quarta-feira, setembro 17, 2014

A polícia só está fazendo o seu trabalho

Hoje, na correria do dia, só vi a televisão de relance. Mas uma frase era repetida como um mantra hipnótico aos telespectadores:

"A polícia só está fazendo o seu trabalho."



Sim, é verdade. A polícia estava fazendo seu trabalho. Qual era ele? Atacar 300 famílias, crianças, mulheres grávidas, velhos, todos, todos, todos. Para defender um dos valores mais importantes dessa sociedade: a sagrada propriedade privada.

A mídia passou o dia registrando imagens. E ela escolhia bem o que iria de pano de fundo ao seu mantra. A voz, em tom de revolta, repetia: "A polícia só está fazendo seu trabalho. Há manifestantes atacando ela." Os manifestantes atacavam ela, e as imagens não mentem: mostravam pedaços de sofá, pedaços de cama, pedras, pedaços de pau voando pelas janelas do prédio em cima da polícia.

As janelas de um hotel abandonado no centro da maior e mais populosa cidade do país, uma das maiores do mundo, cuspiam pedaços de móveis enquanto a polícia descarregava suas bombas. O hotel, abandonado há mais de dez anos; as famílias, jogando seus poucos pertences em cima dos soldados para se defender.

Uma telespectadora, minha nova colega de trabalho, manifestou-se na copa do meu trabalho, onde eu assistia às cenas: "um monte de gente pagando aluguel, trabalhador tudo morando na periferia, e esses vagabundo querem morar no centro, e de graça."

Isso. Os trabalhadores moram na periferia e pagam aluguéis caros. Porque no centro há hotéis abandonados há mais de dez anos, esperando a especulação imobiliária valorizá-los mais, enquanto isso os proprietários ganham seu dinheiro cobrando aluguéis caros dos trabalhadores que moram na periferia. E eles só podem fazer tudo isso porque há uma polícia para "só fazer o seu trabalho" de defender seus hotéis abandonados, e porque muitos trabalhadores olham outros apanhando na televisão por ocupar um hotel abandonado e concordam, não com eles, mas com a polícia, que "está só fazendo seu trabalho".



Outras imagens passavam: um homem, visivelmente bêbado, dançava em frente à tropa de choque armada em prontidão. "O manifestante provoca a polícia", diz o narrador. Dois policiais saem da formação, prendem o homem e retornam. Assisti essa imagem mais umas três vezes em meu intervalo de quinze minutos do trabalho. Era, como o pedaço de cama voando pela janela, mais uma dessas provas de que, enquanto "a polícia só estava fazendo seu trabalho", manifestantes atacavam-na, violentamente, com o resto de seus pertences.

Isso, na visão de minha colega, tornou-se mais um argumento: "Olha lá, jogando cama, quem é que joga as suas coisas na rua desse jeito?". Era uma pergunta retórica, mas a resposta estava bem clara na tela: as pessoas que têm sua moradia ameaçada jogam suas coisas na rua, na cabeça de quem ameaça seu direito de morar. Quem não joga suas coisas é quem não precisa disso pra tentar resistir...

Eu não respondi à colega, mas teve quem o fizesse, ainda que não se dirigindo a ela diretamente, mas a todos ali: disse que morou em uma área ocupada durante o governo Quércia, que fora expulso e que o dono do imóvel devia mais de dez anos de impostos. Essa, invariavelmente, é a história de todos os imóveis ocupados. A mulher fez que não era com ela. Ela estava em seu intervalo, mas a cabeça estava cheia: fazia naquele dia hora-extra para ganhar um troco a mais. Eu não sei porque ela queria o troco a mais da hora extra, mas sei o que permite a ela fazer hora-extra: que faltem funcionários para atender a demanda da estação; que os que trabalham não recebam o suficiente e precisem fazer hora-extra; que alguns dos que ali trabalham chamem de "vagabundos" os que apanham da polícia "que só está fazendo seu trabalho", mas não digam nada dos que enchem seus bolsos roubando a empresa pública na qual trabalham. E, é claro, também  não esqueçamos dos policiais que "só fizeram seu trabalho" ao atacar, tal qual àquelas famílias no centro, os seus colegas em greve há cerca de três meses, garantindo a continuidade dessas condições de trabalho.

O intervalo terminou. Ela foi fazer a hora-extra, eu fui continuar treinando meu novo ofício. A polícia, enquanto isso, continuou fazendo seu trabalho. E fez exemplarmente: no final do dia, São Paulo tinha 300 famílias a mais na rua, mais de 80 novos presos, e algumas dezenas de feridos. Diante disso, é de assustar que ainda tenha muita gente, de direita ou de esquerda, que diga que a polícia é despreparada. Nada disso: nossa polícia é muito bem preparada, e ela só está fazendo o seu trabalho.

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