quinta-feira, maio 06, 2004

Blam!
É um barulho assustador o de uma porta batendo. Assustador e triste.
Eu nunca achei que seria uma decisão fácil, mas acho que seria ainda mais estranho pensar que ela seria assim tão difícil. Por ser assim tão mais difícil do que eu achei que seria, ela foi procrastinada por tanto tempo. Mas eu não podia fazer isto para sempre.
As coisas começaram bem antes dos meus primeiros dias. Elas começaram no colegial, quando eu decidi abandonar uma escola que eu, apesar de tudo, amava, pra ir para uma que eu odiava. Depois disto foi pior, eu tive que abandonar uma faculdade que gostava para voltar pro cursinho. E eu já estava embarcando pro segundo ano de cursinho, sem hesitações nem nada.
Daí vieram os primeiros dias, e destes eu não vou esquecer nunca. Só quem estava lá sabe como aquilo foi horrível. Eu sobrevivi, mas as coisas não mudaram. Os primeiros dias arrastam-se em primeiras semanas e primeiros meses. Provas, cadáveres, relatórios, isolamentos. Quando as coisas pareciam melhorar elas pioravam. Mas sabe o que? Eu sobrevivi, e bem. Eu consegui me virar de uma maneira surpreendente, e descobri coisas sobre mim mesmo que eu jamais suspeitaria que existiam. E descobri coisas sobre os outros que jamais suspeitaria. Eu excedi limites que nem mesmo sabia que existiam. No final, eu já estava tirando de letra.
O tanto de merda que eu tive que aguentar, que eu tive que superar. E, quando você menos espera, você olha pros lados e percebe que conquistou um espaço seu, só seu, e que nenhum filho da puta pode tirar ele de você. Depois de um bocado de percalços, eu tive meu espaço. Eu olhava pra pessoas e podia, sinceramente, considerá-las amigos. Eu não tinha nada a temer, eu não devia merda nenhuma para ninguém. Pro bem ou pro mal, eu estava em casa.
E foi bem aí que eu tive que ir embora.
Eu carreguei o mundo nas costas por dois meses, e o fiz com uma habilidade que novamente me surpreendeu. Meu coração se rasgou, e de todos os jeitos eu tentei remendar os pedaços da minha vida que me puxavam de um lado pro outro.
Hoje eu acabei com isto, e acho que foi a decisão mais difícil da minha vida. Cheguei lá, pedi o papel, fui carimbar, até que estava segurando as pontas. Não olhe pra trás, não olhe pra trás. Aí aparece do meu lado uma Priscila, e depois eu vejo os olhos dela marejados. Não adianta, não tem como explicar o que foi assinar aquele papel, o que foi guardar este sonho na estante, o que foi mudar de caminho depois de ter lutado tanto por este.
Desculpem o punhado de clichês idiotas, mas é como as coisas aparecem. Você não escolhe a medicina, de verdade. Ela escolhe você, e ela te persegue até o fim, incessantemente. E eu sei que trancar ou não trancar, fazer ou não fazer um curso não muda nada disto. Ela vai me perseguir pra sempre, de um jeito ou de outro, quer eu queira, quer não. E eu vou ter que aprender a conviver com isto. A porta pode estar fechada, mas ela ainda está ali.
Agora, é bom que eu faça esta merda de letras direito, é bom que eu faça alguma coisa pra valer. Porque se eu fiz isto à toa, pode apostar que eu nunca vou me perdoar. E se eu perceber que não fiz nada direito em um ano, pode apostar que eu vou voltar correndo praquela porta, antes que ela se feche pra sempre. Um ano pra destrancar a matrícula, este é o prazo. Um ano pra ter certeza que eu quero fazer letras, este vai ser o prazo também. Porque se eu não tiver certeza de que é isto, eu volto pra medicina. Eu sei que ela sempre vai me querer de volta tanto quanto eu sempre vou querer voltar pra ela.
Mas agora ela está trancada. Agora eu sou um aluno de letras.
Desejem-me sorte, porque eu vou precisar.

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