domingo, outubro 26, 2014

Termina mais uma "festa da democracia"

Os grandes amigos nessa "democracia"

Por 51 a 48% Dilma e o PT arrancaram sua vitória suada sobre o PSDB de Aécio, numa eleição disputadíssima. Foi o processo eleitoral que mais polarizou esse país desde 2002, quando Lula venceu pela primeira vez.

Eu lembro bem quando isso aconteceu. Eu tinha 18 anos e era tão fervoroso partidário da vitória de Lula como são hoje tantos que conheço, comemorando entusiasmados a vitória de Dilma como um grande triunfo dos pobres, despossuídos e trabalhadores contra a elite. Na época eu estudava em um cursinho da classe média, da pequena burguesia abastada de São Paulo, tentando me convencer a estudar coisas que não me despertavam nenhum interesse para poder passar no vestibular de medicina. Aquela classe média expressava ali a polarização de todo um país. As salas de aula do cursinho se dividiam: as de exatas ostentavam majoritariamente bandeiras, adesivos, camisetas do PSDB; as de humanas, majoritariamente do PT; a minha, que era mescalada, literalmente se dividiu ao meio, com o lado esquerdo da sala pintado de petismo e o lado direito de tucano. Eu acreditava que era uma disputa visceral que decidiria o rumo desse país...

Aquela vez, em 2002, foi a última vez que não votei nulo no segundo turno de uma eleição. Foi a última vez em que acreditei que um candidato eleito mudaria as coisas nesse país. Na realidade, eu só achava isso porque sofria de uma adesão ao PT que era muito mais sentimental e ligada a uma história pessoal que me fez ter ilusões nesse partido do que pela sua política de fato. Alienado que estava na minha classe social, no meu meio, não vi nada acontecendo: não vi o PT ostentando como vice de sua chapa ninguém menos que o milionário industrial José de Alencar, na época do Partido Liberal (que hoje se chama PR, como se fizesse alguma diferença). Não cheguei sequer a ler a famosa "carta ao povo brasileiro" (na realidade uma carta aos banqueiros e industriais), em que Lula garantia seguir religiosamente a política do capital.

E votei, entusiasmado. Vibrei com a vitória do PT. Nas ruas, as pessoas comemoravam. Um partido de esquerda na presidência; um partido de trabalhadores. Ou, achávamos (a maioria dos eleitores) que assim era. No ano seguinte, o primeiro do governo Lula, eu estava ainda mais alienado em um meio ainda mais escroto e dominado por uma mentalidade de "senhores de engenho": a faculdade de medicina. Não acompanhei, senão muito superficilmente, quando Lula mostrou vigorosamente a que veio, fazendo a reforma da previdência que FHC fora incapaz de concretizar. Numa tacada, Lula criou o fator previdenciário, aumentou a idade das aposentadorias, atacou direitos que os trabalhadores conquistaram a ferro e fogo.

Quando eu entrei na USP, ele preparava outro novo golpe, chamado Reforma Universitária, e foi na minha calourada que voltei a me politizar e entender o que de fato o governo do PT estava fazendo. Lula, sendo um caudilho traidor experiente (já o era nas greves do ABC), aprendeu que o melhor era "fatiar" seus ataques e disfarçá-los como pudesse de concessões. Assim ele fez com a reforma universitária, que dividiu em várias "concessões": uma delas continua sendo um grande "trunfo" dos doze anos de lulismo. O ProUni, que garantiu aos empresários do ensino privado, que haviam expandido seus negócios de forma ensandecida durante os governos Collor e FHC, que eles não tomassem prejuízo pelo esgotamento de seu mercado. O governo Lula deu uma força: ele precisava fazer demagogia de uma expansão da educação, e os empresários precisavam ocupar as cadeiras ociosas de suas universidades; é simples: o governo paga por suas vagas com isenções de impostos, comprando uma vaga em uma universidade pelo preço que pagaria três vagas em uma federal, e todo mundo sai ganhando. Depois, veio a expansão precarizada do Reuni, com universidades sem professores, sem moradia, sem biblioteca, sem nada... mas que aumentavam os matriculados nas estatísticas. Foi essa expansão que levou à enorme greve de 2012, derrotada pela política da burocracia estudantil aliada de Lula (UJS - PCdoB) e pela impotência da esquerda anti-governista do PSOL e do PSTU.

