sábado, setembro 20, 2014

Da luta que nos faz

As palavras nunca são suficientes para conseguir expressar aquilo que sentimos. Mas tem vezes que parece que elas não dão nem pro começo. É assim que eu me sinto diante da vitória da greve dos trabalhadores da USP. O triunfo de uma batalha, ainda pequena, ainda defensiva, mas que é imensa. E que sinto como minha, como parte da luta que é a minha vida. Sinto como minha ao lado desses herois de toda uma classe, que deram uma lição aos seus irmãos e a seus inimigos.



Lembro do arrepio me percorrendo enquanto filmava mais de mil trabalhadores votando o início da greve no vão do prédio da história, no dia 27 de maio. Uma onda se gestava ali, e que por sua vez já havia sido impulsionada pela ressaca das ondas anteriores: as ondas de junho e as dos garis, que arrastaram o país em sua correnteza e deram um belo caldo nos governos e patrões.

Mas na maré que criava o empuxo dessa onda havia também outras influências profundas. Há quatro anos os trabalhadores da USP não faziam uma greve, e para quem olhava a calma superfície parecia que a água não voltaria a se mexer. Mas as aparências enganam, e não é com um ou outro ataque de um reitor-capacho enfiado goela abaixo por um governador, nem com um ou dois prêmios cala-boca, que se destrói uma tradição consolidada por décadas de lutas. E os trabalhadores da USP têm uma tradição que corre na sua história, no sangue de sua classe, nos cabelos brancos dos diretores de seu sindicato; uma história que se confunde à história dos últimos grandes embates de classe desse país.



Uma boa semente, para brotar, só precisa de um solo fértil. Nada mais. Foi esse solo fértil que estava encoberto que surgiu quando o reitor Marco Antonio Zago e sua arrogância decretaram o arrocho salarial com o não-reajuste de 0%. Uma fera adormecida despertou, e a estrondosa votação de greve no dia 27 de maio foi apenas seu primeiro rugido. Diga-se, aliás, que bastante insuficiente para amedrontar seus inimigos, que têm, eles também, uma tradição e uma força imensa.

O segredo dos trabalhadores da USP estava no que não se via. O que eles mesmos não conheciam. Estava em mulheres e homens que, até ontem, viviam vidas normais, trabalhando na universidade e tocando seus demais projetos pessoais. Só que situações extraordinárias mudam as pessoas extraordinariamente. E não precisou mais do que o estalar dessa greve, algumas reuniões nas unidades, reuniões do comando de greve e atos para que alguns lembrassem e muitos descobrissem algo que passam a nossa vida inteira tentando esconder de nós: podemos ser sujeitos de nosso destino. Essa ideia estava ali no ar, na cabeça de muitos, mas precisava tomar corpo e mostrar que merecia existir não apenas como ideia, mas como ação.



Hoje, seus patrões que os olhem com desconfiança, porque cada um deles sabe - na prática - que a força que cada patrão tem para mandar em alguma coisa não vem senão do trabalho de cada um que ele explora. E o equilíbrio que sustenta essa relação parasitária parece inabalável, indestrutível, como um dogma, como a "ordem natural das coisas". Mas ele é um tronco devorado por cupins, oco e podre por dentro, frágil e que pode ceder a um golpe certeiro. A dominação se sustenta no poder das armas, das leis, da grana. Mas, antes de tudo, ela se sustenta na crença de que é impossível as coisas serem de forma diferente. Quando, em junho, arrancamos vinte centavos das tarifas, esses vinte centavos não mudaram a vida das pessoas. Mas a ideia de que é possível arrancá-los mudou tudo.

Os trabalhadores da USP arrancaram um aumento que não cobre a inflação que devora seus salários. Depois de 116 dias de luta incansável, com grandes sacrifícios pessoais, eles conseguiram um reajuste escalonado de 5,2% e um abono de 28,6%. É pouco perto do que é necessário para viver nesse mundo, para pagar o aluguel, as contas, as compras, as despesas, as dívidas, as faturas. Pouco importa: esses 5,2% tem o cheiro do medo dos patrões diante da força dos trabalhadores organizados; eles são o retrato da reitoria e do governo de joelhos, com todas as suas leis e armas, diante dos trabalhadores que tudo produzem.

Eu vi pessoas que andavam enfiadas em suas vidas, soterradas por um mar de rotina e exploração. E aprenderam a olhar para o lado, a ver em seu colega de corredor um companheiro que estará ali para apoiá-lo nas batalhas mais duras; um irmão de classe. Aprenderam que as barras das prisões nas quais nos jogam são forjadas sobre mentiras, quando levaram seu companheiro Fábio. Mas que essas grades também foram erguidas sobre nosso trabalho, e que podemos dobrá-las.

A vitória ensinou a lutar. E hoje ela é imensa, e, como a primeira de muitos desses lutadores, ela sempre será imensa na memória. Mas logo olharemos para trás pensando como ela é pequena diante dos novos triunfos que virão. E virão porque, um dia, essas mulheres e homens aprenderam que podiam lutar, que podiam ser os donos de seu destino. Eu me orgulho de estar entre esses e travar essa luta ao seu lado.


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