dos brancos, e mantendo a exclusão da maior parte do povo negro (absolutamente necessária para o capitalismo) completamente intocada. É progressivo que uma parte dos negros possa entrar na universidade através das cotas? Sim, claro! Mas pensemos o seguinte: neste ano são cerca de 10.000 vagas na USP, com cerca de 155.000 inscritos na Fuvest. Vamos supor que a USP adotasse as cotas aprovadas pelo STF, de 50% para negros. Seriam 5.000 negros a mais na USP. Das 145.000 pessoas que ficariam, ainda assim, do lado de fora da universidade, quantos porcento são negros? Quantos porcento são filhos de trabalhadores? A educação é um direito que temos que defender através da luta, e não negociar as migalhas que a burguesia está disposta a nos dar. Temos que lutar para que todos os negros tenham direito a estar nas universidades, a ter uma escola decente no ensino fundamental e médio. A riqueza para isso já temos há muito tempo. A questão é decidir qual é a nossa luta: nos pautaremos pela miséria que achamos mais fácil arrancar da burguesia, ou pelo que é justo, necessário e possível conseguirmos através da luta e organização do povo negro ao lado da classe trabalhadora e da juventude?

terça-feira, setembro 11, 2012

5 meses: você é minha dor

Foram 5 meses desde sua morte. Nos dois anos que estivémos juntos, ficamos no máximo um mês sem nos ver. Resolvi hoje escrever como se fosse para você, ainda que nunca vá ler minhas palavras. Já pensei muitas vezes sobre o conforto das pesssoas que acreditam em qualquer tipo de sobrevivência, se eu seria mais feliz com esta ilusão. Acho que as pessoas precisam de conforto, sim, todas elas. Mas esta possibilidade de acreditar na sua existência simplesmente não existe para mim; até me sinto meio idiota escrevendo para "você". Isso não significa que eu não tenha algo para me apegar, para me confortar da terrível perda. Já sabe: é pensar que a sua breve vida e a minha estão a serviço de algo maior; que um dia a humanidade vai sair de sua pré-história, e que sua morte e sua vida não terão sido em vão.
Acho que nestes cinco meses a grande questão tem sido entender sua morte. Não no sentido mais, digamos, "simples", de pensar porque você resolveu acabar com sua vida. Isso não é tão misterioso para mim, ainda que as causas do seu sofrimento sejam (como até para você). Entender sua morte é fazer com que ela faça um sentido maior, se encaixe em algum lugar minimamente aceitável para tornar a perspectiva de nunca mais te ver menos insuportável. 
Há duas partes nisso, acho: é possível encontrar um lugar para a sua morte. Mas isso não faz dela algo simples ou confortável. A dor, como eu já entendi há algum tempo, permanece. Entender a sua morte é entender como esta dor vai fazer parte da minha vida daqui pra frente.
A dor muda, tem vários lados, várias formas. Ainda é muito difícil para mim, mas espero que um dia consiga, lembrar de você e me alegrar. Ficar feliz de poder ter compartilhado o tempo que tivemos juntos. Ainda não sou capaz; sua lembrança é terrivelmente dolorosa, ela me lembra da sua ausência com muita intensidade. Mas já há algo que sou capaz de fazer e que antes era apenas uma vontade: transformar esta dor em motivação. Sentí-la como minha própria ferida do que é o capital e a sociedade em que vivemos.
Nunca pretendi, e aliás sempre combati, aqueles que viram na sua morte uma expressão crua e mecânica da torpeza do capitalismo; é reduzir demais a sua dor, não entender suas múltiplas causas e determinações. Mas também é impossível entendê-la sem ver a podridão deste mundo. E sem pensar que se as coisas fossem outras, poderíamos ter te ajudado muito mais.
Há algumas pessoas, tão longe, que tem me ajudado a entender o lugar disso: Tala e Natalia. Me surpreendeu a falta que elas sentem de você. São pessoas que carregarão, como eu, sua memória a cada dia. Que sentem sua falta a cada dia, ainda que há muitos anos não pudessem mais conviver com você. Não é à toa. São pessoas que conviveram com você ali onde era mais árduo; que acharam em você a possibilidade de um outro mundo, uma outra vida, de gente que não era como aquela expressão mais profunda da degradação moral e humana que o capitalismo impõe às classes dominantes também. Você é um símbolo, que elas vão carregar pra sempre. Você é uma esperança, que vive para além de si mesma.
Para mim também: foi, é e será uma dor e uma esperança. A dor de ainda viver em um mundo tão torpe; a esperança e a motivação para seguir lutando e mudá-lo. Sei que você viu em mim também a motivação para lutar, que viu em mim a possibilidade de mudar coisas que te incomodavam até mesmo entre camaradas. Que apostava em mim. E eu vou dar o melhor de mim para honrar sua memória, que é também a memória de tantas e tantos que tombaram em combate.
Eu te amo, para sempre. Aos cinco meses, carrego sua dor comigo todos os dias; mas também sua esperança. Elas nunca vão me abandonar.

