domingo, maio 23, 2004

Às vezes acontece esta desgraça, que você precisa de uma maldita palavra que não existe. É bem diferente da palavra que você quer e não encontra, que escapou da sua cabeça. Tem ocasiões que você precisa de uma palavra que possa dar conta de coisas que palavras não podem fazer. Tem vezes que você precisa de uma salvação, e inutilmente vai caçá-la nas palavras.
Todo o ódio e desgosto que eu preciso, toda a mágoa e os gritos e lágrimas contidos. Toda a repulsa por tudo aquilo que eu desprezo e recuso, toda a insatisfação que eu não consigo por pra fora. Todos os fracassos acumulados, todos os sonhos desfeitos, todas as desilusões criadas. Toda minha decepção, minhas esperanças dilaceradas que se penduram sôfregas e decadentes nas bordas da minha vida, todas as investidas e tentativas e recomeços e esforços e insatisfação e agonia e desespero e tudo de novo e de novo e de novo. Todo o maldito ciclo que vem e se desfaz e se reconstrói com unha e ferro e fogo e carne e sangue e lágrimas e desgosto. Todo o castelo que se constrói, tijolo por tijolo, com imaginação gasta e superações de limites e esforços supremos e sonhos alcançados. Todo o castelo que se põe abaixo em um segundo, uma palavra, um gesto, um olhar. Toda a indiferença, a pena, a lástima, a desgraça. Tudo o que se perde, se destrói, se esvai, se acaba, se esgota, se finda, morre, termina, some, desaparece, perece, desfaz. Todos os gritos que ninguém ouve, todas as gargantas em vão que se criam por uma guerra que não pode ser lutada. Todas as intenções que não se concretizam, os sonhos que não tem sono, as palavras censuradas. Todos os sacrifícios ocultos, as oferendas recusadas, os mundos de beleza e esplendor que mofam em um canto de armário sem nunca cumprir seu desígnio. Todas as verdades encobertas, as mentiras vitoriosas, as falsidades constituídas, os ideais que não importam, a jornada que não se completa, que morre na praia, que se deita, que se esquece. Todas as vinganças que crescem e se elaboram e se alimentam do ódio infindável que se alimenta nos restos e cresce na escuridão e almeja com cada fibra de horror o dia final em que irá ter nas suas mãos o sangue quente, o gozo final, o alimento da vida, todas as vinganças que não acontecem. Todo o amor que se guarda nas pessoas solitárias e tristes, o amor que se transforma em lágrimas amargas de desgosto pelo mundo que as abandona, que vira as costas sem jamais olhar para trás. Todos os pedidos que não são ouvidos, as súplicas soluçantes que são ignoradas, as risadas que se fazem às custas do sofrimento alheio eterno. Todas as dores desprezadas, pequenas demais para existirem ou grandes demais para serem verossímeis. Todos os exageros e antagonismos da sua felicidade, compaixão, alegria, piedade, esperança, carinho, amor, beleza. Tudo o que se quis para as pessoas que mereciam e que não se fez. Todas as mortes injustas e lentas e dolorosas e sofridas. Todas as torturas e angustias e desprezo. Tudo o que um dia eu quis oferecer e me foi enfiado goela abaixo com socos e pontapés no estômago. Toda a amizade fingida, os interesses ocultos, as segundas intenções, as coisas feitas por debaixo do pano, as sacanagens inconfessáveis de uma meia-noite esquecida, as traições descaradas, as reviravoltas injustas, os motins. Tudo o que há de ruim em mim desde sempre e que cresce e se alimenta com a podridão do mundo que se instala em mim a cada dia em doses pequenas e dilacerantes. Todas as coisas boas que um dia moraram em cada coração de cada ser humano bom e ingênuo de cada canto e que se desfaz com o desgosto e a mágoa eterna das amarguras que corroem tudo, tudo o que havia e poderia haver de bom neste mundo. Todos os que se sentem inferiores, injustiçados, que são pisados, humilhados, esquecidos, destruídos, abandonados. Todos os suicídios tristes em quartos de hotel de beira de estrada, em janelas de apartamentos, em festas de aniversário. Todos os natais tristes e solitários, todas as pessoas que ficaram de fora de todas as comemorações, todas as datas especiais que se passa sozinho e triste com uma angustia interminável no peito. Todas as madrugadas na rua, de frio, fome e miséria. Todas as guerras com suas mortes, torturas, mutilações, escoriações, cicatrizes. Todos os roubos, incêndios, homicídios, estupros, seqüestros, estelionatos, extorsões, chantagens, brigas. Tudo o que todas as pessoas já fizeram de mal para as outras, justificando para si mesmas que faziam o bem. Todas as mentiras, todas as pessoas que são adoradas e conquistam um espaço no coração dos outros através de trapaças, manipulações, mentiras e armações. Tudo o que há de ruim e detestável neste mundo, todas as vezes em que não há luz no fim do túnel, não há esperança nenhuma de se livrar desta desgraça que é a vida porque o mundo e as pessoas são podres demais para fazerem alguma coisa que presta. Todas as vezes em que todo o resto do mundo é feliz e eu sou miserável. Todas as vezes em que todos são bons e eu sou um lixo. Todas as vezes que contei com amigos e me decepcionei. Todas as vezes em que coloquei todas as minhas esperanças em alguma coisa que me apunhalou e apunhalou e apunhalou. Todas as vezes que eu quis dizer e ninguém me ouviu, todas as vezes em que eu estava certo e todo mundo disse o contrário. Todas as vezes em que fui bom e disseram que eu fui mau. Todas as vezes em que fiz algo certo e não fui reconhecido. Todos os meus erros estúpidos que não pude consertar, todos os erros que cresceram e dominaram tudo. Todas as pessoas que sofrem e sofrem e sofrem para sempre. Todas as pessoas que já viveram e já morreram e sofreram e foram infelizes e sentiram dor e tudo isto não valeu a pena para nada. Todas as mortes infelizes e sofridas com todos os seus arrependimentos. Todas as pessoas por nascer e todo o seu sofrimento que não existe, mas que ainda existirá e será real e horrível. Tudo o que um dia desejei com todas as minhas forças e não fui capaz de conseguir.

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