segunda-feira, janeiro 12, 2004

O conto de Natal deste ano. É uma bosta, mas eu tinha que escrever alguma coisa.



Cobrador de ônibus, ascensorista, lixeiro, coveiro, fiscal, contínuo, despachante, guarda de trânsito, balconista, secretário, datilógrafo, corretor de imóveis, corretor de seguros, vendedor de telemarketing, torneiro mecânico, flanelinha, camelô, homem-placa. É cada vez mais frequente eu ficar fazendo uma lista de profissões que eu considero pouco gratificantes ou dispensáveis, coisas que eu realmente não gostaria de fazer, e ficar comparando elas com o que eu faço. Sempre para chegar na mesma deprimente conclusão que todas elas parecem melhores do que a minha. Eu já gostei do que eu faço, eu sei que sim, mas já faz tanto tempo que eu nem me lembro direito. Uma coisa obsoleta, antiquada, inútil, até mesmo digna de pena.
E eu sei bem o que a maioria das pessoas diria disto. Na verdade, a maioria das pessoas nem acreditaria que eu penso assim. Mas isto é porque eles não estão no meu lugar, tudo o que eles vêem são aqueles filminhos pasteurizados onde tudo o que eu faço é uma beleza e tudo dá certo. Eu nem tenho mais credibilidade, já nem sei direito pra que sirvo. Me mato de trabalhar, e pra quê? Sozinho, num puta frio, fazendo um monte de porcariazinhas coloridas pra uns pirralhos ingratos de nariz escorrendo que ficam em casa engordando e se enchendo de peru. Nem se dão ao trabalho de dizer obrigado. Ninguém mais se dá ao trabalho de dizer obrigado. No máximo, quem recebe alguma coisa do que eu deveria receber são os paspalhos fantasiados nos Shopping Centers. E eu nem ao menos posso processar os imbecis por tentarem descaradamente tomar meu lugar sem nenhum trabalho e ainda tirar uma grana em cima disto. Vigaristas, isto sim. Aí sempre tem alguém que vem com aquela de que eu não devo fazer isto por reconhecimento ou esperando qualquer coisa em troca. Poderia até ser, e eu fazia isto com prazer antes.
Eu sei que vão interpretar isto como um papo de velho chato e ranzinza, principalmente porque, de fato, é um papo de velho chato e ranzinza. Mas antes era melhor dar presentes pra criançada. Em meio a milhares de pedidos idiotas de carrinhos, bonecas e bolas, eu sempre recebia alguns pedidos que dava gosto de realizar. Coisas que valiam a pena, que não eram uma porcaria de plástico pra ser esquecida atrás do armário dentro de dois meses. Coisas que somente eu poderia fazer, que não poderiam ser imitadas por qualquer industriazinha de trabalho escravo infantil em Taiwan. Mas, cada vez mais os pedidos são todos mesquinhos, vazios, sem originalidade e egoístas. É só assistir os comerciais dois meses antes do Natal que já dá pra saber direitinho tudo o que os molequinhos vão pedir. Lixo descartável com barulhinhos e luzinhas coloridas. Bela merda. E eu que me vire pra construir esta porcaria. Todo mundo acha que tem uns duendezinhos felizes que fazem tudo e eu só fico coçando o saco. Mais uma idiotice que inventaram pra entupir os especiais de Natal. O otário aqui tem que fazer tudo sozinho, desde a fabricação até a entrega.
Aí teve umas vezes, destas que eu estava bem de saco cheio, que eu decidi ser rígido. Eu pensei que, já que tudo isto andava uma merda, eu podia levar mais a sério esta história de que só as crianças boazinhas ganham os presentes. Agora, me responda, quantas crianças verdadeiramente boazinhas você conhece? Sinceramente, pensa nas porcarias que você fazia quando era pequeno e me diz: Você foi uma criança boazinha? Pois então, os presentes que eu fiz aquele ano foram poucos, e isto me deu uma satisfação cruel. Mas esta só durou até a manhã de Natal, quando eu descobri que tinha sido em vão minha estúpida tentativa de ser um Papai Noel severo. Todos os moleques mimados e chatos que fizeram um monte de porcaria o ano inteiro continuaram ganhando presentes. Papai e mamãe compravam o brinquedo mais colorido e bacana pros pentelhinhos. Foi aí que eu admiti pra mim mesmo uma coisa que eu já tinha percebido faz tempo mas tentava ignorar: Eu era totalmente dispensável. Não só as pessoas não acreditavam mais em mim, como elas já não ligavam pro que eu fazia. Se alguém quisesse um Papai Noel, era só contratar um otário e dar uma roupa pra ele. Se alguém queria um presente, era só ir na esquina e comprar. Eu estava mais desacreditado que a porra do coelhinho da páscoa.