sexta-feira, agosto 17, 2012

Resignar-se ao tamanho de humano



Não saber, não prever, não conseguir, não poder. Somos limitados, muito menores do que o mundo e nossas vontades diante dele. Aprender isso pode ser lento e doloroso. Aprender que não está em nossas possibilidades aquilo que gostaríamos de ter feito. Olhar de frente nossas limitações, aceitá-las; resignar-se a elas.
Sim, resignar-se implica em deixar algo morrer. Resignar-se a nosso tamanho de humano implica em deixar morrer algo que não existe, que é a possibilidade de fazermos o que é impossível para nós. Parece fácil aceitar isto, não? Não é. É fácil entender, mas não aceitar. Aceitar significa, enfim, resignar-se. Implica em uma pequena morte de nós mesmos. Deixar morrer o impossível.
Este tem sido um de meus imensos desafios. A morte é provavelmente o maior muro diante de nossas possibilidades, de nosso pequenino tamanho de humano. Ela esfrega em nossa cara o quão impotente nós somos. Encarar a morte da cami implica em uma enorme resignação. Em resignar-me ao fato de que eu não sabia; de que não estava lá; de que não fiz aquela pequena coisa naquele dia ou aquela outra no outro.
Aceitar nosso tamanho de ser humano pode ser, às vezes, uma tarefa maior do que nós mesmos. Para cami, como para tantos que tiraram suas próprias vidas, foi impossível resignar-se. Se quando nos resignamos morremos um pouco a cada dia, muitas vezes quando nos suicidamos é porque já não podemos mais nos resignar. Chegou nosso limite. Cami não podia mais se resignar à vida que estava levando; se resignar diante das impossibilidades imensas que se erguiam, que a colocavam diante do tamanho humano dela, insuperável e que a impedia de viver a vida como ela gostaria. Não dava para se resignar.
Maiakóvski foi um homem que nunca se contentou com seu tamanho de homem. Como disse Trotsky após seu suicídio: "Maiakovsky, pronto para servir à sua época, pelos mais modestos trabalhos quotidianos, não podia aceitar uma rotina pseudo-revolucionária." Nem cami era capaz de aceitar uma rotina pseudo-revolucionária, ou uma pseudo-vida. Quando Maiakóvski viu sua vida e sua arte encurraladas diante da muralha da burocracia soviética, não pôde resignar-se. Tentou, é verdade: "No mês de janeiro deste ano, Maiakovsky, vencido pela lógica da situação, fez grande esforço para aderir, finalmente, à Associação Soviética dos Poetas Operários (VAPP), dois ou três meses antes de matar-se. Essa adesão não lhe trouxe nada. Retirou-lhe, pelo contrário, alguma coisa. Quando ele liquidou suas contas, tanto no plano pessoal quanto no político, e movimentou seu barco, os representantes da literatura burocrática, aqueles que estão à venda, exclamaram: 'inconcebível, incompreensível'. Demonstravam, assim, que não compreendiam tanto o grande poeta Maiakovsky como as contradições da época." Meteu uma bala na testa, porque não podia se resignar. Cami lutou, lutou e lutou. Disto sou testemunha. Lutou para ser uma revolucionária integralmente; lutou para ser coerente com o que acreditava. Venceu muitas batalhas; perdeu outras tantas. Mas uma hora viu-se obrigada a dar um passo atrás, a resignar-se àquilo que poderia fazer; a resignar-se a seu tamanho humano. Recusou-se. Era já resignação demais para alguém com nada mais e nada menos do que a ambição de mudar o mundo.
Suicidou-se, porque não pôde resignar-se.
A nós, que ficamos, resta resignar-nos a nosso tamanho de humanos. Ao tamanho de pessoas que não podiam prever, não podiam ajudar, não podiam evitar. Resta também resignar-nos à compreensão do tamanho de humano que cami tinha, e não censurá-la por não poder ser mais do que humana e nem querer se resignar ao tamanho humano que podia ter. É mais fácil falar do que fazer. Resignar-se é um suicídio cotidiano, porque temos que matar algo em nós mesmos. Suicidar-se é o fim da resignação. O nosso tamanho humano também limita até mesmo nossa possibilidade de nos resignar, pois é típico querermos ser muito mais do que podemos. Vamos aprendendo, a cada dia, a resignar-nos quando necessário.

