sexta-feira, janeiro 23, 2004

Terceiro post:

Lágrimas e Farrapos: Encontro de Mágoas

Coração de Boneca já havia se importado demais, e agora havia decidido se importar sem se importar mais com isto. Derramava Lágrimas, tentando ser indiferente. Lágrimas que não secavam, infinitamente.
A Rainha de Copas via em sonhos a clareza das falsas verdades. Seu Reino perdia o brilho e ela sentia os Corações enfraquecendo enquanto ela procurava algo que não sabia o que era. Corações em farrapos. Seu Reino era o da confiança, o do amor construído em perfeição. Mas ela sentia seu Coração desfazendo-se em fragmentos dispersos, sem nada para juntá-lo.
Coração de Boneca já não era mais guardião dos portões do Palácio, suas Lágrimas fizeram-no perder seu posto. Ele havia sido tomado sob a tutela do Bobo de Copas, que dizia que suas Lágrimas eram apenas um caminho escondido para os Corações. Coração de Boneca não entendia o que ele queria dizer, mas procurava aprender o que lhe era ensinado pelo Bobo, tentando ainda em vão ignorar suas Lágrimas eternas. Ele sabia que devia seguir estes passos, e confiava no Bobo. Este, sabia que era incapaz de secar as Lágrimas do Coração de Boneca. Ele podia Iluminar muitos corações e preencher grandes Vazios, mas Coração de Boneca tinha um Coração muito grande para ele. Coração de Boneca tinha um Coração grande o suficiente para abrigar um Reino inteiro dentro dele, mas era um Reino que ele não queria. Era um Conquistador de Corações que não desejava conquistar um Coração, que desejava apenas secar suas Lágrimas. E o Bobo decidiu que ele deveria encontrar o mais belo Coração que ele próprio já vira, mesmo que agora este Coração estivesse em Farrapos. Mandou-o disfarçadamente um dia qualquer para os aposentos da Rainha de Copas. Disse para Coração de Boneca que ele era um aprendiz muito bom, e que deveria alegrar o Coração da Rainha.
Às vezes não é necessário nada além de um olhar. E o primeiro encontro de Coração de Boneca com a Rainha de Copas foi uma destas ocasiões. Os olhos cansados de chorar secaram como um passe de mágica, e alguma coisa que parecia quebrada dentro dele voltou a funcionar. Aquele Coração capaz de conquistar impérios havia se curvado instantaneamente, e o poço de mágoas inesgotável secou em um piscar de olhos. Pela primeira vez o Coração de Boneca havia sido conquistado, e sua lealdade e amor foram entregues incondicionalmente à Senhora dos Farrapos. Mas aquela conquista não reergueu o Reinado de Copas, nem amenizou suas tristezas. Com ou sem Coração de Boneca, a Rainha de Copas continuava sem nada para remendar seu próprio Coração. E esta angustia imediatamente tornou-se a dor do Coração de Boneca. Suas próprias Lágrimas, agora secas, haviam sido substituídas pelas Lágrimas da Rainha que escorriam através de seus olhos, e que moravam em seu Coração Conquistado. Era também a primeira vez que Coração de Boneca não conquistava um Coração. Por tantas vezes ele vira Corações serem depositados a seus pés, sem nunca se importar com isto. Agora, que ele finalmente conhecera o único Coração do qual desejava algum reconhecimento ou amor, ele não o conquistara. Ele apenas tomara as dores daquele Coração para si próprio, e decidira que tinha uma nova missão. Como o Bobo, ele sentiria o Coração da Rainha, ele veria e entenderia o que atormentava a Senhora dos Farrapos e faria tudo o que fosse necessário para remendar seu Coração dilacerado.
Para Coração de Boneca, entregar seu Coração à Rainha de Copas foi uma coisa tão nova e abriu tantas perspectivas até então desconhecidas dele, que ele teve dificuldade de entender a si mesmo no começo. Era como se algo de fora passasse a fazer parte dele, como se ele continuasse sendo a mesma pessoa mas que sente tudo de um jeito diferente. Ele tinha novos Desejos. E se lhe brotavam Lágrimas nos olhos por ter ele deixado entrar em seu Coração todos os pesares da Rainha dos Farrapos, tomando estas dores como se fossem suas próprias, ele também sentia uma alegria inexplicável por ter aquilo dentro de si. Ele sabia que era capaz de muitas coisas que não era antes, sabia que poderia se surpreender superando limites que ele julgara inatingíveis. Lutaria com motivações que vinham de um lugar dentro de seu Coração que até aquele momento fora totalmente desconhecido para ele. Todo o seu talento para conquistar os Corações se transformara, assumindo dentro dele um significado novo. Tudo, todas as coisas de que era capaz, estavam agora apenas a serviço dos Desejos do seu Coração de Boneca. E este pertencia à Rainha de Copas. Mesmo que não fosse o que ela procurava, mesmo que ela não julgasse aquele o presente mais valioso, como o próprio Coração de Bonecas julgara ser para ele poder entregar seu Coração daquela forma, ele satisfazia-se na maioria das vezes em fazê-la sorrir ou ser feliz por algum momento. Em meio aos Farrapos da Rainha, tudo o que ele enxergava era a beleza escondida que estava ali. Era um dom, de enxergar o melhor lado do Coração da Rainha. Era um dom que ele só possuía pois a Rainha tinha o controle completo sobre seu Coração de Boneca.
Todos os dias Coração de Boneca ia aos aposentos da Rainha para lhe fazer companhia e tentar alegrá-la. Apesar de tudo, a Rainha não era imune aos encantos do Coração de Boneca. Rapidamente ele tinha sua amizade e confiança plenas, e se valia disto apenas para tentar reconstruir os farrapos e lhe devolver seu Reino como novo. Não demorou muito para que ele finalmente entendesse que isto estava além de seu alcance. Seu Coração não poderia alcançar o da Rainha do modo como ela precisava, e isto lhe angustiava. E apesar destas Lágrimas que vinham do Coração da Senhora dos Farrapos escorrerem através de seus olhos, ele sabia que não devia se deixar abater por esta tristeza, pois deste modo não haveria nada que ele pudesse fazer pela Rainha.
Um dia ele viu o olhar da Senhora dos Farrapos perdido através da janela, procurando alguma coisa distante. Neste momento ele soube que devia partir, seguindo aquele olhar até o infinito, para um dia trazer aquilo que ele buscava. Somente deste modo ele poderia consertar o que estava rasgado dentro do Coração da Rainha.