Você não pode dizer que eu estou reclamando injustamente. Tem gente que reclama do emprego e diz que a remuneração é uma merda. Bom, você até pode dizer que estas pessoas sim estão reclamando injustamente. Baixa remuneração? Experimenta então trabalhar o ano inteiro e ser remunerado com a bondade, amor, boa vontade, compaixão, solidariedade e espírito natalino no coração dos homens, mulheres e crianças do mundo. Isto sim é passar fome.
Às vezes eu fico pensando que quem se deu bem de verdade foi o outro lá, que pode ter morrido na cruz e ter sido traído e tal, mas pelo menos o cara saiu por cima. Acho que é verdade aquela sabedoria popular que diz que é bom se aposentar enquanto você ainda está por cima. Hoje todo mundo lembra só das coisas boas que ele fez e, quando lembra de uma ruim, até parece que foi boa também. Todo mundo comemora e celebra ele, e eu fico esquecido aqui exceto por homenagens tão infames que eu preferia que não tivessem sido feitas. E eu nem ao menos sou sindicalizado, não tenho como e nem pra quem reinvidicar qualquer coisa. Melhores condições de trabalho, plano de saúde, direitos trabalhistas. Porra nenhuma. E nem dá pra fazer greve. Aposto que ninguém neste mundo tem mais acidentes de trabalho do que eu, e pode apostar que eu nunca recebi e nem vou receber nenhuma indenização. Jornadas de trabalho abusivas e condições de trabalho muito arriscadas. Depois daquela vez em que logo que eu saí da chaminé o filho da puta me deu um tiro na perna, eu nunca mais consegui andar do mesmo jeito. E imagina o meu medo de descer pelas chaminés de novo. Nunca mais fiz uma entrega sem um colete a prova de balas por baixo do uniforme que, diga-se de passagem, além de ridículo é incrivelmente desconfortável. E, eu não sei se alguém para pra pensar nisto, mas olhe para a casa das pessoas. Quantas pessoas você conhece que moram em uma casa e, ainda por cima, com chaminé? Você faz idéia de como é difícil entrar pra entregar os presentes hoje em dia? E, mesmo que os pirralhinhos entupam minha casa de cartas todos os anos, as portas obviamente nunca ficam destrancadas para facilitar meu trabalho. Tudo isto para entregar uns presentes estúpidos pra uns moleques que nem ao menos os merecem. Eu estava de saco cheio de me sentir um velho inválido e babão, e não aguentava mais me resignar a esta condição ingrata.
Bom, depois de te contar apenas uma pequena parcela da miséria que é a minha vida, eu espero que você não se apresse tanto em julgar os meus atos quanto os outros. Que atos? Bom, eu vou contar então. Tudo tem um limite, tem uma hora que chega a gota d’água. E eu estava neste limite, determinado a inventar um jeito de fazer as crianças me respeitarem novamente. De um jeito ou de outro, o Papai Noel sairia da galeria das caricaturas infames e sem dignidade e voltaria a se colocar como um ser respeitado, a quem cabe a difícil tarefa de julgar a bondade das crianças e ensinar lições de amor e outras merdas do gênero. Aí eu tive uma idéia, simples em sua concepção e que, no entanto, poderia funcionar muito bem. Por que não, ao invés de recompensar as crianças “boazinhas”, eu não podia punir as “malvadas”? E, pensando nisto, eu deixei meu lar na noite de Natal. Só que com um saco vazio desta vez, que, ao longo da noite eu fui enchendo. De cada criança que não havia se comportado, eu pegava uma pequena lembrancinha: O olho esquerdo. Ora, convenhamos, todo mundo pode viver sem o olho esquerdo. Mas seria desagradável o suficiente para que elas se lembrassem da lição. Os gritinhos histéricos de muitas delas foram o suficiente para que, em poucas horas, eu recuperasse o amor pelo meu trabalho. Agora sim eu era respeitado de novo, as crianças prestavam atenção em mim e teriam que se comportar bem.
Infelizmente, acredite ou não, o Papai Noel foi pego pela polícia e foi levado pra cadeia. Mas tudo bem, o saco já estava cheio de olhos e a minha missão neste Natal foi plenamente cumprida. É mais fácil para o Papai Noel fugir da prisão, eu estou acostumado a ter que entrar ou sair de lugares sem ser notado. E, se tudo der certo, ano que vem eu tenho muita coisa pra fazer. Espero sair com dois sacos no próximo Natal: um vazio, para encher com olhos, e um cheio de tapa-olhos e olhos de vidro para as crianças que se redimirem. É verdade o que dizem por aí, os tempos mudam rápido. E nós temos que nos adaptar, ou ficaremos para trás. Ainda bem que o Papai Noel sempre dá um jeitinho de ensinar às crianças o que elas precisam saber. Por isto, se as crianças que você conhece não se comportarem bem no ano que vem, diga a elas que fiquem de olhos bem abertos no Natal. Ho-Ho-Ho.

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