segunda-feira, novembro 03, 2014

Cabeça de usuário

Lembro-me de um desenho do Pateta chamado "Sr. Volante, Sr. Andante". É esse aqui:


Desde que me tornei um metroviário esse desenho me vem à lembrança com frequência. A partir do primeiro dia em que entramos no metrô, todo o treinamento que a empresa nos dá é para que pensemos no usuário (esse é o termo para os passageiros do metrô) como um "outro". E não um outro como nós mesmos, mas um outro incompreeensível, incomunicável. O usuário é um adversário, quando não um inimigo. Ele está no lado oposto ao metroviário, e sempre pronto a nos prejudicar. Ele fará exigências absurdas, reclamações injustificadas, escândalos, brigas malucas, chamará nosso supervisor, tentará nos enganar. Tome cuidado com o usuário.

Então, saímos do treinamento, entramos no metrô e vamos para casa. A tarifa cara nós não pagamos, pois é um dos "benefícios" de nosso emprego. Fora isso, a vida no metrô é a mesma de antes: poucas linhas e estações, trens lotadíssimos, falhas, todo tipo de problemas. Todos os problemas que qualquer usuário do metrô enfrenta, em uma metrópole na situação de barbárie, com seus 20 milhões de habitantes e ridículos 78 quilômetros de extensão.

Mas, aprendemos, aos poucos, a esquecermos nós mesmos. Dos usuários que somos. No dia-a-dia das estações os mais de 4 milhões de passageiros que viajam todos os dias não encontram Alckmin, o secretário de transportes, o presidente do metrô, os executivos do departamento de publicidade ou relações públicas, nem os engenheiros. Quem eles veem ali, com a blusinha listrada com o símbolo do metrô, somos nós, os agentes de estação, ou, como alguns monitores fazem questão de deixar claro, "o mais baixo na cadeia alimentar do metrô". A extensão ridícula do metrô de São Paulo já estava em grande medida determinada em 1968, quando teve início sua construção, com cerca de meio século de atraso em relação à abertura do metrô de Moscou (1935) e muito mais do que isso em relação ao de Nova Iorque (1907). Mas, isso não foi suficiente, pois ele teve sua expansão dada a passos de tartaruga, regada a muito desvio de verbas e corrupção, como mostram os recentes escândalos do propinoduto (certamente apenas a ponta de um imenso iceberg encoberto).

Tudo isso, no entanto, não está na cabeça do usuário que, lá pelas sete e meia da manhã, ou lá pelas seis da tarde, está absolutamente puto da vida com a merda do metrô. Quem ele vê pela frente são as mulheres e homens de blusas listradas, ou seja, nós. Muitos deles descontam em nós sua raiva, gritam, alguns até nos agridem.

Anos e anos de exposição a esse tipo de ataque frequentemente levam a que os metroviários passem a ver, sim, os usuários como seus inimigos. Que seja, inclusive, coisas muito mais banais do que agressões: repetir a mesma informação oito horas por dia, cinco dias por semana, durante anos e anos a fio, é capaz de transformar a mais atenciosa e sensível das pessoas em um autômato. Máquinas de operar o metrô.

Os usuários são burros, os usuários são grossos, os usuários são mal educados, os usuários isso e aquilo. Ora, certamente se fossemos perguntar, veríamos que para muitos ali os metroviários são, eles também, tudo isso. Passamos os dias a nos xingar e nos odiar.

O irônico de tudo isso é que eles vencem, de qualquer forma. Eles, os que enchem os bolsos e a vida com nosso aperto, nos trens lotados ou nos uniformes que representam a empresa. Eles não andam de metrô, e nem sabem como é. Mas estão cheios de dinheiro que vem das passagens que cada um paga, da exploração de nosso trabalho a cada dia. Quanto mais acharmos que a culpa de nossa miséria é de usuários ou metroviários, melhor pra eles. Que nos matemos. 

Em Luz, onde trabalho, há uma fileira de catracas na transferência entre a linha 4 (privatizada) e a CPTM, e a linha 1 onde trabalho. Sempre que passava ali a caminho de casa perguntava, puto da vida, para que serviam aquelas malditas catracas que formavam filas imensas e eram gratuitas. Por que não tirar simplesmente aquela porcaria dali? E, pior: a cancela que ficava ao lado aberta começou a ser trancada, fazendo com que a fila aumentasse ainda mais porque já não podia escoar por ali livremente.

Hoje, uma das minhas incumbências é justamente vigiar essas mesmas catracas que eu xingava. E mais: manter a cancela trancada. Há pouco tempo, quando começaram a trancar a cancela, me vi espremido na fila entre a catraca do canto e a cancela trancada. Vários esperavam na longa fila para passar a catraca. Alguns pulavam por cima ou passavam por baixo da cancela. Me vi em dúvida: esperar pela catraca ou pular a cancela? Decidi passar na catraca. Hoje, assisto algumas centenas ou milhares, talvez, de pessoas pulando ou passando por baixo da cancela. Algumas caem. Hoje, uma colega disse que não tinha dó de quem caía ali. Logo no outro dia, podia ter sido eu... ou ela... A fila e a cancela fechadas, descobri, são para manter as pessoas passando pelas catracas e computando, a cada passagem, uma quantia que a CPTM deve pagar ao metrô pelas transferências. Dinheiro que não beneficia nem aos metroviários, nem aos usuários. Mas aos parasitas, que não andam de metrô. Enquanto isso, os usuários passam nas catracas, vendo as cancelas fechadas, e dois funcionários parados logo ali em frente. E xingam-nos, com frequência: Por que estão parados e não abrem as cancelas? Os metroviários, irritados, devolvem as agressões que recebem, odiando cada vez mais os usuários...

Outro dia, na copa, conversava com uma colega. "Os usuários estão sempre reclamando de tudo", dizia ela. "Claro", respondi, "o metrô é uma merda, como poderiam não reclamar". "Você está pensando com a cabeça de usuário". A única coisa que pude lhe responder foi: "Eu sou usuário". 

No dia em que deixar de pensar com a cabeça de um usuário, é esse o mesmo dia em que quero deixar de trabalhar no metrô. Significa que os patrões terão quebrado minha espinha. Se há algo que cabe aos metroviários é colocar sua força de trabalhadores que fazem o metrô existir a serviço de colocar esse transporte realmente na mão de todos os usuários, incluindo nós mesmos. E qualquer usuário que queira um metrô decente deve apoiar e fazer parte dessa luta.


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