segunda-feira, agosto 06, 2012

O direito à morte

Vi outro dia um filme, "Você não conhece Jack". Era um filme medíocre, mas sobre um homem bastante extraordinário, Jack Kevorkian. É um médico que ficou famoso e foi processado muitas vezes, e preso durante uns sete anos, por praticar a eutanásia. Eu descobri, vendo o filme, que tinha uma visão conservadora da eutanásia. Acreditava que se resumia a, quando uma pessoa estava sendo mantida viva por aparelhos, ou tinha uma doença terminal, que ela tivesse o direito de morrer. Estava equivocado. Aliás, o direito de desligar os aparelhos já existia no lugar onde Kevorkian morava. O que ele fazia era ajudar as pessoas a se suicidar, quando elas tivessem doenças que tornassem a vida delas impraticáveis. Isso não significa necessariamente doenças terminais. Muitos dos pacientes dele tinham doenças com as quais as pessoas poderiam permanecer vivas por muito tempo, talvez décadas. Mas sofriam, e tinham suas possibilidades de viver de fato gravemente restringidas. Viver não é respirar, comer, dormir e cagar. Aliás, vivemos em um mundo onde, infelizmente, quase todos são obrigados a sobreviver. Se vivemos, acho bastante discutível.

Legalmente, ele não podia matar as pessoas. Mas colocava à disposição delas formas de se suicidarem, e as ajudava a morrer de forma tranquila e indolor. No primeiro caso, utilizou substâncias que eram injetadas e o coração da pessoa parava de bater. Contudo, depois do primeiro caso, teve sua licença médica cassada, e passou a utilizar um gás, se não me engano monóxido de carbono, que a pessoa inala e lentamente adormecia para não acordar mais. Obviamente, não demorou nada para que Kevorkian fosse perseguido e processado por centenas de religiosos. "A vida é escolha de Deus", entoavam em um ato uma multidão de religiosos no filme. Foi processado diversas vezes por "suicídio assistido".

Pensei bastante sobre o direito das pessoas morrerem. Há uma cena em que a polícia arromba a porta de um hotel e interrompe violentamente a entrevista de Kevorkian com uma paciente, dizendo que estavam lá para salvar a vida dela. A mulher, revoltada, dizia: "E quem pediu por isto?". No cristianismo, o suicídio é um crime, porque a sua vida não pertence a você, mas a Deus. O mesmo ocorre no aborto, em que a "vida" do feto pertence a Deus, e só ele pode interrompê-la. A nossa medicina se orienta por este dogma, essencialmente cristão: a vida é um valor absoluto, supremo, incontestável. E a missão dos médicos é preservar esta vida, a qualquer custo. Eles não estão a serviço de seus pacientes, mas a serviço de Deus, que estipulou que a vida é sagrada, e os médicos são seus todo poderosos sacerdotes, a serviço da manutenção deste valor sagrado.  Esta visão sobre a vida é completamente absurda, e leva a toda uma série de outras questões sobre as quais não vou escrever agora, mas que certamente merecem atenção. A diferença substancial de Kevorkian é que ele não estava a serviço de um ente abstrato e supremo que estabeleceu a Lei Sagrada da vida: ele estava a serviço de seus pacientes e do que fosse melhor para eles. E há momentos em que o melhor é morrer, por mais que isto seja tão difícil para nossa sociedade aceitar.

