quarta-feira, maio 19, 2004

Podia ainda ouvir incessantemente o barulho que o vaso fizera ao se espatifar contra a porta. Em sua cabeça, mil vezes, ele era ainda mais ensurdecedor. Não existia mais nada que não fosse aquele barulho, pai dos cacos que jaziam no chão da sala. Os gritos já eram mudos, não diziam nada. Um crescente da sinfonia que se compôs, sobrepondo nota acima de nota, elevando a cacofonia ao estado sublime e prodigioso de sua forma, as batidas, os grunhidos, os berros, os gemidos. Toda uma ordem calculada e desmesurada, quebrantada em um espasmo súbito. Apenas a dor exaltada na repentina explosão lavava seu espírito da pueridade infeliz das intenções. As intenções nunca valeram de nada: o mundo se construiria por elas da mesma forma que o vaso pelos seus cacos inertes. A vida se espatifou contra a porta. Eu me espatifei contra você. Meu sonho se espatifou na manhã. Se espatifar uma vida fosse fácil como espatifar o vaso, teria nas mãos a coleção dos cacos que herdou dela. Alguém que já fechou a porta, com um vaso espatifando-se atrás. Alguém cujo telefone toca eternamente, mas que nunca vai ser atendido. Sua porta, fechada, muito antes dos gritos ou do vaso, já tinha espatifado a vida no barulho insolúvel.
Fora uma briga como qualquer outra, os vizinhos podiam confirmar. Só que tinha os cacos do vaso, a porta batida. Tinha coisa de menos, antes de ter coisa demais. Ela, dois quarteirões andando bem rápido pela rua, os passos firmes. As lágrimas não escorriam, seguras em seus olhos como se sua vida dependesse disto. Marejados, vermelhos, agora doíam pelo esforço de não piscar. Se piscasse, elas escorreriam. Ela não enxergava mais nada, a visão obstruída pelas lágrimas que se acumulavam. Em sua cabeça primeiro tinham xingamentos, palavrões, que depois viraram em lista de supermercado, nomes de cds. Qualquer coisa que ela pudesse sussurrar para si mesma por entre os dentes cerrados que rangiam enquanto ela descia a rua em tropeços ofegantes e desconcertados. Estava ocupada demais para prestar atenção no que pensava, tinha que andar rápido e não deixar as lágrimas escorrerem. Depois que as pernas se cansaram o suficiente para questionar o porque do esforço, depois que os olhos ardiam o suficiente para questionar o porque não das lágrimas, foi aí que ela parou, sentou no meio fio e desatinou a chorar. Um choro copioso que assustou qualquer pedestre que pensasse em ajudá-la. Era claro, estava além da ajuda de um passante inocente. Melhor cuidar da própria vida.
Aos cacos do vaso no chão juntaram-se os de dois copos, depois de um prato, depois os do controle remoto e por fim os do enfeite feio de porcelana sobre a mesinha de centro. Acabaram-se as coisas espatifáveis ao seu alcance, e então ele percebeu que jogar coisas na porta não faria ela se abrir de novo, e que ela já não estava mais escutando as coisas se espatifarem na porta. Viu que sua mão tinha sangue, e primeiro achou que tinha se cortado com algum caco. Depois viu que as feridas foram provocadas pelas suas unhas entrando na carne da sua mão, enquanto ele as fechava convulsivamente em ódio irreprimível e irracional. Nada se espatifaria satisfatoriamente a ponto de controlar sua raiva. O ódio impotente crescia, tomando forma de uma angustia irreprimível. Encolhido no sofá, ele chorava como um bebê de colo ao relento. Se sua dor fosse apenas um pouco maior, parecia, talvez ele não precisasse mais se importar com ela. Os dentes dele desfaziam-se enquanto ele esfregava sofregamente sua arcada superior contra a inferior. Os gritos eram abafados pelas almofadas do sofá nas quais sua cara se enterrava, e seus braços tremiam descontroladamente.
Ela, sem perceber, mordia os lábios e afundava seus sapatos recém-lavados na água suja que escorria pela sarjeta. As lágrimas escorriam mais rápido do que caberiam em seus pequenos olhos, e os soluços se atropelavam pela sua boca, sacudindo seu corpo esquelético em chacoalhadas repetidas. Acompanhando seu choro, uma espécie de gemido fino se esgueirava pela sua garganta. Envolvendo seu corpo com seus braços, balançava-se para a frente e para trás. Seu nariz estava vermelho e escorria. O dono da banca de jornal observava a cena, com repulsa e pena pela patética criatura sentada na calçada.
Os sapatos estragaram na água da sarjeta. A televisão ficou sem controle remoto.
Misturou o ontem num copo de pinga, virou goela abaixo. Deitou-se de lado e quis dormir. Quis espatifar o mundo contra a porta, afogar a vida na sarjeta. Teve medo da vida não lhe pertencer mais.

Nenhum comentário: