Demorei um bom tempo
até descobrir o que me incomodava mesmo, quer dizer, que tipo de
gente eu era afinal. Quando moleque, já era uma criança esquisita.
Claro que não era assim que me chamavam os adultos, com seus bem
treinados eufemismos cretinos para tentar ridiculamente mostrar uns
pros outros que sabem fingir que não veem o óbvio. Ou que o óbvio
não é aquilo, mas outra coisa complicada que inventaram para ficar
no seu lugar. As crianças, que ainda não tinham sido estragadas por
esse hábito social que é a base dessa montanha de merda a que deram
o nome de “civilização”, eram mais honestas ao menos. Elas sim
diziam francamente que eu era esquisito.
Não é que as
crianças fossem melhores, longe de mim achar isso. As crianças são
mais nítidas, são transparentes, como se não tivessem ainda tido
tempo de nutrir essa espessa camada com a qual cobrimos a monstruosa
verdade do que queremos. A sua crueldade se vê a céu aberto, elas
dizem como desprezam os demais, como querem apenas satisfazer suas
próprias necessidades mais imediatas e individuais; e quando o
fazem, são duramente repreendidas pelos adultos, que vão aos poucos
lhes incutindo a capacidade, ou melhor, a imprescindível habilidade
de mentir para o “bom convívio”. Quando se cresce, a dura
sinceridade das crianças já está devidamente esmagada sob um
disfarce que apresentamos como nossa cara; até que nós mesmos
acreditamos que somos essa mentira que apresentamos para os demais.
Não satisfeitos em
mentir uns para os outros e para si mesmo sobre o que são, os
adultos também precisam mentir a si mesmos sobre as crianças e o
que elas são, dizendo que são “puras”, “ingênuas”, “sem
maldade”. Essa última mentira, repetida à exaustão, e cujas
frequentes tentativas de se desmentir são combatidas com a maior
violência e virulência, é absolutamente necessária para manter a
absurda ideia de que, no fundo, somos todos “bons”, e não feitos
essencialmente daquilo que se convencionou chamar de “egoísmo” e
condenar de maneira hipócrita – enquanto nossa “criança
interior” continua cuidadosamente o cultivando.
De todo modo, quando
era criança o meu convívio social se dava, em grande parte, com
outras crianças, que com sua brutal sinceridade e sua autêntica
crueldade tão tipicamente humanas me fizeram logo perceber – e não
poder esquecer disso por um segundo sequer – que eu era uma criança
esquisita. As formas de polidez, os eufemismos e os atenuamentos para
falar da minha condição particular ficavam reservados aos adultos
em seus diálogos: professores, pais, seus amigos. Enquanto isso, eu
recebia ostensivamente de meus colegas, essas “flores primaveris”
do jardim-da-infância, a implacável marca da distinção, como a
marca a ferro na testa do louco ou do criminoso do vilarejo para
dizer a todos quem ele é.
Músicas eram cantadas
para mim com a intenção de me humilhar. Agressões e provocações
eram um passatempo que trazia muita alegria para as crianças ao
redor. O prazer “puro” e “ingênuo” de se sentir superior ao
inferiorizar outro ser humano, esse se manifestava sem disfarces na
relação das demais crianças comigo. Contrariamente ao que se pode
pensar, eu creio que devo muito a esses pequenos carrascos: me
ensinaram de forma precoce e inequívoca o sentido da humanidade e do
convívio social.
O constante castigo
por se ser como se é pode apresentar diferentes resultados em quem
os sofre. É claro que nada daquilo me agradava, e não deixava de
sofrer sentindo em mim um grande alvo para as zombarias infantis de
todos os colegas. Mas, bom, eu não era o único. Sempre há outros
desajustados, outros esquisitos para serem vitimados pela ditadura da
“normalidade social”. Se na boca dos adultos o comportamento duro
das crianças com seus colegas “diferentes” ganha uma condenação
formal, por baixo desse discurso há um sentimento de gratidão: a
crueldade, que muitas vezes ganha em intensidade e ousadia na fase
adolescente, cumpre um papel social indispensável nesse mundo. Em
primeiro lugar, ensinar a quem não se encaixa qual é o seu lugar.
Em segundo lugar, tentar conformá-los aos estreitos padrões aceitos
socialmente. Claro, mesmo quando a humilhação impele aos excluídos
que se conformem para poderem ser aceitos, nem sempre eles conseguem.
Mesmo assim, cumprem um papel: o de exemplo.
