segunda-feira, janeiro 26, 2004

Quinto Post:

Espelho das Almas: Coração Solitário

Desde que Coração de Boneca havia partido, as coisas pareciam piorar cada vez mais para a Rainha de Copas. Era como se a única viga ainda confiável que sustentava uma velha mansão tivesse sido removida. E agora, a casa parecia pronta para desabar a qualquer momento.
A cada dia a Rainha duvidava mais de si mesma. Aquele Reino era mesmo seu? Já não conseguia pensar que sim. Tinha ódio de si mesma, por ser uma Rainha incapaz de governar e por ter deixado partir o mais belo Coração de seu reino em uma missão incerta e perigosa, uma jornada inútil com o objetivo de reconstruir algo que já estava perdido. Era uma busca fadada ao fracasso, e ela havia deixado Coração de Boneca partir nela.
Mesmo depois de conhecê-lo tão bem e tão intimamente, ele conseguia intrigar a Rainha. Por que ele perdia seu tempo tentando ajudar a Senhora dos Farrapos, ao invés de criar seu próprio Reino, que certamente seria um dos mais belos já vistos? Como alguém tão especial não conseguia enxergar o óbvio diante de seus olhos, enxergar que não havia mais nada a se fazer por um Coração Vazio como o dela, por uma Rainha que nada tem? Mas...na verdade ela tinha algo ainda. Ela ainda tinha um Coração que lhe fora dado, e isto ainda a mantinha em pé, dentro do seu Palácio de Cristal. E permaneceria lá, com o Coração que lhe fora entregue, até que seu dono retornasse.
Naquela noite, não agüentando mais a angústia da espera solitária, a Rainha decidiu visitar o Espelho das Almas, escondido no canto mais remoto de seu Palácio. E, de frente para o Espelho, olhou firmemente para dentro dele e encarou seu rosto. Era uma colcha de retalhos. Seus olhos a lhe encarar com compaixão e tristeza, sem inspirar a admiração incondicional de outrora. De um jeito ou de outro, as Rainhas sobrevivem de admiração e amor. Elas sobrevivem dos Corações Conquistados. E a Rainha de Copas olhava para si mesma e tinha a certeza plena de não poder conquistar um Coração, de que não havia nada nela que pudesse garantir a admiração de alguém e, portanto, a integridade de seu Reino e de si mesma. Mas havia algo que contradizia isto, algo que escapava ao seu entendimento. Porque ela sabia que tinha um Coração que era seu, que a admirava e a amava. E ela via o reflexo disto no Espelho das Almas, perdido naquele semblante refletido.
Olhando naquele Espelho a Rainha enxergou dentro de seu Coração em Farrapos. E ela conseguiu ver coisas sobre o Coração de Boneca também, pois ela possuía seu Coração. Por que, ela perguntou ao seu reflexo, ter um Coração como aquele não era suficiente para reconstruir seus Farrapos? Por que ela não podia entregar seu Coração a ele por inteiro, como ele havia feito, e reconstruir tudo ao seu lado? Por que, apesar de tudo, lhe faltava um pedaço? De onde vinha aquele Vazio, como poderia preenchê-lo?
E o Espelho das Almas, refletindo a Rainha, respondeu como pôde. Havia uma coisa irônica no que a Rainha sentia por Coração de Boneca. Era como se, por ter ele entregue seu Coração a ela, a sua admiração perdesse um pouco do valor. Para a Rainha era como se aquela admiração que ele tinha por ela fosse apenas porque ele havia entregado seu Coração. Se você interrogasse Coração de Boneca, no entanto, ele lhe diria exatamente o contrário: Ele havia entregado seu Coração pois nunca antes havia encontrado alguém que admirasse e amasse tanto, e pela primeira vez ele pôde fazer isto. E finalmente havia descoberto que era por isto que ele buscava sua vida inteira.
A Rainha podia entregar seu Coração a ele, como ela havia feito, mas havia um pedaço do Coração dela que permanecia intocado, quiescente, imaculado, sozinho. E tanto ela como Coração de Boneca sabiam disto, e foi por este motivo que Coração de Boneca partiu. Ele percebeu, antes mesmo da Rainha, que sem poder entregar aquele pedaço ela nunca poderia se reerguer. Ela precisava de algo que trouxesse nova vida ao seu Coração, ao seu Reinado. Mas nem mesmo na profundidade do Espelho das Almas a Rainha conseguiu enxergar o que era aquilo que faltava.



Distância: Coração Incerto

Muitas vezes era difícil para Coração de Boneca seguir em frente. Ele estava sozinho, e a cada passo mais longe do Reino de Copas e da Rainha a quem seu Coração pertencia. Apesar de sentir cada dia de jornada aproximando-o de seu destino, ele ainda não sabia para onde rumava e nem o que procurava. Ele sentia falta da Rainha de Copas ao seu lado.
Por mais que soubesse ter conseguido algo da Rainha de Copas que nunca ninguém havia conseguido, às vezes, nos piores momentos, Coração de Boneca não pensava tanto nisto. Ele conseguia apenas pensar que o Coração da Rainha de Copas, pelo qual ele daria todos os Reinos do mundo, não era inteiramente seu. E ele sabia que, quanto mais se aproximasse do que estava procurando nesta jornada, mais estaria se aproximando daquilo que lhe afastaria ainda mais da Rainha. Ele buscava um guardião para aquele Coração Vazio, alguém que pudesse ser melhor do que ele nesta difícil tarefa.
Ele continuava em frente, sempre se apoiando naquele pequeno pedaço do Coração da Rainha de Copas que pertencia a ele. Aquele era seu guia e protetor, e apenas por que o possuía Coração de Bonecas conseguiu ir além do que seu próprio Coração permitia.