Corações Perdidos: Terra de Ninguém

Os Corações sempre dão sinais falsos, sempre podem ser iludidos, e as Rainhas sabem como fazê-lo. Especialmente a Rainha de Ouros. Saber enganar é saber conquistar, era assim que ela pensava. Os Corações sempre acabam enganando a si mesmos, de um jeito ou de outro. Portanto, enganá-los não era nem ao menos algo errado. Era apenas guiá-los por um caminho que eles poderiam perfeitamente trilhar por si mesmos. Corações são armas e também são vítimas. São tão poderosos quanto são frágeis, são tão nítidos quanto são ambíguos. E, se eles são os tijolos sobre os quais as Rainhas constroem seus Palácios, então eles devem ser compreendidos, usados com cautela. Longe de serem apenas objetos a serem utilizados em uma busca por poder e admiração, eles são um mundo no qual vivemos nossas vidas. Pensar nos Corações como objetos a serem utilizados seria uma visão simplista e tola, da qual toda Rainha mantinha distância. As próprias Rainhas têm seus Corações, e elas sabem que nunca podem se esquecer disto. E a Rainha de Ouros tinha um prazer especial em pensar que as outras Rainhas tinham seus Corações, que poderiam até mesmo ser conquistados como o de qualquer outro. Era sempre bom lembrar bem disto.
Quando há algo de incomum acontecendo com os Corações, as Rainhas logo sabem. E a Rainha de Ouros logo soube que algo estava acontecendo, algo que poderia mudar as coisas. Mudanças são perigosas, e a maioria das Rainhas as temia. Mas mesmo sabendo de todos os perigos que trazem as mudanças, a Rainha de Ouros as adorava. Ela as enxergava como oportunidades, que não deviam ser desperdiçadas. Mudanças mexem com os Desejos de muitos Corações, e isto era sempre uma chance de se conquistar mais Corações. E ela sempre queria conquistar mais Corações. As outras Rainhas, sempre tão vaidosas e seguras de si mesmas, acabavam se descuidando e abrindo brechas que não escapavam à perscrutadora varredura da Rainha de Ouros. Ela esperava pela mudança com ansiosidade, como uma criança que espera um presente. Que surpresas lhe trariam os outros Reinos? Que oportunidades? Ela certamente não esperaria sentada em seu trono como uma estátua de mármore até ser tarde demais.

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