Enfim, não vou ficar aqui listando todos os ataques de 12 anos de PT no governo, e todas as medidas que eles implementaram de forma a fazer inveja a qualquer tucano e levar até Paulo Maluf, notório corrupto e governador biônico da ditadura, a dizer que "perto de Lula ele era um comunista". O ponto desse texto é olhar para essa imensa comoção catárica de "nenhum passo atrás" da vitória apertada de Dilma.

A democracia burguesa não é feita apenas de repressão e ideologia. Ela possui um ritual, uma mística própria que toma as pessoas de um jeito impressionante. Eu vi ao longo desse processo eleitoral pessoas que criticavam o PT passarem a ser ferrenhos defensores dos "avanços" de seus doze anos a frente do governo. Amigos de esquerda, que foram às ruas em junho, tirarem "selfies" com Dilma e Padilha. Acreditarem que o ranço reacionário elitista, racista, homofóbico, machista e monstruosamente arcaico de certos eleitores de Aécio já era justificativa suficiente para votar no PT, independente do que eles fizessem no governo.

Defender o voto nulo tornou-se um motivo para ser desprezado, nessa atmosfera de "briga de torcidas" que a eleição passou a ser. Argumentos políticos em defesa do voto nulo não me faltavam e nem aos meus camaradas. Diante deles, ouvi uma mesma resposta repetida à exaustão como uma cantilena de igreja: você não vota em Dilma porque nunca passou fome. Curiosamente, só ouvi esse argumento sendo dito por pessoas que nunca passaram fome. As que passaram, no entanto, eu ouvi posições sobre seus votos: vi as que votavam em Dilma, as que votavam em Aécio e as que votavam nulo. Mas o "você não passou fome" não era um argumento político, pois ele se detia aí: era um argumento moral. Quem é você, que nunca passou fome, para falar sobre o que melhorou na vida dos pobres? Ora, acho que estudando a história econômica e política do país dá para saber o que mudou. E é bem fácil ver que nesse país há ainda muita gente passando fome, muita gente morrendo nas filas dos hospitais que o governo do PT vem privatizando com a EBSERH, muita gente sem acesso a saneamento básico... que os 0,4% do PIB que vão para o bolsa família continuam sendo "um peido no vento" perto dos 42% que vão para o pagamento da dívida pública, ou seja, o "bolsa-banqueiro". E não somos nós, os "esquerdistas malucos" que "nunca passaram fome" (ainda que vários de nós já tenham passado fome, mas não me parece que seja essa a questão a discutir) que vemos quem o PT representa. Michel Temer, Renan Calheiros, Collor, Maluf, Marco Feliciano, Sarney e tantos outros burgueses e seus representantes que nunca passaram fome estão apoiando entusiasmados o PT. Torturadores da ditadura militar, os mesmos que ontem prendiam a Dilma, sabem que não foram eles que mudaram de lado quando apoiam o PT.

Contudo, os argumentos políticos já foram colocados muitas vezes e de muitas formas por mim, por camaradas meus e ainda por outros. Mas em praticamente nenhum momento desse segundo turno consegui, infelizmente, ter uma discussão profundamente política com os "petistas de última hora". O medo se apossou deles, o medo de um suposto "golpe de direita", de uma "enorme retrocesso". Vivemos em um país com uma das maiores desigualdades do mundo, governado há doze anos por gente que garantiu aos bancos seus maiores lucros em toda a história e governou lado a lado com torturadores e mandantes da ditadura. E as pessoas saíram votando loucamente nesses "progressistas" que estão "melhorando o país". Será que eu estou louco? E os 30% que anularam seus votos ou se abstiveram nessas eleições? Será que todos eles não entendem que o PT significa o progresso? Será que todos esses e mais os 48% de votos válidos que votaram no Aécio nunca passaram fome, ou não entendem que as cotas, a lei maria da penha, o pronatec "mudaram o país"? Será que fomos às ruas em junho e colocamos de joelhos governos do PT, PSDB e PMDB de mãos dadas para continuar vivendo em um país onde, sim, pessoas morrem de fome com a conivência desses que hoje nos governam?

Dilma ganhou, e logo teremos todas essas respostas. Como eu aprendi, desde meu primeiro voto em Lula, que estava enganado, sei que muitos dos que hoje comemoram a vitória de Dilma verão que estavam enganados. E nos encontraremos nas lutas, contra PT, PSDB e todos seus aliados. Para que esse país e esse mundo mudem de fato. 

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