O filme, é claro, me fez pensar na pessoa que amo que tirou sua própria vida. Já escrevi anteriormente sobre o direito dela em relação à sua própria vida, sobre como seria absurdo eu ter raiva dela, e sobre como, quando ela própria me perguntou, eu disse que as pessoas tinham, sim, o direito de se suicidar e que nunca poderiam ser considerados egoístas por isso. Escrevi isso sob a lógica de que no mundo podre em que vivemos a nossa vida não nos pertence, e isso poderia nos levar a querer a morte. Contudo, a história de Kevorkian me fez pensar a mesma questão, mas não sob a perspectiva do direito à vida, e sim do direito à morte. Mesmo em uma sociedade sã as pessoas morrerão, e sofrerão de doenças, e terão problemas e angústias e tristezas. E elas devem ter direito a decidir sempre, sobre sua vida e sobre sua morte.

Cami decidiu sobre a sua morte. Uma das coisas que mais me dói é não ter podido me despedir dela; ela estava se despedindo de todos nós, mas só soubemos depois. Pelo fato de que vivemos em uma sociedade onde a morte é um tabu, onde as pessoas não tem sequer o direito de decidir se querem morrer, porque nem sua vida e nem sua morte lhes pertence, eu não pude saber que ela efetivamente estava pensando e pesando os prós e contras de continuar viva. Vi outro dia uma discussão sobre se seria ou não um ato de coragem o suicídio. Em primeiro lugar, vale dizer que não faz sentido tratar todos os diferentes suicídios como "o suicídio". Mas, diziam, nesta conversa, que não havia como reivindicar a "coragem" de um suicídio. Na época concordei, mas Kevorkian me convenceu do contrário. Eu ainda estava muito impregnado pela visão da vida como um valor absoluto. E ela não é. Cami decidiu sobre sua morte. Para isso, ela teve que vencer várias coisas. Em primeiro lugar o medo de morrer, que não é mais do que uma derivação direta do fato de que a morte é um tabu para nossa sociedade. Ela tinha medo de morrer, e ela o venceu. Ela teve que vencer um medo muito maior, que é o medo do sofrimento que causaria as pessoas que a amavam. Em outras palavras: vencer a sua culpa. Não existe um sentimento mais cristão do que a culpa, e não há nada que culpe mais um suicida do que a religião. Ela teve que decidir e executar tudo sozinha e em segredo. Como foi todo este processo, a dificuldade que foi, o grau de consciência que ela tinha quando executou, o sofrimento pelo qual passou para conseguir fazer isto, são todos segredos que ela levou consigo. Mas, sem dúvida, exigiu dela muita coragem. Coragem para tomar a decisão que ela achou necessária, e coragem para executá-la. 

Eu gostaria muito de ter dividido estes momentos com ela. No filme, em determinado momento chamam a mulher de um paciente de Kevorkian para testemunhar. Ela diz que durante nove meses tentou convencer o marido a não se suicidar, a permanecer vivo, e nestes nove meses ele dizia que o desejo dele era poder morrer. Em seu aniversário, quando a mulher lhe perguntou o que ele queria, ele disse que a única coisa que ela poderia lhe dar seria uma consulta com o Dr. Kevorkian. Ela, finalmente, cedeu ao desejo do marido. E esteve ao seu lado quando ele suavemente morreu. Eu queria este direito, e queria que a cami tivesse ele. Queria poder ouvir serenamente de sua boca que ela achava que já não dava mais; que as limitações que estavam cerceando a sua vida eram maiores do que suas possibilidades de superá-las. Que os pesadelos, as vozes, a angústia já eram demais para continuar. Eu gostaria do direito de conversar com ela e refutá-la, de dizer que ainda havia muita coisa que não tentamos, que era possível sim melhorar a vida dela, fazer com que ela conseguisse estudar, trabalhar, militar plenamente. Que eu estaria ao lado dela, que tudo daria certo. Gostaria de poder, ao longo do tempo, de ser dissuadido de minha visão de quem ama demais, ou de dissuadí-la de sua visão de quem sofre demais. Gostaria de poder sofrer pela sua futura ausência com ela em meus braços, de antecipar a dor da saudade. Gostaria de poder ajudá-la a preparar sua morte, de estar ao seu lado, de segurar sua mão e, acima de tudo, de apoiá-la. De poder olhar em seus olhos e dizer: se esta é, finalmente, sua decisão, eu te apoio. Pode partir tranquila. Gostaria, num plano mais egoísta, de não ter que viver até o fim da minha vida com dilacerante dúvida: se eu não tivesse desmarcado nosso encontro naquela noite, ela estaria viva?

