sexta-feira, novembro 14, 2014

Os médicos que tudo podem, os pretos que nada podem

Veio à tona um escândalo na Faculdade de Medicina da USP, onde os alunos estupravam sistematicamente suas colegas mulheres, tanto utilizando drogas nas festas como a coação física, como mostram os relatos de diversas estudantes, que deram depoimentos da Assembleia Legislativa (ALESP) e na mídia.

É monstruoso, chocante, mas, infelizmente, para quem já conheceu uma faculdade de medicina por dentro, como eu tive o desprazer de fazer, não chega a ser surpreendente. Um pouco dessa falta de espanto é demonstrável pela atitude do diretor da Faculdade de Medicina, ao pressionar os deputados pelo cancelamento da audiência pública na ALESP sobre os casos de estupro. O diretor queria evitar jogar o nome da faculdade na lama. Quem, inclusive, quer contribuir dentro da faculdade para "jogar o nome na lama" é caçado e expulso: assim aconteceu com Paulo Saldiva, que dirigia a apuração interna da USP sobre os casos, em relação aos quais a universidade, evidentemente, cala e faz de tudo para abafar.

É isso: o nome deles nunca deve estar na lama, mas eles mesmos só existem na lama. A lama da "máfia de branco", como me apresentou meu veterano quando passei pela Medicina Santo Amaro. A máfia de branco que "protege os seus", escondendo casos de negligência médica, lucrando fortunar com seus esquemas com laboratórios, fazendo seu pequeno clube de privilegiados, de médicos que se consideram pessoas superiores às outras.

A sociedade assim o diz: os médicos, grandes detentores do saber, da verdade, dos diplomas de medicina, da regulação de nossos corpos e mentes. Eles detém a autoridade para falar sobre nossa vida e nossa morte. E, por que então não poderiam fazer sexo quando quisessem, com quem quisessem e como quisessem? Eles podem tudo, e têm a certeza absoluta da impunidade. Quando matam pacientes por negligência ficam impunes, porque com um estupro na faculdade seria diferente?

Já falei um pouco sobre como funciona essa casta de privilegiados antes por aqui. Relatei, por exemplo, o hino da faculdade onde estudei, e seu caráter reacionário e machista. Esse tipo de música, aliás, não é exclusividade da medicina, mas é praticamente unânime entre todas as atléticas universitárias. Claro que, querendo estar sempre em primeiro lugar, nesse quesito também a medicina quer ser a campeã, e por isso investiu em fazer as mais degradantes, retrógradas e asqueirosas músicas, como foi divulgado recentemente sobre a Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, também da USP. Numa mistura de misoginia e racismo, a música é um verdadeiro hino à imbecilidade, mostrando o quão baixo pode chegar o pensamento desses exemplares da "elite" de nossa sociedade.

Pixação mostra a ideologia da "elite universitária"

A medicina, enquanto for um produto a ser vendido - e muito caro - e também um símbolo de status para ser consumido por imbecis deste calibre, que ao ingressar no curso passam a se julgar no direito de tratar todos os demais seres humanos como "carne barata" (em particular os pacientes pobres, negros e as mulheres), está fadada a reproduzir esse tipo de monstruosidade que vemos acontecer todos os dias. É um pouco do que Foucault explica com seu conceito de "biopoder", de como a medicina passa a ser uma instituição social reguladora. Isso não pode acabar dentro de uma sociedade onde tudo é mercadoria. Enquanto houver capitalismo, a medicina não pode ter outra face.

Enquanto eram divulgados esses escândalos, que a direção da faculdade de medicina e da USP tentam em vão abafar com todos os seus recursos, surgiu outra notícia na mídia sobre pessoas que estão bem distantes da faculdade de medicina: imigrantes haitianos em São Paulo. 300 deles estavam morando como podiam em um prédio no centro da cidade, quando foram desalojados pela polícia militar, que exercia sua função mais importante: a manutenção da propriedade dos ricos em detrimento do direito dos pobres.

Os imigrantes haitianos vieram ao Brasil procurando emprego, procurando fugir da miséria que corrói a população de seu país há gerações. Os haitianos dizem que foram iludidos a vir para o Brasil pelo governo. Não têm aqui alojamento, saúde ou escola, e a maior parte deles não sabe falar português. Foram avisados que perderiam suas casas provisórias e precárias pelas tropas do batalhão de choque em frente ao seu prédio.

Imigrantes haitianos em Brasiléia, no Acre, vivem em alojamentos precários

Da mesma forma que os estupros da medicina e os privilégios dos médicos, a miséria que assola o povo haitiano não se fez por milagre. Ela foi imposta com muito sangue após o Haiti fazer a primeira revolução negra na história, sendo o primeiro país a abolir a escravidão no mundo, derrotando as tropas de Napoleão para conquistar sua independência. Eles foram um exemplo para todos os escravos e negros do mundo; um exemplo que precisava ser sufocado. E séculos de opressão imperialista seguiram esse fato, destruindo completamente a economia haitiana e colocando ali ditaduras fantoches, impedindo seu povo de exercer a liberdade que conquistaram com a luta. Nessa história de escravidão, o Brasil tem seu quinhão: há des anos está dirigindo as tropas da ONU (MINUSTAH), que mantém uma ocupação militar no país. Essas tropas reprimem greves operárias, manifestações estudantis, qualquer organização do povo.

Como os estudantes de medicina da USP, os soldados da MINUSTAH se sentem muito poderosos diante do povo que oprimem, portanto suas armas com licença da ONU para matar. Como na medicina da USP, eles usam sua autoridade para estuprar mulheres, muitas vezes em troca de comida para que elas possam alimentar seus filhos famintos. A comida mais popular no Haiti hoje são biscoitos feitos de barro.

Quando os haitianos saem de seu país para procurar empregos, eles encontram mais miséria e exploração. Muitos deles têm chegado ao Brasil, e trezentos calharam de chegar a São Paulo, e encontrar um lugar para morar em um prédio vazio no centro. O prédio é uma propriedade privada, cujo proprietário é a Arquidiocese de São Paulo, aquela mesma Igreja Católica que durante séculos legitimou ideologicamente a escravidão contra a qual os haitianos lutaram e venceram. Essa Igreja, tão caridosa, recorreu à Polícia Militar para expulsar os haitianos de seu prédio e poder continuar a fazer sua caridade. Os haitianos, que não sabiam disso pois estão em um país estrangeiro cuja língua não falam, foram enganados por alguém que lhes cobrava aluguel para morar na propriedade da Igreja. A polícia, no entanto, não quer saber de quem enganou os haitianos: o que ela quer é defender a propriedade da Igreja, e para isso mobiliza suas tropas e desvia o rumo de 30 linhas de ônibus para poder fazer valer sua lei de ferro e fogo.

Em um mundo como o nosso, funciona assim: os pretos foram mercadoria durante séculos para que os brancos os comprassem e vendessem. Hoje, são mão de obra barata e não têm direito a morar no prédio que é da milionária e poderosa Igreja que legitimou sua escravidão. Já os brancos bem nascidos estudam medicina e estupram suas colegas, assassinam seus pacientes, e ainda fazem músicas que cantam em alto e bom tom orgulhando-se disso. Se há alguém que possa encontrar argumentos justos para defender esse mundo, que fale agora. Se ela é indefensável, como eu acredito que seja, não fiquemos assistindo sua injustiça calados. Mudemos ela com urgência.

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