Eu fico fritando –
talvez na melhor das hipóteses, porque às vezes já nem isso me
sinto muito capaz de fazer – e tentando entender o que aconteceu.
Como aconteceu, quando aconteceu. Como eu fiquei desse jeito. Eu olho
pra trás e pra agora, tento fantasiar qualquer coisa que me
entusiasme para que eu possa acreditar numa resposta mágica, pelo
menos isso, uma esperança de que não precisa ser sempre assim.
Será que aconteceu uma
hora que nem percebi nada? E aí de repente eu estava assim. Será
que foi aos poucos? E aí fico revendo os anos, as escolhas, as
coisas que fazia e que fiz. Será que foi ali, naquele momento
decisivo em que ela morreu e “tudo mudou”? Mas, o pior de tudo é:
será que não tem nada de “ficar assim”, será que na real eu
sempre fui assim, e o presente é só uma cela suja de onde não
consigo olhar para fora, e na qual fantasio que há um lugar longe
dali onde tudo é bom, bonito e... sei lá, esperançoso ao menos. E
cada presente sempre foi assim, mas quando essa cela se move aos
poucos junto comigo ao longo dessa nossa abstração chamada “tempo”
eu não consigo perceber que ela se move e deixa do lado de fora tudo
o que acredito que eu deveria ser, fazer, viver.
Não – eu repito pra
mim – não é isso. Eu lembro oras, lembro das coisas que fazia.
Ora, eu escrevia, aqui mesmo, eu refletia, eu planejava, eu
enfrentava as coisas. Eu tocava. Eu me interessava. Eu me apaixonava
pela vida, pelos seus desafios, pelas suas novidades, seus mistérios.
É claro que há um “fora” desse lugar em que me meti. É claro
que eu vim de lá.
Veio? Nas suas tardes
intermináveis de infância, nas quais a descoberta da palavra
“tédio” foi quase uma epifania para expressar uma angústia
infantil sempre presente. A incapacidade de levar qualquer tipo de
paixão até o segundo degrau de uma longa escada. O precoce ódio da
humanidade, a descoberta de sua insuficiência.
As amizades, você diz.
Elas eram uma diferença substancial. Esse isolamento impenetrável
de onde não consigo me comunicar com ninguém; essa impaciência com
tudo, todos, comigo, com os outros: isso não era assim. Ou era?
Claro, havia tempo livre, havia distração a rodo. Isso, é nítido,
é sim um presente que as crianças podem desfrutar. A ausência de
preocupações sérias. Ainda que, em retrospectiva, algum adulto que
pudesse passear pela sua cabeça infantil certamente poderia ficar
assombrado com algumas questões bem pouco infantis que já te
atormentavam. A carapaça que você criou pôde ter brechas pelo
contato com os semelhantes. O que acontece que nem os que mais se
assemelham agora te parecem semelhantes? Por que não há contato?
As palavras já não te
saem. São mecânicas, forçadas, se as consegue a custo arrancar dos
dedos. São obrigatórias. A vida é um beco sem saída. Se consegue
se perguntar, logo o ímpeto esmorece frente à brutal muralha de um
cinza infinito, que pinta uniformemente, o fora e o dentro se
confundindo, a vida e a morte indistintas. Às vezes chora, e quer
pedir desculpas por todos com quem invariavelmente falhou. Os amigos
que abandonou, as namoradas que decepcionou, a família a qual não
pertence, os camaradas a quem trai com seu interior ressecado de onde
não brota nenhum futuro. Nenhuma insignificância pode te salvar de
si mesmo. Dorme e já não consegue sonhar. Corta-se, e não escorre
sangue. Tua vida gangrenou. E, balbuciando esse lixo, agora já
apenas por uma ilusória busca de sentido, de alívio, já não sabe
o que faz. Nem porque.
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