quarta-feira, outubro 29, 2014

Nordestinos


Quando criança e adolescente tive a, digamos, sociológica oportunidade de conviver com a pequena burguesia paulistana vivamente. Primeiro, com parte daquela que se julgava mais "progressista" em escolas que eram recheadas de filhos, sobrinhos e netos de políticos petistas e peesedebistas famosos, uma suposta - e reforço o suposta - elite pensante, em minha primeira escola. Depois, no fim do colegial, com uma ainda mais suposta elite que se preparava para entrar nos disputados vestibulares das universidades públicas.

Entre as coisas que aprendia nessa infância estavam, como não pode deixar de faltar em qualquer infância, os palavrões e xingamentos, palavras tão importantes para qualquer criança. Lembro-me como entre esses constavam os termos "baiano", "baianada" ao lado de outros como "cuzão", "filho da puta" etc. Se dizia de alguém que tinha feito uma "baianada" quando fazia algo estúpido, burro, ignorante. Se utilizava esses xingamentos, em particular e de modo, diria, até bastante inconsciente, com um nítido viés de classe, referindo-se em especial contra os que conviviam conosco por meio do trabalho que faziam. Eu, como qualquer criança, repetia aquilo que ouvia, sem muito compreender de seu sentido.

Cresci um pouco, e quando cheguei ao final do ensino médio já entendia claramente o sentido dessas palavras, e me enojava com os que as usavam. Sentia-me, cada vez mais, um pária em minha própria classe, no meio em que convivia todos os dias. E me lembro bem nitidamente de quando "amigos" brigavam com o porteiro da escola porque esse proibia determinada coisa, e assim recebia o "xingamento" de "baiano". "Esse porteiro baiano de merda", ou algo assim. Ele não era baiano. Era apenas um peão, e que naquele caso ainda tinha a ousadia de impor as regras da escola em que trabalhava aos alunos ricos que ali estudavam.

Não demorei muito na vida para perceber e me perguntar porque, se não todos, a esmagadora maioria dos que trabalhavam nos ônibus, na faxina, nas portarias, como empregadas domésticas, motoristas particulares, babás, peões de obra, enfim, todos os que trabalhavam muito e recebiam pouco por isso ao meu redor tinham sotaque nordestino. Todos, quando faziam algo "errado", eram xingados de "baiano", ou tinham apelidos de "Ceará", "Paraíba", "Piauí" etc. E porque, entre os que estudavam nas melhores escolas, tinham mais dinheiro e posses, esses eram tão raros.



Lá pelos meus doze anos comecei a entender mais claramente de onde vinha tal divisão. Comecei a ter contato com a incrível produção cultural do nordeste, pelo que me lembre, quando ouvi pela primeira vez a música "Asa Branca", uma das primeiras que aprendi a tocar, e que é ironicamente ensinada a cada um que toca piano nesse país. É possivelmente a música mais emblemática de nosso país. Sua letra fala da seca, da migração, do sofrimento. Pouco depois, li pela primeira vez "Vidas Secas", e as palavras incisivas de Graciliano Ramos pela primeira vez me mostraram de forma cortante uma luta muda contra os coronéis dessa vida. Depois, esse contato não parou.

Tudo o que há de grande e importante em São Paulo e no Brasil tem a mão, o suor, as lágrimas e - com frequência - as vidas e mortes de trabalhadores nordestinos. São eles que foram expulsos de sua terra pelos latifundiários, obrigados a suportar a miséria que lhes foi imposta por essa sociedade, obrigados a vender sua mão de obra pelos mais baixos salários, a aguentar as piores condições de trabalho, como as da construção civil, para erguer as enormes obras superfaturadas dos governantes. Fizeram as avenidas, as pontes, os prédios, o metrô, os carros, os ônibus. Enfim, tudo o que cada paulistano usa a cada dia poderia ser chamada de uma "baianada".



É do nordeste que vem as contribuições mais ricas, vivas, originais de nossa cultura. Tem sua própria culinária, sua dança, sua música, seu cinema, sua literatura. Ainda hoje, o melhor cinema nesse país não vem de outro lugar senão de Pernambuco, e Recife é certamente a mais importante capital cultural desse país, berço de gigantes da música contemporânea do porte de Chico Science e Antonio Nóbrega, entre tantos outros.