Era esse o caso de uma
outra criança que teve a desgraça de habitar a mesma escola que eu.
Pedro tinha uma lesão cerebral congênita, o que lhe trazia muitas
marcas distintivas que as demais crianças simplesmente não
conseguiriam “deixar barato”. O déficit intelectual, se fosse o
único sintoma, poderia ter ficado despercebido, pelo menos, quem
sabe, até a adolescência. Mas o rosto de Pedro trazia estampada a
diferença; seus movimentos, mais lerdos e imprecisos, e realizados a
um custo muito mais elevado do que os das outras crianças, eram os
trejeitos “perfeitos” para que alguns colegas que já mostravam o
talento para buscar avidamente a admiração de todos e o “brilho”
público pudessem fazer o seu “show”. E, assim, imitavam Pedro
arrancando gargalhadas das demais crianças, que se regozijavam rindo
do menino defeituoso.
Outra característica
de Pedro que garantia grande alegria aos pequenos era sua
irritabilidade, e a forma como se comportava ao ficar nervoso.
Corando como um pimentão, ele soltava grunhidos, se agitava todo e
batia os braços e mãos. Às vezes se tornava mais agressivo e
arremessava objetos, o que dava um ar a mais de “desafio” a quem
se postava como a estrela do show ao ir lidar com o estranho animal
que intrigava a todos, como o domador de leões do circo. Lembro-me
de uma vez, que passando esses limites, a frustração de Pedro
chegou à sua bexiga e o fez urinar nas calças. É claro que foi o
delírio das crianças, e apenas com muito tempo e repreensões da
professora o apelido de “mijão” deixou de ser o nome mais
utilizado para designar Pedro.
Ele não me inspirava
simpatia, mas aprendi muito vendo esse colega que dividia comigo o
infortúnio de ser desajustado e, para minha sorte, fazia com que eu
quase parecesse normal em contraste com ele. Éramos, de fato,
muitíssimo diferentes, mas na realidade pouco importa. O que
importava mesmo é que não éramos iguais aos outros. E ele,
atormentado por sua estranheza, procurava em vão formas de se
adaptar, de parecer mais normal. Pedro não queria ser diferente, e,
obviamente, os adultos deviam lhe dizer bobagens como “você não é
diferente”, ou “você é especial”, tentando alimentar nele a
ilusão de que poderia em algum momento fazer parte do mundo das
crianças que lhe humilhavam. A crueldade infantil, como sempre, era
consciente ou inconscientemente ignorada pelos adultos.
Eu rapidamente entendi
que o caminho mais rápido para conseguir ser aceito era mostrar a
sua própria capacidade de humilhar alguém outro. Essa opção
estava ao alcance da minha mão: tivesse eu um dia qualquer, bem no
meio do pátio ou dentro da sala, à vista de todos, acabado com
Pedro ou com alguma outra criança desprevenida, as coisas certamente
mudariam para mim. Ainda que não fosse aceito, teria imposto ao
menos um respeito, uma hierarquia que facilitaria minha vida. Eu não
era uma criança mirrada e fraca, o que me deixava também aberta a
possibilidade de escolher um de meus algozes e torcer-lhe o braço,
enfiar sua cara na terra, abaixar-lhe as calças ou fazer qualquer
outra pequena crueldade que o destituísse de seu posto de
“superior”. Poderia passar a ser uma criança temida, ao menos, o
que me daria uma vida mais tranquila na escola.
É claro que naquele
momento eu não tinha uma clareza tão racional disso tudo; não
havia ainda compreendido que a crueldade e a humilhação têm suas
próprias regras bem estabelecidas não apenas entre as crianças –
quando começamos a aprendê-las – mas também no mundo adulto. De
toda a forma, eu já sentia tudo isso, e lembro-me mesmo de
considerar essas possibilidades. Por que então não fiz nenhuma
delas?
Bom, a verdade é que
rapidamente tomei um caminho muito distinto de Pedro: o seu
sofrimento gerado pela humilhação alheia lhe instigou à triste
conclusão da auto-humilhação. Quanto mais lhe diziam inferior,
mais ele acreditava, mais invejava as crianças normais e desejava
ser aceito por elas. Essa é, eu creio a regra fundamental para que o
mundo se mantenha assim: os humilhados admiram seus humilhadores,
desejando ser eles; e enquanto desejarem ser eles, aceitarão as
humilhações procurando um caminho inexistente para que possam, como
nos seus sonhos, passarem a ser eles mesmos os humilhadores. Toda a
crueldade que despejavam em Pedro ele acrescentava àquela que já
existia dentro dele, e a cultivava secretamente. Ninguém o percebia,
mas eu passei a ver como aquela criança estúpida e chorona
lentamente se transformava naquilo que o estavam moldando.