Corações Unidos: Novas Esperanças

O Bobo de Copas apenas observava de longe. Ele sabia bem de tudo o que acontecia, desde o Reino de Copas até onde a imaginação se deita. Era só o que ele fazia, observar aqueles Corações. E ele via todo o desenrolar do encontro de dois Conquistadores de Corações tão perdidos: uma Rainha que não conseguia governar, e um Rei que não queria um Reinado.
Na verdade, ele via as coisas de uma maneira bem diferente. Ao contrário do que todos pensariam, logo na primeira vez que ele viu Coração de Boneca, ainda com suas eternas Lágrimas a escorrer incessantemente, ele soube que ele não deveria ter um Reino para si. Existem muitos jeito de se conquistar Corações, e a maioria das pessoas fecha seus olhos para isto. Mas o Bobo de Copas via claramente na sua frente todas as diferenças, como um caçador experiente que distingue as pegadas, cheiros e barulhos de suas presas. Era algo, ele sabia, que mesmo para as Rainhas era difícil de se fazer. Talvez apenas a Rainha de Ouros o superasse nesta habilidade, mas mesmo assim sua visão distorcida por uma ambição incontida lhe fazia perder detalhes sutis e de grande importância.
O Bobo de Copas viu que o talento para conquistar Corações de Coração de Boneca era bem diferente daquele que teria qualquer Rainha. Muitas vezes ele nem percebia este seu poder, e nas outras, Coração de Boneca não se esforçava para conquistar nenhum Coração, e muitas vezes até considerava uma maldição para si mesmo ver aqueles Corações sendo entregues a ele a contragosto. Corações que ele desconhecia, que ele não queria. Ter um Coração Conquistado era uma responsabilidade. Ele sabia que era preciso cuidar dos Corações de seus súditos, que era preciso alimentar seus sonhos, que era preciso retribuir de alguma forma. Ele não servia para isto, e considerava-se um Destruidor de Corações muitas vezes, que destruía sem querer, e sempre querendo livrar-se deste fardo. Outra coisa que o Bobo de Copas viu nas Lágrimas de Coração de Boneca era que algumas delas não eram apenas dele. Os Corações que ele conquistava mesmo sem querer, lhe traziam as dores deles. Dores que se transformavam em Lágrimas nos seus olhos.
Coração de Boneca muitas vezes desejava fugir de si mesmo, que seria o único jeito de libertar-se disto. Ele imaginava o Reino que sempre lhe disseram que deveria ter, como um lugar onde todos sempre derramariam Lágrimas eternas como ele. Seria um reino de dor e de tristeza, que era a sina de todos aqueles que lhe entregavam seus Corações. Ele acreditava que todos consideravam aquilo um dom, apenas porque não tinham experimentado por si mesmos esta desgraça.
Mas isto tudo fora antes. Antes dele chegar ao Palácio e do Bobo de Copas enxergar dentro do seu Coração. Antes que aquele Iluminador de Corações, tão bem escondido como um mero bufão da Rainha, percebesse que aquele derramador de Lágrimas não estava lá por acaso. Não era um Reino que Coração de Boneca precisava, ele precisava conhecer o Coração da Rainha de Copas. O Coração que estava se transformando em farrapos, e que apenas alguém como ele teria alguma chance de remendar.
O Bobo acompanhava o Coração da Rainha há muito tempo. Assistiu preocupado o Reino dela transformar-se, passando da alvorada ao crepúsculo. Viu a Rainha fechar-se, como uma flor que murcha, com suas pétalas perdendo as cores, e suas folhas caindo como a esperança que foge de seu Coração. Viu seus súditos acompanharem as mudanças sem nem ao menos se darem conta disto. Era outono no Reino de Copas, e as folhas começavam a secar e cair da árvore. Ele viu isto tudo, impotente.
Um dia ele encontrou Coração de Boneca, e soube que o Destino finalmente resolvera dar uma nova chance ao Reino. Ele cumpriu sua pequena parte e voltou a observar. Ele viu o encontro de dois Corações tão únicos, que de perto não conseguiram enxergar tão bem quanto ele a beleza daquele encontro. Era como se um único Coração há muito tempo partido houvesse finalmente juntado suas metades. E, mesmo sabendo que não seria tão simples assim as coisas se acertarem no Reino de Copas, o Coração do Bobo ficou mais leve pois ele viu o sorriso quase perdido da Rainha abrindo-se nos dias que se seguiram à chegada do Coração de Boneca. Ele sabia que o Coração da Rainha pertencia muito mais àquele recém-chegado do que ele pensava. E ele sabia que a Rainha era muito mais capaz de governar do que ela pensava. Era só uma questão de tempo até que eles percebessem isto e as coisas se acertassem. Ele viu confiante a partida de Coração de Boneca. Sabia que tudo daria certo quando ele retornasse.

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