Angela Davis |
Todo preso é um preso político. Essa ideia, que pode parecer
estranha a princípio, é demonstrada de formas diferentes por dois ótimos filmes
que estão em cartaz em pouquíssimas (não à toa) salas de cinema no país.
Um deles é o documentário nacional “Sem Pena”, de Eugenio
Puppo. Sob a forma de um mosaico, no qual cenas são apresentadas ao espectador
com vozes sobrepostas que apenas ao final saberemos a quem pertencem, o filme
conta um pouco como funciona o sistema penitenciário brasileiro, desde o
judiciário até as cadeias e o pós-prisão.
Em um dos depoimentos, alguém diz que nas sociedades ditas
“primitivas” não há cadeia ou detenções, e que os crimes são resolvidos
coletivamente, pois se considera que “não há crimes individuais, apenas crimes
sociais.” Os melhores depoimentos do filme desenvolvem justamente essa ideia.
Um relato de uma conversa entre um presidiário e estudantes de uma faculdade
toca nessa ferida, de que os crimes são criados pela desigualdade, quando o
preso afirma que roubaria o carro da menina porque ela tem e ele não, e que se
ele roubar ela ganhará outro do pai. Conforme esse diálogo é relatado pelo
depoimento que ouvimos, as cenas mostram como o próprio sistema judiciário
reproduz essa lógica: os cenários das cadeias, caindo aos pedaços,
superlotadas, com centenas de presidiários em condições sub-humanas, são
contrastadas com tomadas em que se mostram suntuosos tribunais, luxuosos
edifícios como o da Faculdade de Direito da USP, com uma Ferrari partindo de
sua frente enquanto moradores de rua fazem comentários. São os dois lados do
sistema judicial.
]
É nesses momentos que “Sem Pena” foca o centro da questão, o
elemento que faz com que toda prisão seja efetivamente uma prisão política: em
uma sociedade fundada na desigualdade, onde alguns possuem muito, e muitos não
possuem nada, frequentemente o roubo chega a ser uma necessidade. A manutenção
de um sistema carcerário repressivo e injusto é um pilar de sustentação desse
estado de coisas. E o filme demonstra como são justamente os que roubam por
necessidade os que amargam longos anos nas cadeias, quase sempre sem sequer um
julgamento – que dirá um julgamento justo.
Nas falas de um juiz e de uma desembargadora aparece o
caráter de classe dessa justiça feita pelos ricos e para os ricos: uma senhora
negra, idosa, catadora de materiais recicláveis é acusada de tráfico. O juiz,
ainda que a absolva, defende não apenas sua detenção arbitrária como justa, mas
também faz diversas insinuações sobre como pessoas “desse tipo” são usadas pelo
tráfico. Ainda pior são os comentários da desembargadora, que retrata o
discurso “linha dura” de que as penas no Brasil são muito brandas, quando temos
a terceira maior população carcerária do mundo e a que cresce em maior
velocidade.
O filme demonstra como o encarceramento é bastante caro ao
Estado e de forma alguma serve para ajudar os presos a se reinserir
profissionalmente. Contudo, fica no ar a pergunta: se é tão ineficaz, porque
persiste? Talvez a principal lacuna de “Sem Pena” seja que, apresentando
diferentes pontos de vista sobre o problema, ele se abstém de tentar apontar
diagnósticos mais profundos. Algumas falas apontam o problema de forma
equivocada, levando a supor soluções utópicas: esse é o caso quando, no início
do filme, se fala sobre a falta de uma polícia preventiva no Brasil, afirmando
que não se pode encarar a polícia meramente como “o braço armado do Estado com
a função de reprimir”. Mas ao analisarmos o papel de um Estado em uma sociedade
dividida em classes, constataremos que a instituição policial surge exatamente
com o papel de manter a desigualdade e a exploração.
Esse ponto é pouco desenvolvido no filme, que mostra de
forma dolorosa o problema e seus sintomas, mas que deixa ao espectador a tarefa
de procurar suas causas. Em alguns momentos, passa a impressão de que seria uma
questão de um sistema ineficaz e burocrático; mas, em seus pontos altos, o
filme transparece uma mensagem clara: a existência de multidões encarceradas no
Brasil tem sua raiz em uma sociedade fundada na desigualdade.
Provavelmente a maior ausência do filme – o apontamento de
quão racista é o sistema penitenciário – aparece no centro do segundo filme, o
documentário “Libertem Angela Davis”, de Shola Lynch. Retratando o ativismo
político de Angela Davis no movimento negro e no Partido Comunista dos EUA na
década de 1970, o filme fala sobre a detenção e o julgamento dessa militante
que gerou um amplo movimento de solidariedade internacional no mundo inteiro. A
prisão de Davis era um ataque direcionado pelo Estado americano contra uma
mulher que simbolizava naquele momento a resistência do povo negro contra uma
sociedade racista, em um momento em que se levantavam com força os Panteras
Negras, organização que reuniu dezenas de milhares de negros no país com uma
perspectiva revolucionária de luta contra a segregação social que ainda hoje
persiste tanto nos EUA como no Brasil.
Não poderíamos dizer que é uma coincidência o fato de que
Angela Davis ganhou grande notoriedade ao defender três jovens negros
encarcerados, no caso que ficou conhecido como “os irmãos Soledad”, em que se
armou uma farsa judicial para incriminar estes detentos pela morte de um guarda
penitenciário. Seus crimes, como os de dezenas de milhares de encarcerados pelo
sistema penitenciário brasileiro, eram pequenos delitos contra a propriedade
privada: o roubo de uma televisão, de setenta dólares; enfim, delitos aos quais
foram levados por uma sociedade que reservou aos negros a maior fatia de
miséria e exploração.
Por ter se tornado um símbolo da resistência negra, uma nova
farsa jurídica foi montada contra Angela Davis, em que um atentado contra um
juiz que termina em um tiroteio e mortes (um ato que seria em defesa dos
“irmãos Soledad”) leva à acusação de que seria um plano armado por Davis. Aqui
no Brasil vemos hoje exemplos desse tipo, como o caso de Rafael Braga, que, por
ser pobre e negro, é até hoje mantido encarcerado no Rio de Janeiro pelo crime
de participar de manifestações de rua portanto um frasco de Pinho Sol.
A demonstração em “Libertem Angela Davis” do uso político
explícito do sistema carcerário contra a organização política de um setor
explorado e oprimido no capitalismo é complementar ao massivo encarceramento da
pobreza denunciado em “Sem Pena”. São dois filmes que ensinam muito sobre o
capitalismo e suas grades.
Nenhum comentário:
Postar um comentário