Incapaz de encontrar
uma criança a quem ele mesmo pudesse agredir, insultar ou fazer algo
para se mostrar ou sentir superior, Pedro procurou outros lugares
onde pudesse expressar seu ódio e sua crueldade que se alimentavam
cotidianamente daquilo que as outras crianças faziam com ele. Os
desenhos que fazia se tornavam mais violentos, sempre com pessoas se
partindo, sangue, objetos pontiagudos, gritos. Nas suas brincadeiras
solitárias, ele descontava em bonecos ou blocos de montar o seu
ódio. Batia com força os brinquedos e muitas vezes era advertido
pela professora por estragar algum que fosse mais delicado. Era ali
que ia se depositando o ódio e a frustração de Pedro, enquanto
crescia seu triste desejo por ser normal, por ser como as crianças
que lhe humilhavam.
Mas é claro que o
poço que estava sendo cavado nele era fundo demais para que apenas
desenhos e bonecos pudessem extravazar tanto rancor. Mesmo porque o
pensamento de Pedro era pouco dado a abstrações, era limitado e
concreto; ele precisava ver diante de si sofrimento que expiasse sua
própria dor. Então ele procurou coisas vivas. No pátio, destruiu
um formigueiro com violência, pisoteando. Seu rosto tinha uma
expressão de satisfação que nunca havia visto. Passou a gastar seu
tempo em minuciosas buscas por insetos em meio à terra e as plantas,
e quando os encontrava exercitava sua crueldade destruindo-os da
forma mais criativa que pudesse. Os adultos não se davam conta,
talvez muito preocupados em manter sua historinha de que as crianças
eram todas boazinhas, talvez tentando fingir que Pedro poderia ser
“mais um” com seus colegas e que logo iriam parar os episódios
de perseguição.
Mas logo eles
perceberam que havia “algo errado”. Foi quando Pedro pegou um
martelo de bater carne escondido da cozinha de sua casa e resolveu
partir para algo “mais elaborado”, vendo o que poderia fazer com
um dos filhotes que sua cachorra havia parido recentemente. Eu
imagino a satisafação de Pedro ao ouvir os ganidos do filhote
enquanto o destruía com aquele martelo. De alguma forma, deveria ser
como tirar um peso de seu ombro, das próprias “marteladas” que
havia recebido tantas vezes dos colegas. Quase não vi mais Pedro
depois disso. Ele acabou saindo da escola, sei lá o que inventaram
que seria “melhor” para ele. Dúvido, de toda forma, que tenham
conseguido fazer alguma coisa por aquela criança. O que se
expressava ali naquela escola, e depois nele descontando da forma que
pudesse em insetos e bichos, era uma lei do mundo dos homens.
Comigo as coisas foram
diferentes, eu não era como o Pedro. Não porque fosse melhor, claro
que não. Apenas muitos anos depois fui entender que, na realidade,
havia muito em comum na forma como “sobrevivemos” àquilo. Talvez
eu tenha tido apenas sorte – será? – de que eu não precisava de
martelos de verdade ou de bichinhos mais indefesos para expiar meu
ódio e frustração. Eu nunca tentei ser aceito, talvez porque
consegui de alguma forma ir assimilando ali mesmo, naquelas precoces
primeiras lições, que aquilo tudo era podre, podre demais. E que,
se era verdade que não conseguiria escapar – o que, é claro, eu
ainda não sabia – eu ia encontrando recursos dentro de mim para
explorar esse ódio. Eu passei a desprezar os que me humilhavam; não
queria ser como eles, nem queria ser aceito. De alguma forma, era
motivo de orgulho para mim ser excluído: em minha cabeça, isso
significava que eu era melhor que eles.
Esse desprezo era o
meu “martelo”, na verdade: pude sobreviver sem precisar ver um
filhote despedaçado sob meus golpes, mas por outro lado talvez o
ódio que Pedro expiava naqueles golpes fosse muito mais simples,
muito mais autêntico e purificador. Como essa crueldade “pura”
das crianças, a forma que ele encontrou era também mais limpa, mais
direta, porque era assim que ele lidava com o mundo. O meu ódio se
fincou em mim e ali construiu sua fortaleza, e dali nunca mais saiu.
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