A vida não é um valor em si; o valor da vida está em vivê-la, em poder usá-la para aquilo que ela serve. Afinal, é para isso que nós, comunistas, dedicamos nossas próprias vidas: porque vemos que em um mundo como o nosso, a maior parte da humanidade está privada de viver suas próprias vidas. Acredito que a maioria chega à conclusão de votar sua vida a esta luta por ter sentido na pele ou testemunhado muito de perto a impossibilidade da alegria sob o capitalismo. Não à toa, cami era uma de nós, e lutou o quanto pôde para libertar a humanidade do fardo pesado que a oprime. Ela sabia, melhor do que nós que ficamos, que se a possibilidade de viver está interditada por qualquer motivo, o propósito de estar vivo fica comprometido. Para que serve uma vida que não se pode desfrutar? Para gerar mais-valia? Para agradar a convicção religiosa de alguém? Para que os entes queridos não sofram? Mesmo a possibilidade de estar vivo para lutar por uma humanidade livre e emancipada, que é o meu propósito de vida e também era o dela, torna-se inviável em um determinado grau de sofrimento. Precisamos ter o mínimo de apego a nossa vida tal qual podemos vivê-la hoje. Não é possível viver apenas de futuro. 

Eu passei momentos bastante difíceis assistindo a cami em grandes sofrimentos, e eu sofri muito também por vê-la mal e não poder ajudá-la de forma suficiente. A minha dúvida, que nunca vou poder eliminar, é pensar que ela talvez ela poderia, sim, melhorar. Pois ela já havia estado melhor antes, ela já havia tentado morrer e depois disso passou por momentos felizes. Se ela tivesse morrido da última vez que tentou eu nunca a teria conhecido, nós nunca teríamos podido aproveitar nossos breves anos juntos. Por isso, mais um motivo para eu desejar que ela pudesse conversar comigo abertamente sobre isso; não só para ajudá-la a morrer, mas para questionar sobre sua certeza em relação a isso. É uma dúvida, porque eu não descarto a possibilidade de que o melhor para ela fosse realmente partir. E que, se isso era o melhor para ela, estou certo que seria também o melhor para quem a amava. Mas o maldito dogma que cerca nossa vida - que é metade cristão pela preciosidade" da vida para "Deus", mas também metade capitalista pois a nossa vida serve para produzir para os outros e não para ser desfrutada - me impediu de poder sequer conversar com ela sobre isso. Ela manteve seus planos em segredo.

Em uma entrevista, Kevorkian diz: "quando morrermos, vamos para o nada. Todos viemos do nada, era tão ruim assim?" Um pensamento simples e verdadeiro. Ela não está mais sofrendo, não há nada de ruim para ela agora. Ruim é para nós que ficamos. Ruim é pensar em como cami era jovem e, nos momentos certos, cheia de vida e de vontade de viver. Como era linda, inteligente, sensível, generosa, engraçada, revolucionária, cheia de um milhão de potencialidades. Ruim é pensar neste potencial extirpado, pelas raízes, bruscamente. Ruim é nossa impotência diante disso, e o fato de que sequer podemos compreender direito porque foi assim. E é muito ruim também que nem eu nem todos os outros que a amam e sentem intensamente sua falta termos podido compartilhar a sua decisão. Pessoas que gostariam tanto de tê-la visto mais uma vez, e que certamente ela também gostaria de poder ter visto. Ter alguém ao seu lado para tornar sua partida mais tranquila. Um dia, nossos descendentes viverão em uma sociedade onde a morte não seja um tabu, em que as pessoas serão livres para decidir morrer, se precisarem.