Tendo recebido os mais duros fardos na nossa sociedade, ao lado do povo negro - que, não à toa, tem suas maiores proporções justamente ali - os nordestinos foram os responsáveis por constituir o grosso da classe social que não apenas ergueu esse país sobre suas costas cansadas pela exploração, mas também a única classe que tem em si o potencial para libertar de fato esse país e seu povo. A classe trabalhadora brasileira é preta e nordestina.

Hoje, é nítido que esses trabalhadores votaram majoritariamente no PT nas eleições. Votaram por ver em Lula um dos seus: um peão, que, expulso de sua terra pela miséria, foi vender seu trabalho nas imensas metrópoles do sul. E Dilma como continuadora de sua obra. Mas Lula não é um dos seus, pois há tempos mudou de lado, abraçando os mesmos coronéis que um dia criticou, como o "senhor do Maranhão" e aliado da ditadura, José Sarney; ou o herdeiros dos coronéis de Alagoas, Fernando Collor. Nordestinos como esses, para os patrões e a pequena burguesia, não são os "baianos" ignorantes. Eles são os descendentes dos senhores de engenho, e não dos escravos e dos que migraram para o sul nos precários paus-de-arara. Eles continuam enriquecendo, explorando, matando e oprimindo sob o governo de Dilma e Lula, com sua conivência e sua "benção".

Mas hoje, vivemos ainda em tempos sombrios, em que traidores como Lula, que tomando para si a força das lutas dos operários nordestinos e de todo o Brasil para chegar a abraçar os coronéis, aparecem como heróis. Pois, ao enriquecer as fartas mesas de banquete dos ricos industriais e banqueiros paulistanos, fez questão de empurrar algumas migalhas para o povo de onde veio. Ainda, gente assim, figura como um "salvador messiânico". Ainda vivemos em um tempo em que a aspereza da luta de classes se faz sentir no preconceito bruto e deslavado que vem à tona no ódio de uma região que vota no PT, mas que ainda não oferece saídas de fato. Em que ainda são louvados como "salvadores" do povo nordestino aqueles que estão abraçados aos ricos, e que, com as mãos dos herdeiros dos "soldados amarelos" descritos por Graciliano, sufocam as lutas heróicas dos nordestinos que continuam a erguer as imensas obras, agora, presos como escravos modernos nos canteiros de obras do PAC espalhados pelo país. Esses nordestinos, os que ousam se erguer contra os patrões, são nossos verdadeiros heróis. E as bravas mulheres nordestinas que, trabalhando como terceirizadas da limpeza na USP, ousaram lutar e vencer contra seus patrões - esses novos-velhos coronéis - que continuam com seus chicotes a arrancar o couro e a mais-valia de cada imigrante nordestino.

Para lavar a boca dessa elite estúpida, que continua impunemente não apenas falando suas barbaridades preconceituosas, mas, muito pior, enriquecendo às custas do trabalho do povo nordestino, da classe trabalhadora, dos negros, das mulheres, dos homossexuais, não nos basta apertar uns botões a cada dois anos. Esses que hoje enchem a boca para se dizerem aliados do povo nordestino há tempos se aliaram com seus principais inimigos. O futuro, não o das urnas, mas o de uma liberdade em que não mais serão os nordestinos a carregar o pesado fardo da exploração, está nas mãos não dos que enriqueceram ao vir pra São Paulo. Está nas mãos de cada peão explorado nos canteiros de obras, nos bares, nas portarias, nos ônibus, nas lojas, e em cada canto desse país onde se produza a riqueza. São esses os nordestinos que libertarão a seus conterrâneos e a todos nós.

E, se hoje, essa burguesia afetada dá seus gritos de desespero ao ver os nordestinos e os negros elegendo Dilma, mal sabem que deveriam agradecer por isso. Pois motivo para eles se desesperarem não vai faltar no dia em que esses nordestinos, negros, trabalhadores, souberem que a força que têm nas suas mãos não é a de apertar 13 para que continuemos a ser dominados por todos os tipos de coronéis. A força que têm é a de tomar esse mundo em suas mãos, e, aí sim, Lobão e todos eles irão se mudar pra Miami sem hesitar. E, lá, que resmunguem e destilem seus preconceitos à vontade. Mas sem o direito de arrancar nosso couro, que com 13 ou 45 continuam tendo todos os dias. O futuro nos pertence.


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